segunda-feira, 10 de abril de 2017

Quem me fode e me beija a boca às 5 da manhã


Na esquina da Praça Roosevelt?
É a namorada fome
Fiel companheira das horas sem fim
Nunca me abandona
Maldita!
Se tem coisa que odeio é esse bando de gente descolada
Que pensam disfarçar seu pertencimento elitista
Com essas roupas coloridas e cabelo mal cortado
Como riem, como bebem e como fumam
E gesticulam e bebem e riem
Falam da crise...
Que crise?
Sabem porra nenhuma da crise
Toda sexta-feira lotam as calçadas
Enquanto eu continuo sendo a materialização das mazelas
Aquela que fede, mendiga, maltrapilha
A que incomoda
Juro que não queria ser tão mal-agradecida
Nem sentir ódio dessa gente paulistana bem-apessoada
Eles até arranjam uns cigarros
De vez em quando rola até um gole de cachaça
Mas sempre são migalhas
Migalhas caralho!
Quem me come e me cospe às 6 da manhã
No Largo do Paissandu?
É o frio cortando a espinha
Pelo vão dos prédios o vento me atravessa
Estou de pé, dura, estática
Como um poste de concreto
Já não tenho alma, nem governo
Sou apenas uma paisagem cinzenta
Que compõe a manhã
Eu tô na merda e não é de hoje
Essa cidade infeliz que alguns chamam de grande mãe
Para mim sempre foi pai
Desses que rejeitam e saem fora mesmo
Isento de qualquer responsabilidade
Segue o curso como se eu não existisse
Mas eu é que não vou passar invisível
Prefiro ser a pedra no sapato da selva de pedras
Não vou me esconder
Eu sou estudada fiz até a 4ª série
Se pensam que me enganam,
Não me enganam não, viu?
Podre é um lugar que tenta esconder
O que não cabe na vitrine
Eu com o lixo, eles com o luxo
Quem me domina e me chupa às 7 da manhã
Na Rua Helvétia?
É a memória de tudo que quero esquecer
Ando, ando, ando e nunca chego
Tô pra conhecer quem dá conta da realidade
De viver em SP
Quem?
Sem um teco, uma raspa, um pico, uma baforada
Essa hora não tem papo de amor não
Quando a fissura bate ela vem estralando
Já não sou mais soberana das minhas vontades
Sucumbir é o caminho natural
Já não estou mais só
Somos uma legião à beira das calçada
Fritando
E os dias continuam a passar
O relógio na Júlio Prestes é o próprio senhor do tempo
Eu vejo a cidade como olhos ultrassônicos
Me assusto com ela e comigo
Há tanto sonho morando nas encruzilhadas
Muito além da Avenida Paulista com a Brigadeiro
Muito além do Monumento às Bandeiras
Muito, muito além da Angélica e da Oscar Freire
São Paulo metrópole arranha céu
Sempre foi como um pai
Severo e conservador
Para seus filhos abandonados
De luzes acesas
Me brinda e me saúda
Com um gole amargo
De desprezo
Clandestina
Seguirei sendo
Eu sou a contradição
No fio da navalha


 JENYFFER NASCIMENTO (1984) poeta pernambucana, é feminista, produtora e apreciadora de arte, além de frequentadora de saraus da periferia da zona sul de São Paulo. Publicou poemas em duas antologias: Sarau do Binho, e Pretextos de Mulheres Negras. Seu primeiro trabalho autoral foi a obra poética Terra Fértil(2014). 

Jenyffer Nascimento está na 89ª postagem da série AS MULHERES POETAS...


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