O Sol rasgara o dia, às pressas. Sei que Madame não quer
saber de coisa alguma. A vida lhe dera o sopro do desassossego comum das
senhoras solitárias, o temor de que algum espírito do passado invada a
monotonia das sombras do lar e mude toda a rotina, o espanto insólito de que
netos surjam, parentes de não-sei-onde apareçam, assombrações indesejadas neste
momento. Há muito Madame não quer liames de convivência com o mundo. Trancada
em sua casa antiga, decorada por ela mesma - Madame é arquiteta - Madame busca
a inspiração para o seu livro de estreia, o seu mergulho na imensidão do
cotidiano lá fora, a sua fuga do exílio, o seu desejo de existência. Há onze
anos, o capítulo final parece não dar trégua. Há onze anos, as musas não lhe
dão a ambrosia necessária para o desfecho sublime. Todo o seu canto é de dor e
frustração.
'Então, retornando do campo, a mulher desfizera-se em
pranto. O mundo não era outro.' Pronto. Madame certamente terminará o seu
romance. Não esperemos por algo feliz. Madame já não tem a alegria das transas,
à socapa, com os namorados da adolescência, já não se permite a crer em
auroras, já não sonha com Antônio Carlos. Que houvera para que Madame se
abrigasse na solidão como se ali a felicidade sempre estivesse? Não teremos a
chance de ler o seu objeto precioso. Sinto que Madame é receosa demais para
lançar o seu cosmo ao mundo. Será que os seus escritos são autobiográficos? E
se algum crítico mesquinho e cruel desvendar o indesvendável e acrescentar os
seus próprios sentimentos à obra de Madame? Ai, Madame suspira! Ela é quem se
sente.
Não há o que temer. Madame é dela mesma. Procuro ver daqui
do sonho algumas páginas para publicá-las, recontá-las. Madame está lendo o seu
livro. A sua letra é um emaranhado de códigos. Não consigo decifrá-los. Observo
algumas frases. Acho que ela disse que amava, que amou, que ama, que amará...
Não sei, ao certo. Madame é perigosa, escreve para o infinito. Aproximo-me um
pouco mais. Sinto a sua respiração ofegante. Ela percebe o meu espectro.
Criamos um ao outro. Ela quer o quê? Que eu fique sem saber do último ato? Bum!
Madame fecha o caderno de anotações. Avança ao armário de mogno. Retira uma
chave do jarro chinês. O livro é a sua alma. Não me digam o porquê de tudo
agora.
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