sexta-feira, 10 de maio de 2019

Cinco sonetos frívolos


  Paulo Henriques Britto

i

Hoje acordei bem prático, sofístico,
sem pudores de lógica e moral,
fechado em mim, feito uma ostra, um dístico
ou uma pedra (mas não filosofal).
Devia haver mais dias como este,
livres de compromissos com dois mil
anos de ocidentalismo, a nordeste,
a sul, a sotavento do Brasil
ou do que quer que seja. Simplesmente
ser, sim, mas contingência pura, só,
nada que deixe um rastro ou excedente
em sangue, fezes, páginas ou pó.
Dias de amarrar barbante ao redor
do nada, e capturar um deus menor.

ii

De vez em quando o mundo faz sentido.
Questão de ângulo, de na hora exata
não se atentar pra página do livro
supostamente sendo lido, a faca
com que se vai cortar o que merece
ser cortado — e, em vez, levantar a vista
não pra ver algo, e sim como quem quer se
lembrar de uma coisa há muito esquecida,
só que não há nada a lembrar, a não ser
a suma importância de não se ter
nada a lembrar, nada que valha a pena
sacrificar esse momento único
e inteiramente vazio em que o mundo
faz sentido. Ou parece. Pelo menos.
iii
Mesmo o mais sólido some
sem deixar nenhum vestígio,
sem nem se ter (como exige o
costume) lhe dado um nome.
E, como sempre, o sentido —
que se dá a posteriori,
antes que se deteriore
de todo o mal percebido —
não capta mais que um minúsculo
ângulo do evento único
que só durou um segundo.
Entrementes, coisas mais
surgem, somem, num zás-trás,
e agora já é outro o mundo.

iv

Até onde a vista alcança
é real todo o visível.
Como dançarina e dança
formam um todo indistinguível,
assim também não há esperança
de se atingir algum nível
em que uma e outra substância
se separem, dando alívio
à consciência inquietante
de que no próximo instante
o erro vai ser dissipado.
Não vai. O logro é absoluto.
Melhor relaxar os músculos
e aproveitar o espetáculo.

v

Súbito? Não. A coisa morre à míngua,
um risco vira traço e o traço, ponto.
Por exemplo: uma manhã de domingo,
a
mesa posta pro café, tudo pronto
pra não se fazer nada — ou então
a noite de uma terça-feira inane,
sob o quebranto da televisão —
mas isso não importa; que se dane
o tempo, e o lugar também (um boteco?
o elevador?) — pois chegou ao final
um processo previsível, perverso,
trivial, que reduziu o universo
a uma bolinha de papel, da qual
você se livra com um peteleco.




do livro Formas do Nada

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