terça-feira, 7 de maio de 2019

O ÚLTIMO NEFELIBATA


Lendo uma tese que trata da existência ou não de uma literatura paranaense, me lembrei desse velho conto, que dialoga com várias gerações de escritores do Paraná:

O ÚLTIMO NEFELIBATA

Todo mundo é meio nefelibata em Curitiba. Meio pitagórico, meio vampiro, meio cachorro louco. Eu também. De dia durmo, rumino, medito. De noite saio, tomo uns tragos, frequento becos, bocas, contemplo a lua – quando ela dá as caras, é claro. Já fui professor de cursinho, redator publicitário, corretor de seguros, vendendor de móveis usados. Já vendi plano de saúde, assinatura de tevê a cabo, filtro dágua de barro. Até apontador de jogo de bicho já fui. Como não tenho mais idade para fazer malabares e ainda me sobrou um pouco de vergonha na cara para pedir esmola, estou aí, arrolado nas estatísticas dos sem ocupação. Mas não pensem que eu sou um desocupado. Trabalho duro. Teimo, limo, sofro, suo. Passo os dias – é preciso acentuar – compilando meus poemas. Trinta anos de produção. Não é fácil, meu amigo. Trinta anos alinhavando palavras, catando rimas, escandindo sílabas, marcando cesuras. São páginas e páginas de papel almaço, cadernos escangalhados, folhas datilografadas ou digitadas e impressas nas lan houses mais ordinárias da cidade. A maioria não presta. Sei disso. Depois de muito esforço, quem sabe eu consiga o suficiente para um opúsculo. (Opúsculo, gosto dessa palavra.) Falam de morte, de bruma, de brisa, de lua. E de mãe. É, e de mãe. Freud explica. Ou o diabo. Ah, esqueci de contar: moro com a minha mãe, num apartamento encardido do Alto da Quinze. Ela é aposentada do estado. Com o que ganha, pagamos aluguel, condomínio, luz. O telefone está cortado. Meu celular não sabe o que é crédito há uma cara. Como a aposentadoria dela é uma merreca e eu, como você viu, estou sem renda, é visível que para comer está difícil. Espremendo daqui e dali, fazendo mágica e reza brava, dá para um comer. É claro, sem luxo, pieroguis, estrogonofe, torta alemã, como antigamente. Para dois, ah, isso não dá. Por isso ela vinha dizendo, a velha: ou é tu ou sou eu. Não dá para os dois. Como tu não bota nada dentro de casa há muito tempo, tu cata as tuas coisas e cai fora. Eu dizia: peraí, mãe, pega leve. Não é fácil falar essas coisas, meu irmão. Mãe é sempre mãe. Pode ser velha, pode ter sido puta, mas é mãe. Deixa eu tomar mais um gole, está muito frio, essas noites de Curitiba são o diabo. Como eu tenho essa grana? Olha, meu amigo, a gente pode pasar fome, necessidade, mas sem os vícios a gente não passa. Às vezes rola um bico, um trampo, um trambique. Às vezes, no maior desepero, passo a mão em alguns livros lá da estante e vendo num sebo. Já tive uma senhora biblioteca, prateleiras e prateleiras de lombadas com títulos em francês, inglês, italiano, além dos brasileiros e portugueses de minha estimação: Antônio Nobre, Cesário Verde, Cruz e Souza e o pobre Alphonsus. Agora, não passam de algumas dezenas. Mas quando, assim mesmo, estou sem um puto, ah, aí eu apelo. Na bolsa da velha confisco um trocado. Fico sem remédio, sem comida – um pastel dá para o gasto – mas não fico sem o meu trago. Pobre velha, hão de chorar por ela não digo os cinamomos mas pelo menos os chorões carpideiros da Fernando Moreira. É, meu chapa, estou decadente. Je suis l’émpire à la fin de la décadence, saca? Na verdade, sou decadente: estrela caída, albatroz sem asa, flor do absinto. Sempre fui. Décadence avec élégance. Foi-se a élegance – já fui dândi, echarpes longuíssimas, cabelos à Oscar Wilde –, ficou a décadence. Mas eu não contei tudo. Deixa beber mais. In vino veritas, não é assim? Agora, com o conhaque, a verdade é mais letal. Bom, como eu ia falando, esta noite, ao sair de casa, fui me despedir da velha e não escutei o seu natural grunhido. Recuei, chamei-a novamente. Nada. Silêncio absoluto. Entrei no quarto (eu durmo na sala) e mais uma vez nenhum sinal. Ela teria saído para comprar um cigarro, ir à igreja, ao supermercado, sem que eu percebesse? Não, já era tarde e ela não costuma sair de noite por medo do sereno, da friagem, dos craqueiros. Entrei então no banheiro, pé ante pé, temendo o pior, sabe-se lá, a velha é louca. E vi. Atrás do box quebrado, lá estava ela, pendurada do cano do chuveiro (chuveiro elétrico; detalhe: queimado). Não aguentei. O baque foi grande. Saí para espairecer, dar umas voltas, bater perna, enquanto o corpo esfria. Com o frio que está fazendo, meu irmão, esfria logo, logo. Aliás, o corpo dela nunca foi muito quente. Calor ali só no ódio votado ao filho. Então é isto: saí para relaxar. Gola erguida, chapéu enfiado nos olhos, o rosto contraído contra o vento gélido, sigo pelas ruas, ruelas, vielas, as mais escuras, as mais desertas. Medo de algum maluco, algum drogado? Absolutamente: na mão crispada dentro do capote, a faca. Um dia um piá veio se meter a besta e ficou estirado na calçada, sangrando. Já disse, sou meio louco, vampiro, degenerado. Minha vida é assim. Entro num boteco, peço uma dose, engulo alguns rollmops quase apodrecidos, pago, pego as moedas sobre o balcão, saio de novo. O vento me corta o rosto e, somado ao álcool que começa a circular nas veias, me dá um estranho prazer. A mão no bolso, apalpo o cabo da faca. Logo encontro outro cabo, maior, latejante, aflito por uma bainha sorrateira. Mas não há nenhuma polaca na rua capaz de me satisfazer por vinte pratas. Amigo, a vida é dura para quem nasceu poeta e sem vocação alguma para ganhar dinheiro. Prossigo meu caminho, que é caminho nenhum, transeunte sem rota, sem norte, sem aura, às avessas. O passo veloz, corto as ruas, as esquinas, os canteiros. Alcanço o Largo da Ordem, a essa hora hora ainda povoado pela burguesia adiposa de Curitiba. Atravesso a Praça Tiradentes, escura, um casal bolinando num banco, um mendigo dormindo no outro. Desço pela Rua das Flores, cruzo por punks, ratazanas atravessam o calçadão quase deserto, salvo dois ou três notívagos. Passo pela Boca Maldita, agora calada, seus aposentados dormindo e sonhando com outra Curitiba que os anos não trazem mais. Atinjo a Praça Osório e saúdo – salve, salve, meu príncipe – o busto de Emiliano Perneta na herma entre os pederastas. Todo mundo é meio taciturno em Curitiba, meio poeta, meio louco, meio simbolista. Deve ser o fog londrino que por descuido de São Pedro veio parar também aqui – ou então é o espectro do Dario Veloso ou do Rocha Pombo que não nos deixa em paz. Quanto a mim, sou inteiramente sombrio, hipocondríaco, merencório, como se dizia antigamente. (Merencório, gosto dessa palavra.) Nasci sob o signo de Saturno, odeio sol, odeio luz, odeio sorriso de criança. Jardins, triciclos, balões coloridos? Estou fora. Chás em academias, ciclos de leitura, cafés com viados metidos a intelectuais? Também estou fora, camarada. Dou a volta, subo pela Visconde de Guarapuava, chego à Fernando Moreira, observo os supracitados chorões sobre o córrego que não vê peixe há muitas décadas e me recordo da enforcada. Meu velho, eu me preveni. Do último trampo me sobrou uma grana, com a qual eu fiz um seguro para ela. Com o cobre edito o opúsculo. O título? O último nefelibata. É isso aí, cara, eu sou o último nefelibata, o último autêntico dessa capital provinciana que já teve dias melhores e que por um mero acaso, já disse, um puro capricho dos deuses, veio parar nesse país entre os tristes trópicos. Subo agora pela Cândido Lopes, ali a Biblioteca Pública, museu dos paranistas. Mais uma dose. Pelo menos eu vou ficar com o seguro. Menos mal. Para ela eu acendo uma vela, afinal era minha mãe, doidivanas, decrépita, mas minha mãe, uma vela bem grande, do tamanho dela, preta, que é para ela não sair do inferno. Uma estadia no inferno? Não, a eternidade. Ela disse: com a titica que eu ganho só dá para um, endendeu? Só dá para um. Como tu não serve para nada, nem para consertar a bosta de um chuveiro, tu cai fora. É duro ouvir isso da mãe da gente. Bom, a conversa está boa mas eu vou andando, tenho que dar parte na delegacia. Seu delegado, que horror, a minha mãe se matou, se dependurou do cano do chuveiro em seu último cachecol. É conveniente chorar um pouco. Mas bem pouco. Ninguém chora muito por uma velha louca. A noite, a brisa, a bruma, o álcool me dão uma estranha sensação, como eu disse. À mente me vem versos, árias, imagens. Quero morrer assim: uma garrafa de conhaque de um lado, um livro do Edgar Allan Poe do outro. Tedium vitae, spleen, nevroses, como se falava. (Nevrose, gosto dessa palavra.) Já disse: sou meio louco, vampiro, cão danado. Já fui pitagórico, rosacruz, bati ponto no Templo das Musas, já bebi sangue de galinha no cemitério. Agora estou mais cool, o meu divertimento é tomar um conhaque e andar a esmo pelas ruas de Curitiba, saudando os mendigos, as prostitutas, os invertidos. Sou poeta e portanto inadaptado à vida. Sem um trago, meu velho, não dá. Não dá para aguentar o frio, não dá para aguentar a vida, não dá para aguentar a velha me dizendo todo santo dia, como se eu tivesse dezessete anos, que se eu não arranjar mufunfa alguma ela me enxota de casa. Que Deus a tenha. No inferno não vai precisar de chuveiro elétrico. Nau sem rumo, barco embriagado, estou de volta ao São Francisco. Me apraz contemplar as fachadas desses casarões centenários na névoa das três e quarenta da matina. Pouca gente na rua agora, um guarda noturno, um cachorro sarnento, um velho fedido dormindo na rua. Mas devo seguir, despetalar até o fim a última flor do mal. Me desvio de um crioulo bêbado, atravesso a avenida, os faróis do carro são duas grandes nebulosas. Chego a este bar, quatro mesas, três fregueses e encontro você – que me fez a gentileza de ouvir esta história. Foi muito boa a conversa, meu chapa. Deu para espairecer. Mas devo seguir viagem. Cumprir meu destino. O corpo já deve estar frio, gelado, ficando azul, os olhinhos saltados. Muito prazer. Deixa que esta eu pago. Faço questão. Não está lembrado? Eu tenho uma chelpa para receber. Com licença, preciso ir à delegacia. Que maçada essas coisas, velório, enterro, apertos de mão. Parente velho só serve mesmo para morrer. Eu nunca fui muito prático. Fazer o quê? É a vida. As pessoas nascem, as pessoas morrem. Entre uma coisa e outra elas pagam contas, tomam remédios, suportam filas e se desesperam. Algumas, as mais sensíveis e delicadas, fazem versos, como eu. Versos inúteis que não publicam. Ah, mas dá na mesma, foder ou ser fodido, escrever ou ser escrito, poeta ou salafrário. Agora eu vou. Encaro o delegado e conto que a velha se matou. Afinal, foi ela que disse: ou é tu ou sou eu. Não dá para os dois. Ou danço eu ou dança ela, meu irmão. Como eu sou mais esperto, dançou ela. Todo mundo é meio psicótico em Curitiba. Menos eu.

Otto Leopoldo Winck

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