Ah, a bipolaridade poética de um domingo frio e cinza...
poemas de amor e raiva numa tarde só...
Febre e o deslizamento da terra
Cada vez mais tenho febre, cada vez mais a criança no meu
peito
Incendeia-se.
Acho que tenho mesmo uma fornalha no meu peito.
Hoje tenho febre de novo, e o passado volta quente
Como a toalha de um barbeiro ensandecido.
O lençol da cama, branco e encharcado como uma mortalha
De soldado, o suor virado sangue no delírio,
Os lírios todos colhidos e jogados
Para fora do espírito.
Estou com febre.
Dêem-me um termômetro, por favor.
A febre... A febre... a lebre...
O deslizamento da terra cai morro abaixo, do cérebro aos
pés,
Misturando miragens e experiências, sonhos e pesadelos, tudo
na mesma
Panela quente que cozinha o corpo por dentro.
As bonecas, videogames, casacos, vestidos, blusas e
gravatas,
Utensílios de cozinha, bíblias baratas e caras,
Artigos de umbanda, gritos enlameados, coitos afogados,
Abraços não terminados e abraços terminados, telefones
celulares,
CDs e discos de vinil, esperanças de uma favela mais bonita,
Avisos da Defesa Civil, sorrisos de escárnio e santinhos de
vereadores,
A voz abafada dos pastores, que também morreram soterrados e
afogados,
Tudo nesta maldita lama que mais parece o excremento de um
sadismo geológico.
A lebre ─ a lebre! ─ salta para os olhos com um buraco
escorrendo vida vermelha e quente pela grama,
O cão latindo e a perseguindo com o instinto nos dentes,
O cão, o fiel e imbecil amigo da estupidez chamada homem,
O gato que afia as unhas no poste perto da minha janela
Anunciando a música dos bebês do inferno...
Por que minha casa ainda permanece de pé?
Por que só as rachaduras gigantescas na parede vermelha do
fundo?
Por que só as horrendas cicatrizes no coração da parede?
Não há bombeiros para apagar o fogo do peito?
Não. Não há. E mesmo que houvesse, todos os telefones foram
Depredados por cadáveres, pela terra e pelas pedras que não
pensam.
E logo virão os ratos e os cachorros retornando aos lobos do
passado,
Logo virão os homens e as mulheres insensíveis, tornados
monstros
Pelos ratos e cachorros em suas fomes, raiva e falta de
compaixão,
Logo virão os saques dos corações, das casas e dos caminhões
de doação,
Logo virão os novos deslizamentos e os novos horrores,
Logo virão os corpos sussurando silêncios,
Logo virão às carícias desesperadas das mães,
Logo virão as imagens absurdamente tangíveis e que ensinam
lágrimas aos pais,
Logo virão os agradecimentos estúpidos ao deus que salvou
apenas um menino,
Logo virá a lebre ferida e ensangüentada,
Logo virá a febre
Ainda mais forte.
Por favor, dêem-me um termômetro,
Dêem-me um termômetro
Que eu quero furar meus olhos.
André
De Castro
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