sexta-feira, 26 de abril de 2013

EM ALGUM LUGAR


texto do mestre Dante Mendonça sobre o gênio Karam

EM ALGUM LUGAR
(Hoje o escritor, dramaturgo e jornalista faria 66 anos de vida. A crônica abaixo foi escrita em 04/11/2009, no jornal O Estado do Paraná)

Alguns meses antes de partir para Alhures do Sul, o escritor Manoel Carlos Karam nos enviou esta mensagem: “Solda e Dante: no anexo, a minha crônica de hoje no fim da tarde e amanhã de manhã na BandNews. Caso vocês discordem de alguma coisa, mandem o advogado de vocês falar com o meu, grande abraço”.
“Eu me lembro. Eu me lembro do cartunista Solda dizendo que morava no bairro São Braz e Água Fresca. Eu me lembro do único cigarro fumado pelo iluminador Beto Bruel. Eu me lembro do poeta Paulo Leminski fazendo salamaleques para o amigo árabe. Eu me lembro quando Poty Lazzarotto me confundiu com o pintor Jair Mendes e conversou comigo durante meia hora. Eu me lembro do cartunista Dante Mendonça creditando o milagre da multiplicação dos peixes à Xerox. Eu me lembro do craque da bola Krüger quando era ourives na Rua São Francisco. Eu me lembro do cartunista Pancho desenhando os quadrinhos do Capitão Esbórnia. Eu me lembro da primeira vez em que vi Dalton Trevisan na porta da Livraria Ghignone na Rua das Flores. Eu me lembro do livro Eu me lembro, de Georges Perec. Eu me lembro quando combinei comigo mesmo que continuaria me lembrando”.
Eu me lembro, dia desses o escritor Ivan Lessa abriu sua crônica no site BBC Brasil no presente: “O passado é um lugar mais agradável onde se viver. Além do importante fato de ele nunca ter existido. A gente vai e escolhe o passado que nos parecer mais interessante. Nem tem que passar na caixa para pagar nem nada. O passado é de graça e nele vale tudo. Como eu vivo no passado, gasto pouco, embora meu papo seja meio sobre o chato para quem der o azar de me pegar discursando sobre os egrégios “bons tempos’, “aqueles dias que não voltam mais’, “na minha época era bem melhor’ e outros lugares-comuns sofridos por qualquer pessoa que já deu uma bobeada e se sentou ao lado de um passadista. “Os passadistas já eram’, pensam ou dizem elas, mal se dando conta do razoável jogo de palavras em que se embrenharam descuidados, jovens e inexperientes que são”.
Eu me lembro... dirigi uma peça de teatro de Manoel Carlos Karam chamada “O avião parte às cinco”. Com Sansores França, Beto Guiz, sonoplastia de Solda e iluminação de Beto Bruel. No Teatro do Paiol, ganhamos quase todos os prêmios locais e ainda viajamos pelo Brasil. Para os não passadistas, esclareça-se que “às cinco” remete ao “AI-5”, de triste passado .
No final do espetáculo, Solda mandava rolar a fita da passadista canção Casinha Pequenina, de domínio público e sucesso de Sílvio Caldas: Tu não te lembras da casinha pequenina / Onde o nosso amor nasceu? / Tinha um coqueiro do lado / Que coitado de saudade / Já morreu.
E então, com o público disfarçando lágrimas, Sansores França declamava o poema do Karam, do qual não lembro inteiro, mas do verso final até hoje os passadistas guardam: “Não tenho saudade do passado. Tenho saudade do futuro!”.
Daquele passado imperfeito, eu me lembro.... da Polícia Federal, nos ensaios, quando submetido à censura (tinha uma censora de belas pernas que ganhava a cena com a calcinha à mostra, olhando-se do palco do Paiol) o texto ganhava tesoura federal. Desde a estreia, agentes do AI-5 pediam ingressos para assistir o espetáculo (sim, era um espetáculo para as nossas frustrações) diariamente tentar controlar possíveis (e sempre possíveis) desvios das frases assinaladas em vermelho. Em contrapartida, enviávamos aos esbirros da ditadura ingressos com um imperceptível sinal para os bilheteiros identificarem os tristes portadores. E bilheteiros éramos todos, fazíamos de tudo e muito mais se preciso fosse: da produção à autoria, da direção à sonoplastia, da iluminação à maquiagem, do cartaz à colagem nos tapumes da cidade.
Eu me lembro... de Nelson Rodrigues a aconselhar: “Jovens, envelheçam!” Rápido e urgente. O passado é um lugar mais agradável onde se viver”.

Nenhum comentário: