texto do mestre Dante Mendonça sobre o gênio Karam
EM ALGUM LUGAR
(Hoje o escritor, dramaturgo e jornalista faria 66 anos de
vida. A crônica abaixo foi escrita em 04/11/2009, no jornal O Estado do Paraná)
Alguns meses antes de partir para Alhures do Sul, o escritor
Manoel Carlos Karam nos enviou esta mensagem: “Solda e Dante: no anexo, a minha
crônica de hoje no fim da tarde e amanhã de manhã na BandNews. Caso vocês
discordem de alguma coisa, mandem o advogado de vocês falar com o meu, grande
abraço”.
“Eu me lembro. Eu me lembro do cartunista Solda dizendo que
morava no bairro São Braz e Água Fresca. Eu me lembro do único cigarro fumado
pelo iluminador Beto Bruel. Eu me lembro do poeta Paulo Leminski fazendo
salamaleques para o amigo árabe. Eu me lembro quando Poty Lazzarotto me
confundiu com o pintor Jair Mendes e conversou comigo durante meia hora. Eu me
lembro do cartunista Dante Mendonça creditando o milagre da multiplicação dos
peixes à Xerox. Eu me lembro do craque da bola Krüger quando era ourives na Rua
São Francisco. Eu me lembro do cartunista Pancho desenhando os quadrinhos do
Capitão Esbórnia. Eu me lembro da primeira vez em que vi Dalton Trevisan na
porta da Livraria Ghignone na Rua das Flores. Eu me lembro do livro Eu me
lembro, de Georges Perec. Eu me lembro quando combinei comigo mesmo que
continuaria me lembrando”.
Eu me lembro, dia desses o escritor Ivan Lessa abriu sua
crônica no site BBC Brasil no presente: “O passado é um lugar mais agradável
onde se viver. Além do importante fato de ele nunca ter existido. A gente vai e
escolhe o passado que nos parecer mais interessante. Nem tem que passar na
caixa para pagar nem nada. O passado é de graça e nele vale tudo. Como eu vivo
no passado, gasto pouco, embora meu papo seja meio sobre o chato para quem der
o azar de me pegar discursando sobre os egrégios “bons tempos’, “aqueles dias
que não voltam mais’, “na minha época era bem melhor’ e outros lugares-comuns
sofridos por qualquer pessoa que já deu uma bobeada e se sentou ao lado de um
passadista. “Os passadistas já eram’, pensam ou dizem elas, mal se dando conta do
razoável jogo de palavras em que se embrenharam descuidados, jovens e
inexperientes que são”.
Eu me lembro... dirigi uma peça de teatro de Manoel Carlos
Karam chamada “O avião parte às cinco”. Com Sansores França, Beto Guiz,
sonoplastia de Solda e iluminação de Beto Bruel. No Teatro do Paiol, ganhamos
quase todos os prêmios locais e ainda viajamos pelo Brasil. Para os não
passadistas, esclareça-se que “às cinco” remete ao “AI-5”, de triste passado .
No final do espetáculo, Solda mandava rolar a fita da passadista
canção Casinha Pequenina, de domínio público e sucesso de Sílvio Caldas: Tu não
te lembras da casinha pequenina / Onde o nosso amor nasceu? / Tinha um coqueiro
do lado / Que coitado de saudade / Já morreu.
E então, com o público disfarçando lágrimas, Sansores França
declamava o poema do Karam, do qual não lembro inteiro, mas do verso final até
hoje os passadistas guardam: “Não tenho saudade do passado. Tenho saudade do
futuro!”.
Daquele passado imperfeito, eu me lembro.... da Polícia
Federal, nos ensaios, quando submetido à censura (tinha uma censora de belas
pernas que ganhava a cena com a calcinha à mostra, olhando-se do palco do
Paiol) o texto ganhava tesoura federal. Desde a estreia, agentes do AI-5 pediam
ingressos para assistir o espetáculo (sim, era um espetáculo para as nossas
frustrações) diariamente tentar controlar possíveis (e sempre possíveis)
desvios das frases assinaladas em vermelho. Em contrapartida, enviávamos aos
esbirros da ditadura ingressos com um imperceptível sinal para os bilheteiros
identificarem os tristes portadores. E bilheteiros éramos todos, fazíamos de
tudo e muito mais se preciso fosse: da produção à autoria, da direção à
sonoplastia, da iluminação à maquiagem, do cartaz à colagem nos tapumes da
cidade.
Eu me lembro... de Nelson Rodrigues a aconselhar: “Jovens,
envelheçam!” Rápido e urgente. O passado é um lugar mais agradável onde se
viver”.
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