De um homem que completou os setenta anos recomendados por
David pouco podemos esperar, salvo o manejo consabido de algumas destrezas, uma
que outra ligeira variação e fartas repetições. Para eludir ou ao menos atenuar
essa monotonia, optei por aceitar, talvez com temerária hospitalidade, a
miscelânea de temas que se ofereceram a minha rotina de escrever. A parábola
sucede à confidência, o verso livre ou branco ou soneto. No princípio dos
tempos, tão dócil à vaga especulação e às inapeláveis cosmogonias, não deve ter
havido coisas poéticas ou prosaicas. Tudo seria um pouco mágico. Thor não era o
deus do trovão; era o trovão e o deus.
Para um verdadeiro poeta, cada momento da vida, cada fato,
deveria ser poético, já que profundamente o é. Que eu saiba, ninguém alcançou
até hoje essa alta vigília. Browning e Blake se aproximaram mais do que
qualquer outro; Whitman a propôs, mas suas deliberadas enumerações nem sempre
passam de catálogos insensíveis.
Descreio das escolas literárias, que considero simulacros
didáticos para simplificar o que ensinam, mas, se me obrigassem a declarar de
onde procedem meus versos, diria que do modernismo , essa grande liberdade, que
renovou as muitas literaturas cujo instrumento comum é o castelhano e que
chegou, por certo, até a Espanha. Conversei mais de uma vez com Leopoldo
Lugones, homem solitário e soberbo; este costumava desviar o curso do diálogo
para falar de “meu amigo e mestre, Rubén Darío”. (Creio, também, que devemos
sublinhar as afinidades de nosso idioma, não seus regionalismos.)
Meu leitor notará em algumas páginas a preocupação
filosófica. Foi minha desde menino, quando meu pai me revelou, com a ajuda do
tabuleiro de xadrez (que era, lembro-me, de cedro), a corrida de Aquiles e da
tartaruga.
Quanto às influências que serão percebidas neste volume...
Em primeiro lugar, os escritos que prefiro – já citei Robert Browning; depois,
os que li e repito, depois os que nunca li mas que estão em mim. Uma idioma é
uma tradição, um modo de sentir a realidade, não um arbitrário repertório de
símbolos.
J.L.B.
Buenos Aires, 1972.
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treze moedas
UM POETA ORIENTAL
Durante cem outonos divisei
Teu tênue disco.
Durante cem outonos divisei
Teu arco sobre as ilhas.
Durante cem outonos os meus lábios
Não foram menos silenciosos.
O DESERTO
O espaço sem tempo.
A lua é da cor da areia.
Agora, exatamente agora,
Morrem os homens do Metauro e de Trafalgar.
CHOVE
Em que ontem, em que pátios de Cartago,
Cai também esta chuva?
ASTÉRION
O ano me tributa meu pasto de homens
E na cisterna há água.
Em mim se estreitam os caminhos de pedra.
De que posso queixar-me?
Nos entardeceres
Pesa-me um pouco a cabeça de touro.
UM POETA MENOR
A meta é o esquecimento.
Eu cheguei antes.
GÊNESIS, 4, 8
Foi no primeiro deserto.
Dois braços atiraram uma grande pedra.
Não houve grito. Houve sangue.
Houve pela primeira vez a morte.
Já não me lembro se foi Abel ou Caim.
NORTÚMBRIA, 900 A.D.
Que antes do alvorecer o despojem os lobos;
A espada é o caminho mais curto.
MIGUEL DE CERVANTES
Cruéis estrelas e propícias estrelas
Presidiriam a noite de minha gênese;
Devo às últimas o cárcere
Em que sonhei o Quixote.
O OESTE
O beco final com seu poente.
Inauguração do pampa.
Inauguração da morte.
ESTÂNCIA EL RETIRO
O tempo joga um xadrez sem peças
Ali no pátio. O rangido de uma rama
Rasga a noite. Lá fora a planície
Léguas de pó e sonho esparrama.
Sombras os dois, copiamos os que ditam
Outras sombras: Heráclito e Gautama.
O PRISIONEIRO
Uma lima.
A primeira das pesadas portas de ferro.
Um dia serei livre.
MACBETH
Nossos atos prosseguem meu caminho,
Que não conhece fim.
Matei meu rei para que Shakespeare
Urdisse sua tragédia.
ETERNIDADES
A serpente que cinge o mar e é o mar,
O repetido remo de Jasão, a jovem espada de Sigurd.
Só perduram no tempo as coisas
Que não foram do tempo.
Borges, in “O ouro dos tigres” (1972)
Tradução: Josely Vianna Baptista.
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