sábado, 19 de novembro de 2016

A suspeita como um exercício de várias vertigens


A poética de Marilia Kubota chega a ser, por momentos, de um extremo laconismo que não descarta a surpresa nem o lúdico. Parece definir-se a partir de sua forma e estrutura internas, de seus suportes léxicos; de forma que resulte pertinente ler este conjunto de textos como poemas processos, cujo alcance não é outro que eles mesmos. Falamos de uma autossuficiência que por extensão pretende abarcar (“fazer emigrar”, diria o poeta Roberto Echavarren) os níveis exteriores (históricos, sociais, filosóficos) à escritura até os territórios do traço, até a matéria prosódico-gramatical. É a configuração e uma cena que se pensa a si mesma, atenta aos deslocamentos intrínsecos que a provocam. Inclusive me atreveria a dizer que algumas categorias como as de História e Realidade ultrapassam a atuação como condicionantes do texto para serem possíveis a partir dele. Em todo caso, tais categorias se diluem na densa concentração de seu apalavramento. Ultrapassaram a condição de macrorrelatos culturais para ser tecidos de escritura. Indução e não exteriorização das partes.
As estratégias que leva a cabo para esse desdobramento de minimalismos vários se sustentam, às vezes, no confessional, no registro cortante de uma manchete de jornal, na enumeração quase desvaída, na repetição anafórica do que é e não se é - como nos tratados medievais dos teólogos negativos. Marilia instala uma pulsão; e em seu ritmo sem pausa, o inconsciente manifesta o sintoma, o dizer, certo desatino que margeia o incomprensível ou ilegível e que chega a diferenciar a lógica da possibilidade e a probabilidade. Enquanto a primeira mantém uma relação indeterminada ou melhor, potencial, contingente, fortuita com a ordem do empírico e o fático, a segunda admite a aplicação de uma prova, de um testemunho, a possível verificação ou constância de uma porção de realidade. Como se poderá observar, a possibilidade é condição da probabilidade e e não ao contrário, a não ser que o possível mude de estatuto ôntico e se revele feito como realidade. O possível é uma abertura do binário (possível-impossível), sua divisão ou partição até o infinito cósmico, ali onde a maquinaria do desejo resida no sem futuro nem passado/que afinal tudo seja/celebrar a incerteza. E é também o que nos leva a advertir a presença leve da anamorfose, onde a imagem se transforma ao ritmo dos versos sem pontuação. Assim, vários destes poemas operam refrações, figurações enviesadas por reflexos equívocos, incertos, inacabados mas envoltos na espiral (na dobra) do contínuo.
A modo de fechamento, recordemos que a arbitrariedade da autora considerar este poemário como um diário íntimo não é mais que uma mis-en-scene. E esta mis-en-scene põe em relevo a situação de uma enunciação que irrompe nos conjuntos fixos e estáveis daqueles bens simbólicos dos que se reconheciam em grupos diferenciados e hierarquizados. Esta ruptura de repertórios diferenciados teria lugar como um entrecruzamento e renovação permanente de hierarquias que desdesenha as fronteiras entre conjuntos de objetos, práticas e discursos do culto, o popular e o massivo (como é de observar em trem-fantasma e les jeunes filles en fleur ). Falamos, então, da transcrição de um lugar, de um espaço-tempo predominante deste fenômeno que é o fluxo dos meios massivos e suas realizações, em particular, o caso dos videoclips. Ou de suas vertigens.


Martim Palácio Gamboa é poeta, ensaísta, tradutor e músico. Estudou literatura no Instituto de Professores Artigas, em Montevidéu. Livros de ensaios: Los trazos de Pandora, Otras voces, otros territorios, Breves ensayos sobre la nueva poesía brasileña contemporánea y Las estrategias de lo refractario, Poética y prática vanguardistas de Clemente Padín. Livros de poesia: Lecciones de antropofagia e Celebriedad del fauno. Organizou a antologia bilíngüe Bicho de Siete Cabezas.

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