A poética de Marilia Kubota chega a ser, por momentos, de um
extremo laconismo que não descarta a surpresa nem o lúdico. Parece definir-se a
partir de sua forma e estrutura internas, de seus suportes léxicos; de forma
que resulte pertinente ler este conjunto de textos como poemas processos, cujo
alcance não é outro que eles mesmos. Falamos de uma autossuficiência que por
extensão pretende abarcar (“fazer emigrar”, diria o poeta Roberto Echavarren)
os níveis exteriores (históricos, sociais, filosóficos) à escritura até os
territórios do traço, até a matéria prosódico-gramatical. É a configuração e
uma cena que se pensa a si mesma, atenta aos deslocamentos intrínsecos que a
provocam. Inclusive me atreveria a dizer que algumas categorias como as de História
e Realidade ultrapassam a atuação como condicionantes do texto para serem
possíveis a partir dele. Em todo caso, tais categorias se diluem na densa
concentração de seu apalavramento. Ultrapassaram a condição de macrorrelatos
culturais para ser tecidos de escritura. Indução e não exteriorização das
partes.
As estratégias que leva a cabo para esse desdobramento de
minimalismos vários se sustentam, às vezes, no confessional, no registro
cortante de uma manchete de jornal, na enumeração quase desvaída, na repetição
anafórica do que é e não se é - como nos tratados medievais dos teólogos
negativos. Marilia instala uma pulsão; e em seu ritmo sem pausa, o inconsciente
manifesta o sintoma, o dizer, certo desatino que margeia o incomprensível ou
ilegível e que chega a diferenciar a lógica da possibilidade e a probabilidade.
Enquanto a primeira mantém uma relação indeterminada ou melhor, potencial,
contingente, fortuita com a ordem do empírico e o fático, a segunda admite a
aplicação de uma prova, de um testemunho, a possível verificação ou constância
de uma porção de realidade. Como se poderá observar, a possibilidade é condição
da probabilidade e e não ao contrário, a não ser que o possível mude de
estatuto ôntico e se revele feito como realidade. O possível é uma abertura do
binário (possível-impossível), sua divisão ou partição até o infinito cósmico,
ali onde a maquinaria do desejo resida no sem futuro nem passado/que afinal
tudo seja/celebrar a incerteza. E é também o que nos leva a advertir a presença
leve da anamorfose, onde a imagem se transforma ao ritmo dos versos sem
pontuação. Assim, vários destes poemas operam refrações, figurações enviesadas
por reflexos equívocos, incertos, inacabados mas envoltos na espiral (na dobra)
do contínuo.
A modo de fechamento, recordemos que a arbitrariedade da
autora considerar este poemário como um diário íntimo não é mais que uma
mis-en-scene. E esta mis-en-scene põe em relevo a situação de uma enunciação
que irrompe nos conjuntos fixos e estáveis daqueles bens simbólicos dos que se
reconheciam em grupos diferenciados e hierarquizados. Esta ruptura de
repertórios diferenciados teria lugar como um entrecruzamento e renovação
permanente de hierarquias que desdesenha as fronteiras entre conjuntos de
objetos, práticas e discursos do culto, o popular e o massivo (como é de
observar em trem-fantasma e les jeunes filles en fleur ). Falamos, então, da
transcrição de um lugar, de um espaço-tempo predominante deste fenômeno que é o
fluxo dos meios massivos e suas realizações, em particular, o caso dos
videoclips. Ou de suas vertigens.
Martim Palácio Gamboa é poeta, ensaísta, tradutor e músico.
Estudou literatura no Instituto de Professores Artigas, em Montevidéu. Livros
de ensaios: Los trazos de Pandora, Otras voces, otros territorios, Breves
ensayos sobre la nueva poesía brasileña contemporánea y Las estrategias de lo
refractario, Poética y prática vanguardistas de Clemente Padín. Livros de
poesia: Lecciones de antropofagia e Celebriedad del fauno. Organizou a
antologia bilíngüe Bicho de Siete Cabezas.
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