Mateus empurrou a porta ao sair do apartamento e teve
certeza de que estava bem fechada quando ouviu o estalido do batente e a
lingueta da fechadura disparando contra a moldura; então girou com vigor e
determinação a chave na fechadura. Uma cabeça curiosa espichou-se de uma das
portas no fim do corredor. Mateus mal a observou: não tinha tempo para preocupar-se
com intrometidos.
Dentro do apartamento Zeca Pagodinho mandava botar dendê no
vatapá através das ondas do rádio que atravessavam a parede.
Foi a última coisas que Mateus ouviu antes de entrar no
elevador.
Ele podia contar-se entre aqueles que sentiam-se
obstinadamente independentes e bastantes de si próprios: desapegados e
auto-suficientes, assim podendo esconder seus sentimentos, seus impulsos
instintivos e as carências materiais e emocionais. No alto de seus 25 anos ele
é um aventureiro de passagem, um estrangeiro em sua própria casa, sonhador, à
caça de uma vaga utopia, sempre distante, inatingível, que não se permite
envolvimento nem entrega. Trabalha como arquiteto em um empresa da Capital.
Há uns seis meses Mateus colocou alguma bagagem no
porta-malas de seu automóvel e partiu. O roteiro da viagem surgiu naturalmente;
tomou a auto-estrada do litoral. Rodou algumas centenas de quilômetros antes de
fazer a primeira reflexão: a estibordo , São João; à bombordo o mar; na popa
Batista Velho; e a proa apontando a capital, a uns 50 quilômetros. Para onde
ir? Foi o acaso de determinou seu destino naquele então.
Mateus tateou um sanduíche de presunto e queijo no fundo da
mochila; pescou uma lata de guaraná e abriu: bebeu um gole generoso, olhando os
raios dourados do sol. Estava uns 20°C, ou no máximo uns 22°C. Não tinha vento
quando Mateus arrancou uma naco daquele pão macio: o sabor da manteiga caseira
que dona Olinda, dona da pousada na Praia Verde, colocara nas fatias,
estimulou-lhe as papilas e o lanche cresceu em autoridade e excelência.
O mais eram os peixes: era a vez deles comparecerem. O
samburá cheio de iscas feitas com carne bovina por seu Alfredo, marido de dona
Olinda, sobre quem ouviu dizer que tinha anzóis enfiados nos braços e pernas,
sequelas de uma vida de pescador profissional. Cerca das oito horas da manhã, o
primeiro peixe fez a linha de mão correr; o caniço continuava quieto.
O azar do peixe é a sorte do pescador. Que tipo de peixe?
Qual o nome? Isso não importou nem um pouquinho; peixe é o que é: tem escamas
ou não, nadadeiras e guelra sempre. Um, dois, três, uma bela enfiada em três
horas de pescaria. por volta das onze horas o sol já esquentava bastante. O
tempo estava bom, o céu estava aberto e a temperatura alcançara entre 29°C e
30°C.
O novato pescador apontou a proa do seu barquinho em direção
ao continente: na popa o motorzinho roncava monordiamente, no compasso,
tranquilo e sem pressa. O sol à pino, bem no meio do céu jogava toda sua luz
sobre a chapa brilhante da água tranquila e preguiçosa, como o ronco do
barquinho. A pequena embarcação ia deslizando naquele espelho radiante, abrindo
um corte na água, que atrás ia logo se fechando.
O incipiente vilarejo na Praia verde foi crescendo à medida
que o barco se aproximava daquelas poucas casas rústicas, muitos barcos sobre
as areias quentes, redes e gente de pele queimada de sol e sal. Seu Alfredo,
agora era um pescador aposentado, o aguardava na praia; ajudou-o a arrastar o
barco para a terra firme e sorriu ao cruzar os olhos na direção da enfiada de
peixes: "O senhor é bom, como anzol ein!"
Seu alfredo sentiu uma pontinha de saudade da profissão que
exercera durante longo tempo - ele que agora tratava de ganhar uns
"cobres" alugando três barcos e hospedando turistas.
Mateus, entretanto, hospedara-se na cidade, a uns
quilômetros dali, e não na Colônia dos Pescadores. Antes das duas horas da
tarde chegou á Pousada do Chico, que na realidade era um hotel mesmo e não
pousada, apesar do informalismo que a clientela tinha em suas dependências:
liberdade pra assaltar a geladeira, cozinhar e se quisesse, até até lavar a
própria roupa, economizando com esses serviços.
Apeou do carro ao mesmo tempo que seu Alfredo saia pela
porta do carona. No céu o vento empurrava uns tufos de nuvens brancas como
algodão doce. Mateus carregou os peixes para os fundos da casa e os limpou
conforme a orientação de seu Alfredo. Dona Madalena - casada como Chico,
"a patroa", como ele a tratava, ficou entusiasmada - e certamente
espantada - que um garotão de cepa urbana tivesse apanhado tantos peixes -
secretamente chegou a duvidar que ele os tivesse pescado: "Deve ter
comprado na Colônia" -, pensou; no entanto tratou de elogiar o hóspede
sortudo; "Muito bem, seu Mateus" -, disse educadamente.
Mateus lembrou durante muito tempo daquela noite. Como eram
mais de dez quilos de peixe, os outros hóspedes também se banquetearam: peixe
frito com cerveja gelada pra começar; depois "Zeviche" pra seduzir o
apetite principal com muita pimenta e limão, regado à cerveja para tira a
queimação. No final, peixe à escabeche com cebola fatiada tomate pimentão e
rodelas de batata. Foi ótimo.
Nos dias que se seguiram foi uma rotina parecida: pescar,
nadar.
No quarto dia Mateus começou a perceber uma mesmice. No
quinto dia tudo mudou. Aliás tudo virou do avesso, ou como preferir, depois
que, ao anoitecer, um automóvel encostou mansamente em frente à pousada: Mateus
teve um pressentimento quando viu aqueles cabelos flexíveis, esvoaçantes,
ondulados. Acendeu-se nele um interesse diferente ao compreender tantos
detalhes daquela figura feminina que via pela primeira vez: rosto ideal,
cintura recomendada, ombros arredondados, pés descalços, altura certa, vestindo
shorts e blusa de algodão.
Mateus teve um lapso de ausência quando cruzaram os olhos,
alguma coisa esvaziou-se nele, ou encheu-se, era um efeito estranho e
arrebatador; ele foi a primeira coisa em que ela pousou os olhos ao descer do
veículo. Priscila era o nome da epifania diante do jovem arquiteto.
Mateus ficou na Pousada do Chico mais duas semanas."Tá
se dando bem ein" -, disse-lhe o dono da casa meia dúzia de vezes - com
malícia e sem nenhum constrangimento.
Na proa, o mar, à estibordo ela, Priscila, mais a noite, a
lua. E o fogo que alumiava as trevas, incendiava as expectativas, até que todos
os excessos foram consumidos.
Ao final das duas semanas, Mateus e Priscila trocaram
telefones. Quando ela se foi, Mateus sentiu um buraco abrir-se no peito, cada
um seguindo em direções opostas, afastando-se, a distância aumentando.
Priscila vive no outro extremo do país. Aos 30 anos, ela é
uma pessoa aplicada à realização prática de assuntos de natureza material. Suas
responsabilidade de cunho profissional econômico a obrigam a dar as costas às
suas emoções, a suprimir o lado lúdico da existência e encarar a vida de modo
frio e calculado, o que faz dela uma mulher de gelo, racional, competitiva e
agressiva. "Sou muito velha para você", argumentou ela nos primeiros
encontros. Mateus tomou o comentário como brincadeira.
Experiente e madura, Priscila dedica sua vida a obter
sucesso; e tem necessidade de expor isso ao público: exibe seu carro último
modelo, quer o destaque da coluna social e só veste griffes importadas. A
Priscila de pés descalços é uma invenção dela na férias; é a outra que passa
boa parte do seu tempo cuidando dos cabelos; mas havia esta outra que passava
férias em praias sem badalação, no mais completo anonimato.
O bom Mateus era um cavalheiro e deixou muitos recados na
secretária eletrônica, que não foram respondidos. Priscila continuou a ser um
pensamento teimoso, um martelo ferindo uma bigorna, exatamente igual todos os
dias.,em todas as linhas que Mateus riscava no seus projetos arquitetônicos.
Ao descer de elevador os dez andares do edifício onde
morava, suas idéias estavam ocupadas com aquilo que se propusera a fazer: o
pensamento veio-lhe assim, como se fosse uma bobagem, ao acordar, com um desejo
irreprimível de saltar do alto de um determinado edifício, de uns 30 andares,
com seu pára-quedas. Mateus era paraquedista. essa ideia descabida era mais um
sintoma do que um projeto.
Saiu do elevador com o pensamento fixo no seu plano,
repassando cada detalhe. O porteiro avisou-o que um vizinho reclamara do da
nível alto do volume de suas músicas. "Tudo bem"-, disse ao porteiro.
O porta-malas do carro já estava carregado. Mateus planejou
entrar no edifício como se viesse à serviço, caso o fosse interceptado pelo
porteiro, mas isso não foi necessário. Tomou o elevador com seu volumosos
contrabando e atingiu o último andar. Restava ainda uma lance de escadas e uma
porta de ferro, que certamente estaria aberta conforme já verificara em três
inspeções.
O bom Mateus encheu-se de coragem, vestiu uma jaqueta de
náilon e encaixou nos ombros o pára-quedas dirigível. E logo subiu no parapeito
do terraço, o equivalente a 31 andares.
O tempo estava muito bom, a temperatura era de uns 23 ou
24ºC, sem vento: apenas uma agradável brisa. Mateus olhou para baixo e sentiu
aquele calafrio de praxe. Não tinha certeza de que se o que sentia era coragem,
mas medo é o que não era; era mais um impulso de confrontar um risco, incendiar
o corpo com a adrenalina do perigo. E ali do parapeito ele saltou.
Não foi como saltar do avião. No início o mergulho era
lento, mas a velocidade cresceu repentinamente; não era ele que caía, mas o
solo que se projetava vertiginosamente na direção dele, como se uma mão gigante
arremessasse a rua inteira no seu rosto. Foi alucinante sentir o corpo cair
numa velocidade de cerca de 600 quilômetros por hora, assim, tão perto do chão.
E lá embaixo, na rua, as pessoas cresciam mais e mais. Mateus viu muitos
rostos, e entre tantos, identificou as feições perfeitas de Priscila. Naquele
exato momento ele puxou as cordas do pára-quedas e iniciou uma trajetória em
direção ao rio que costeia a cidade. Lá, estacionado, o seu carro o esperava.
Pablo del Morales
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