domingo, 9 de abril de 2017

Uma face no abismo


Mateus empurrou a porta ao sair do apartamento e teve certeza de que estava bem fechada quando ouviu o estalido do batente e a lingueta da fechadura disparando contra a moldura; então girou com vigor e determinação a chave na fechadura. Uma cabeça curiosa espichou-se de uma das portas no fim do corredor. Mateus mal a observou: não tinha tempo para preocupar-se com intrometidos.
Dentro do apartamento Zeca Pagodinho mandava botar dendê no vatapá através das ondas do rádio que atravessavam a parede.
Foi a última coisas que Mateus ouviu antes de entrar no elevador.
Ele podia contar-se entre aqueles que sentiam-se obstinadamente independentes e bastantes de si próprios: desapegados e auto-suficientes, assim podendo esconder seus sentimentos, seus impulsos instintivos e as carências materiais e emocionais. No alto de seus 25 anos ele é um aventureiro de passagem, um estrangeiro em sua própria casa, sonhador, à caça de uma vaga utopia, sempre distante, inatingível, que não se permite envolvimento nem entrega. Trabalha como arquiteto em um empresa da Capital.
Há uns seis meses Mateus colocou alguma bagagem no porta-malas de seu automóvel e partiu. O roteiro da viagem surgiu naturalmente; tomou a auto-estrada do litoral. Rodou algumas centenas de quilômetros antes de fazer a primeira reflexão: a estibordo , São João; à bombordo o mar; na popa Batista Velho; e a proa apontando a capital, a uns 50 quilômetros. Para onde ir? Foi o acaso de determinou seu destino naquele então.
Mateus tateou um sanduíche de presunto e queijo no fundo da mochila; pescou uma lata de guaraná e abriu: bebeu um gole generoso, olhando os raios dourados do sol. Estava uns 20°C, ou no máximo uns 22°C. Não tinha vento quando Mateus arrancou uma naco daquele pão macio: o sabor da manteiga caseira que dona Olinda, dona da pousada na Praia Verde, colocara nas fatias, estimulou-lhe as papilas e o lanche cresceu em autoridade e excelência.
O mais eram os peixes: era a vez deles comparecerem. O samburá cheio de iscas feitas com carne bovina por seu Alfredo, marido de dona Olinda, sobre quem ouviu dizer que tinha anzóis enfiados nos braços e pernas, sequelas de uma vida de pescador profissional. Cerca das oito horas da manhã, o primeiro peixe fez a linha de mão correr; o caniço continuava quieto.
O azar do peixe é a sorte do pescador. Que tipo de peixe? Qual o nome? Isso não importou nem um pouquinho; peixe é o que é: tem escamas ou não, nadadeiras e guelra sempre. Um, dois, três, uma bela enfiada em três horas de pescaria. por volta das onze horas o sol já esquentava bastante. O tempo estava bom, o céu estava aberto e a temperatura alcançara entre 29°C e 30°C.
O novato pescador apontou a proa do seu barquinho em direção ao continente: na popa o motorzinho roncava monordiamente, no compasso, tranquilo e sem pressa. O sol à pino, bem no meio do céu jogava toda sua luz sobre a chapa brilhante da água tranquila e preguiçosa, como o ronco do barquinho. A pequena embarcação ia deslizando naquele espelho radiante, abrindo um corte na água, que atrás ia logo se fechando.
O incipiente vilarejo na Praia verde foi crescendo à medida que o barco se aproximava daquelas poucas casas rústicas, muitos barcos sobre as areias quentes, redes e gente de pele queimada de sol e sal. Seu Alfredo, agora era um pescador aposentado, o aguardava na praia; ajudou-o a arrastar o barco para a terra firme e sorriu ao cruzar os olhos na direção da enfiada de peixes: "O senhor é bom, como anzol ein!"
Seu alfredo sentiu uma pontinha de saudade da profissão que exercera durante longo tempo - ele que agora tratava de ganhar uns "cobres" alugando três barcos e hospedando turistas.
Mateus, entretanto, hospedara-se na cidade, a uns quilômetros dali, e não na Colônia dos Pescadores. Antes das duas horas da tarde chegou á Pousada do Chico, que na realidade era um hotel mesmo e não pousada, apesar do informalismo que a clientela tinha em suas dependências: liberdade pra assaltar a geladeira, cozinhar e se quisesse, até até lavar a própria roupa, economizando com esses serviços.
Apeou do carro ao mesmo tempo que seu Alfredo saia pela porta do carona. No céu o vento empurrava uns tufos de nuvens brancas como algodão doce. Mateus carregou os peixes para os fundos da casa e os limpou conforme a orientação de seu Alfredo. Dona Madalena - casada como Chico, "a patroa", como ele a tratava, ficou entusiasmada - e certamente espantada - que um garotão de cepa urbana tivesse apanhado tantos peixes - secretamente chegou a duvidar que ele os tivesse pescado: "Deve ter comprado na Colônia" -, pensou; no entanto tratou de elogiar o hóspede sortudo; "Muito bem, seu Mateus" -, disse educadamente.
Mateus lembrou durante muito tempo daquela noite. Como eram mais de dez quilos de peixe, os outros hóspedes também se banquetearam: peixe frito com cerveja gelada pra começar; depois "Zeviche" pra seduzir o apetite principal com muita pimenta e limão, regado à cerveja para tira a queimação. No final, peixe à escabeche com cebola fatiada tomate pimentão e rodelas de batata. Foi ótimo.
Nos dias que se seguiram foi uma rotina parecida: pescar, nadar.
No quarto dia Mateus começou a perceber uma mesmice. No quinto dia tudo mudou. Aliás tudo virou do avesso, ou como preferir, depois que, ao anoitecer, um automóvel encostou mansamente em frente à pousada: Mateus teve um pressentimento quando viu aqueles cabelos flexíveis, esvoaçantes, ondulados. Acendeu-se nele um interesse diferente ao compreender tantos detalhes daquela figura feminina que via pela primeira vez: rosto ideal, cintura recomendada, ombros arredondados, pés descalços, altura certa, vestindo shorts e blusa de algodão.
Mateus teve um lapso de ausência quando cruzaram os olhos, alguma coisa esvaziou-se nele, ou encheu-se, era um efeito estranho e arrebatador; ele foi a primeira coisa em que ela pousou os olhos ao descer do veículo. Priscila era o nome da epifania diante do jovem arquiteto.
Mateus ficou na Pousada do Chico mais duas semanas."Tá se dando bem ein" -, disse-lhe o dono da casa meia dúzia de vezes - com malícia e sem nenhum constrangimento.
Na proa, o mar, à estibordo ela, Priscila, mais a noite, a lua. E o fogo que alumiava as trevas, incendiava as expectativas, até que todos os excessos foram consumidos.
Ao final das duas semanas, Mateus e Priscila trocaram telefones. Quando ela se foi, Mateus sentiu um buraco abrir-se no peito, cada um seguindo em direções opostas, afastando-se, a distância aumentando.
Priscila vive no outro extremo do país. Aos 30 anos, ela é uma pessoa aplicada à realização prática de assuntos de natureza material. Suas responsabilidade de cunho profissional econômico a obrigam a dar as costas às suas emoções, a suprimir o lado lúdico da existência e encarar a vida de modo frio e calculado, o que faz dela uma mulher de gelo, racional, competitiva e agressiva. "Sou muito velha para você", argumentou ela nos primeiros encontros. Mateus tomou o comentário como brincadeira.
Experiente e madura, Priscila dedica sua vida a obter sucesso; e tem necessidade de expor isso ao público: exibe seu carro último modelo, quer o destaque da coluna social e só veste griffes importadas. A Priscila de pés descalços é uma invenção dela na férias; é a outra que passa boa parte do seu tempo cuidando dos cabelos; mas havia esta outra que passava férias em praias sem badalação, no mais completo anonimato.
O bom Mateus era um cavalheiro e deixou muitos recados na secretária eletrônica, que não foram respondidos. Priscila continuou a ser um pensamento teimoso, um martelo ferindo uma bigorna, exatamente igual todos os dias.,em todas as linhas que Mateus riscava no seus projetos arquitetônicos.
Ao descer de elevador os dez andares do edifício onde morava, suas idéias estavam ocupadas com aquilo que se propusera a fazer: o pensamento veio-lhe assim, como se fosse uma bobagem, ao acordar, com um desejo irreprimível de saltar do alto de um determinado edifício, de uns 30 andares, com seu pára-quedas. Mateus era paraquedista. essa ideia descabida era mais um sintoma do que um projeto.
Saiu do elevador com o pensamento fixo no seu plano, repassando cada detalhe. O porteiro avisou-o que um vizinho reclamara do da nível alto do volume de suas músicas. "Tudo bem"-, disse ao porteiro.
O porta-malas do carro já estava carregado. Mateus planejou entrar no edifício como se viesse à serviço, caso o fosse interceptado pelo porteiro, mas isso não foi necessário. Tomou o elevador com seu volumosos contrabando e atingiu o último andar. Restava ainda uma lance de escadas e uma porta de ferro, que certamente estaria aberta conforme já verificara em três inspeções.
O bom Mateus encheu-se de coragem, vestiu uma jaqueta de náilon e encaixou nos ombros o pára-quedas dirigível. E logo subiu no parapeito do terraço, o equivalente a 31 andares.
O tempo estava muito bom, a temperatura era de uns 23 ou 24ºC, sem vento: apenas uma agradável brisa. Mateus olhou para baixo e sentiu aquele calafrio de praxe. Não tinha certeza de que se o que sentia era coragem, mas medo é o que não era; era mais um impulso de confrontar um risco, incendiar o corpo com a adrenalina do perigo. E ali do parapeito ele saltou.
Não foi como saltar do avião. No início o mergulho era lento, mas a velocidade cresceu repentinamente; não era ele que caía, mas o solo que se projetava vertiginosamente na direção dele, como se uma mão gigante arremessasse a rua inteira no seu rosto. Foi alucinante sentir o corpo cair numa velocidade de cerca de 600 quilômetros por hora, assim, tão perto do chão. E lá embaixo, na rua, as pessoas cresciam mais e mais. Mateus viu muitos rostos, e entre tantos, identificou as feições perfeitas de Priscila. Naquele exato momento ele puxou as cordas do pára-quedas e iniciou uma trajetória em direção ao rio que costeia a cidade. Lá, estacionado, o seu carro o esperava.

Pablo del Morales 

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