sábado, 13 de abril de 2019


Acordo, passo os olhos pela internet e me vem à mente o desabafo de Flaubert: "Eu sempre quis viver numa torre de marfim, mas uma maré de merda está a bater nas paredes, afim de derrubá-la."

Tá difícil viver nessa Torre, dedicado a escandir versos, analisar imagens, mapear intertextualidades... Aliás, esta Torre é fruto do século XIX, época da consolidação da burguesia no poder, quando tudo passa a ser medido pelo valor de troca. E a literatura, sobretudo a poesia, não é muito bem cotada nessa bolsa monetária. Refugiar-se nessa Torre foi a reposta dos artistas a quem o mundo dera as costas.

Engraçado que esta frase foi dita justamente pelo autor que "inventou" o realismo, a escola literária que defende que o real suje a arte.

No século XX, mesmo antes, os escritores foram obrigados a deixar essa Torre, bombardeada pelos dardos malignos do real.

Aqui no Brasil João Cabral já nos revelara que poesia é fezes (Antiode) e Gullar introduzira nela a palavra diarreia (A bomba suja), não como uma palavra de dicionário, mas como uma palavra que revela as estruturas injustas por trás da famigerada Torre:

"No dicionário a palavra
é mera ideia abstrata.
Mais que palavra, diarreia
é arma que fere e mata."

Bom, como não dá, diante dos abominações de nosso desgoverno, retornar à Torre, o jeito é fazer da merda poesia.

Termino com mais uns versos do Gullar dos bons tempos:

"Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do horror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato

um poema
uma bandeira"

Otto Leopoldo Winck

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