sábado, 13 de abril de 2019

SALGADO MARANHÃO: UM DISCURSO QUE É A LIBERDADE DOS INJUSTIÇADOS





Não me canso de ter alegrias com a leitura. Desde o primeiro instante em que descobri a poesia de Salgado Maranhão, senti um sorriso esperançoso, nos meus olhos de quarenta anos. Tem ali uma sinceridade ética, capaz de nos ensinar o humanismo, perdido, nestes tempos de culto à ignorância.
Salgado é um poeta premiado. Reconhecido. Elogiadíssimo pela crítica acadêmica, amado pelos leitores do mundo. Ele sabe construir imagens, quando se derrama sobre o mar de enigmas, que cobre a vida. Tem uma visão ancestral surpreendente, porque passa a limpo muitas dores
e feridas do homo sapiens sapiens demens.
Escolhi um poema do livro A Cor da Palavra para fazer uma análise discursiva. É uma coletânea da fase madura, lançada em 2009, com o qual ganhou o prêmio de poesia, em 2011, da Academia Brasileira de Letras. Nela o autor mostra-se um encantador de discursos. Sabe traduzir o golpe das nuvens, nas palavras. Inverte a lógica, criando uma mais ampla e múltipla.
Elegi, portanto, Deslimites 10 para compreendermos melhor o sujeito discursivo, em Salgado Maranhão:

eu sou o que mataram
e não morreu,
o que dança sobre os cactos
e a pedra bruta
– eu sou a luta.
o que há sido entregue aos urubus
e de blues
em
blues
endominga as quartas-feiras.
– eu sou a luz
sob a sujeira.
(noite que adentra a noite e encerra
os séculos,
farrapos das minhas etnias,
artérias inundadas de arquétipos)
eu sou o ferro. eu sou a forra.
e fogo milenar dessa caldeira
elevo meu imenso pau de ébano
obelisco as estrelas.
eh tempo em deslimite e desenlace!
eh tempo de látex e onipotência!

(MARANHÃO, 2009, p. 95)

O sujeito do discurso é afetado pelo funcionamento da sua subjetividade e pelo funcionamento da história social de sua gente. Todo discurso trás, na seiva, o ácido da ideologia. Não há enunciado, sem esta marca.
Então, nos termos de Pêcheux (1988, p. 133-134), “o recalque inconsciente e o assujeitamento ideológico estão materialmente ligados, sem estar confundidos”. No interior, do poema tem a denúncia do africano, marcado pelo olhar injusto da escravidão (numa cena sociológica continuada): “eu sou o que mataram/ e não morreu,/ o que dança sobre os cactos/ e a pedra bruta/ – eu sou a luta”. O explorado assume as contradições do espaço histórico, sem apresentar as queixas de um derrotado, mas afia os lábios da esperança ao assumir a luta. A guerra contra todas as injustiças, impostas por um mundo de poucos privilegiados, num país escravista, desde o zero ano.
No corpus, em análise, há as marcas de um tempo pretérito que acompanha o sujeito poético: “(noite que adentra a noite e encerra/ os séculos,/ farrapos das minhas etnias,/ artérias inundadas de arquétipos)/ eu sou o ferro. eu sou a forra”. Aqui temos as marcas de uma memória ancestral, ainda machucada pelos golpes da incompreensão. Fecha esta estrofe com o metal resistente para assumir-se liberto.
Talvez, seja o grito de todos nós. Uma reparação das ofensas que já sofremos. Um poeta universal tem esta capacidade de dizer um sentimento que é da sua comunidade, como o faz Salgado Maranhão.
Enfim, o poema é uma bola de significação. Está em constante movimento. Não cai. Não para nunca. Carrega o sujeito coletivo para inaceitabilidade das regras, no jogo do poder: “e fogo milenar dessa caldeira/ elevo meu imenso pau de ébano/ obelisco as estrelas./ eh tempo em deslimite e desenlace!/ eh tempo de látex e onipotência”. Fecha o texto com um golpe de clareza e crítica, de maneira que torna-se
a grande voz da liberdade, na poesia brasileira contemporânea.


TEXTO: PAULO RODRIGUES – Professor de literatura, poeta, escritor e autor de O Abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de Ninguém (Editora Penalux, 2018).

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