Não me canso de ter alegrias com a leitura. Desde o primeiro
instante em que descobri a poesia de Salgado Maranhão, senti um sorriso
esperançoso, nos meus olhos de quarenta anos. Tem ali uma sinceridade ética,
capaz de nos ensinar o humanismo, perdido, nestes tempos de culto à ignorância.
Salgado é um poeta premiado. Reconhecido. Elogiadíssimo pela
crítica acadêmica, amado pelos leitores do mundo. Ele sabe construir imagens,
quando se derrama sobre o mar de enigmas, que cobre a vida. Tem uma visão
ancestral surpreendente, porque passa a limpo muitas dores
e feridas do homo sapiens sapiens demens.
Escolhi um poema do livro A Cor da Palavra para fazer uma
análise discursiva. É uma coletânea da fase madura, lançada em 2009, com o qual
ganhou o prêmio de poesia, em 2011, da Academia Brasileira de Letras. Nela o
autor mostra-se um encantador de discursos. Sabe traduzir o golpe das nuvens,
nas palavras. Inverte a lógica, criando uma mais ampla e múltipla.
Elegi, portanto, Deslimites 10 para compreendermos melhor o
sujeito discursivo, em Salgado Maranhão:
eu sou o que mataram
e não morreu,
o que dança sobre os cactos
e a pedra bruta
– eu sou a luta.
o que há sido entregue aos urubus
e de blues
em
blues
endominga as quartas-feiras.
– eu sou a luz
sob a sujeira.
(noite que adentra a noite e encerra
os séculos,
farrapos das minhas etnias,
artérias inundadas de arquétipos)
eu sou o ferro. eu sou a forra.
e fogo milenar dessa caldeira
elevo meu imenso pau de ébano
obelisco as estrelas.
eh tempo em deslimite e desenlace!
eh tempo de látex e onipotência!
(MARANHÃO, 2009, p. 95)
O sujeito do discurso é afetado pelo funcionamento da sua
subjetividade e pelo funcionamento da história social de sua gente. Todo
discurso trás, na seiva, o ácido da ideologia. Não há enunciado, sem esta
marca.
Então, nos termos de Pêcheux (1988, p. 133-134), “o recalque
inconsciente e o assujeitamento ideológico estão materialmente ligados, sem
estar confundidos”. No interior, do poema tem a denúncia do africano, marcado
pelo olhar injusto da escravidão (numa cena sociológica continuada): “eu sou o
que mataram/ e não morreu,/ o que dança sobre os cactos/ e a pedra bruta/ – eu
sou a luta”. O explorado assume as contradições do espaço histórico, sem
apresentar as queixas de um derrotado, mas afia os lábios da esperança ao
assumir a luta. A guerra contra todas as injustiças, impostas por um mundo de
poucos privilegiados, num país escravista, desde o zero ano.
No corpus, em análise, há as marcas de um tempo pretérito
que acompanha o sujeito poético: “(noite que adentra a noite e encerra/ os
séculos,/ farrapos das minhas etnias,/ artérias inundadas de arquétipos)/ eu
sou o ferro. eu sou a forra”. Aqui temos as marcas de uma memória ancestral,
ainda machucada pelos golpes da incompreensão. Fecha esta estrofe com o metal
resistente para assumir-se liberto.
Talvez, seja o grito de todos nós. Uma reparação das ofensas
que já sofremos. Um poeta universal tem esta capacidade de dizer um sentimento
que é da sua comunidade, como o faz Salgado Maranhão.
Enfim, o poema é uma bola de significação. Está em constante
movimento. Não cai. Não para nunca. Carrega o sujeito coletivo para
inaceitabilidade das regras, no jogo do poder: “e fogo milenar dessa caldeira/
elevo meu imenso pau de ébano/ obelisco as estrelas./ eh tempo em deslimite e
desenlace!/ eh tempo de látex e onipotência”. Fecha o texto com um golpe de
clareza e crítica, de maneira que torna-se
a grande voz da liberdade, na poesia brasileira
contemporânea.
TEXTO: PAULO RODRIGUES – Professor de literatura, poeta,
escritor e autor de O Abrigo de Orfeu (Editora Penalux, 2017); Escombros de
Ninguém (Editora Penalux, 2018).
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