sábado, 13 de abril de 2019

PROTESTO TÍMIDO




Já era bem tarde. Se não corresse, o professor perderia o ônibus. O próximo só à meia noite, quando a rua em frente à faculdade já não seria um lugar muito seguro. O professor recolhia seu material, despedindo-se distraído dos alunos retardatários. Sentou-se de novo na cadeira para desligar o computador. Só então sentiu todo o cansaço acumulado do dia. Quatro aulas de manhã, cinco à noite. Perdera parte da tarde em filas de banco e fazendo compras no mercado. Nessas horas sempre se perguntara porque resolvera ser professor... E de literatura. Mas ele sabia que não conseguiria ser outra coisa. Não por incompetência. Por inconformismo. Ser professor – e sobretudo professor de literatura – era a forma que encontrara de dar vazão a sua inadaptação congênita ao mundo. Não a qualquer mundo. A este mundo – em que tudo é utilitário. Então, dar aula de algo inútil era sua forma de resistência. Mas valeria a pena? Quantos alunos realmente entendiam o que ele falava? Essa noite, por exemplo, ao mencionar de passagem a perda da "aura da arte moderna" teve a impressão que de que falava para as paredes. E isto não era culpa dos alunos não. Talvez fosse dele mesmo, que não dava aulas tradicionais colocando nomes e datas no quadro. (Na verdade ninguém gosta desse tipo de aula – mas pelo menos tem cara de aula.) Com toda certeza a desatenção não era culpa dos alunos – a maioria dos quais, bolsistas, tiveram uma educação deficiente no ensino médio e não recebiam estímulos suficientes em casa. E agora lá iam eles, os alunos, em trajetos de mais de uma hora para suas casas em lugares tão distantes como Pinhais, São José, Colombo e até Lapa. Ele pegaria o seu Bom Retiro-PUC e no máximo em meia hora estaria em casa. Com efeito, o mundo estava todo errado. E ele era somente uma engrenagem – uma engrenagem minúscula, sem importância – nessa máquina equivocada.
Desligado o computador, ergueu o rosto. Surpreendeu-se com uma aluna que estava ali em frente dele, meio que sorrindo.
– Oi – ela disse.
– Oi – ele disse e sorriu também
– Eu não entendi, professor, porque foi justamente nessa época que a arte começou a perder a aura... E o que Madame Bovary tem a ver com isso.
Ele sorriu novamente. Quando deu por si, já estava dando outra aula.
Meia hora depois, no ponto deserto (porque perdera o ônibus) convenceu-se de que, não, não errara em ser professor. E professor dessa coisa inútil chamada literatura. Lembrou então de uns versos do Drummond: “A injustiça não se resolve. À sombra do mundo errado murmuraste um protesto tímido. Mas virão outros.” Sorriu. O ônibus já apontava na esquina.

Otto Leopoldo Winck

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