– Carlos Heitor Cony
No meio do quintal, ao lado da casa, havia a mangueira,
enorme, de um de seusramos o pai pendurara um balanço que teve seus dias de
glória até que meu irmãodele se despencou. Minha mãe iniciou campanha feroz e
bem-sucedida, o balançoserviu de lenha numa fogueira de Santo Antônio.
Naqueles dias, Humberto de Campos publicara uma página de
suas memórias,evocando o cajueiro de sua infância. Meu pai lera a crônica para
mim. Recortei-a dojornal e quase a decorei. Pior: procurei imitar o menino que
subia nos galhos maisaltos e gritava: “Assobe, assobe, gajeiro, naquele topo
real, para ver se tu avistas terras de Espanha, Otolina, areias de Portugal!”.
Passei a subir nos galhos mais altos, onde descobri um nicho
no meio das folhas verdes e perfumadas – como só as mangueiras sabem ter. E lá
de cima eu também gritava aos ventos da Boca do Mato, garantindo que via terras
de Espanha, quando,na verdade, via apenas os tetos cor de moringa da
vizinhança, ao longe a torre mais-que-branca da Matriz de Nossa Senhora da Guia
e, depois, a formidável massa azuladado pico da Tijuca.
Pois ontem, tantos anos depois, sonhei com a mangueira dos
dias antigos dopassado. No sonho, ela surgia destacada, talvez mais alta e mais
espetacular. E comona paisagem do sonho era quase noite, ela parecia iluminada
por dentro, um poucofosforescente, mas sem dúvida era a minha mangueira,
intacta, esperando por mim.
Olhei-a bem e não foi difícil encontrar, em seus ramos mais
altos, o nicho defolhas verdes e perfumadas – como só as mangueiras sabem ter.
Lá estava ele, também,intacto, reconheci até mesmo o galho mais forte em que me
segurava com maior confiança, deixando a outra mão livre para proteger os olhos
do sol e dos ventos domar largo. E de onde o menino, que nada vira do mundo até
então, assombrado,avistava terras de Espanha, areias de Portugal.
Carlos Heitor Cony
(in "Eu, aos pedaços" - Ed. Leya, 2010)
-=-
Entre todas as crônicas publicadas no livro, tem alguma que
você goste mais? Por quê? "É difícil responder. É o caso de perguntar ao
pai ou a uma mãe que tem vários filhos qual é o filho predileto. Tenho a
impressão de que gosto mais da “Areias de Portugal”, porque acho uma crônica
bonita e verdadeira. Eu subia na árvore e via o mundo todo. Não estava vendo
nada na verdade, só os telhados dos vizinhos, mas estava vendo coisas longe.
Quando era criança, fazia muito isso, subia em árvores e ficava vendo coisas.
Então essa crônica diz muito de mim mesmo." (de uma entrevista, publicada
no Segundo Caderno do Jornal o Fluminense, em 27/06/2010.)
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