Oferecido à Nazarena de Bouzuk
— Franqueza! Talvez não acredites, mas é realmente o que
mais me seduz em ti. Tens na verdade os mais formosos olhos do mundo, tens uns
lábios travessos, corados, cheios de vida úmida, rubros como... eu diria como o
nácar se não me houvessem proibido o emprego de chapas; tens um porte
graciosíssimo, um talhe de palmeira, principalmente agora com esses espartilhos
modernos que te empinam os seios para diante; tens um andar de passarinho, um
andar de lã, macio, cheio de ondulações, um andar sonoro, harmonioso; tens uns
cabelos magníficos, dourados, fios de sol; tens um perfume ideal, capitosamente
embriagador, um cheiro de carnes róseas e sadias, peculiar a ti, inconfundível,
tens uma voz...
— Xii!, nesse andar enches duas tiras de tens e nunca
terminas o conto — disse a formosa Edel pendida sobre os ombros de Paulo, de
onde acompanhava o que ele escrevia. O rapaz, cortado o fio do ditirambo,
ergueu os olhos em busca dos olhos de Edel e os lábios de ambos se esfrolaram
levemente num beijo sussurrante.
— A culpa é tua, meu bem, a culpa é de quem possui tantas
belezas. Bem vês que seria injustiça eu falar dos teus cabelos e esquecer dos
dentes, falar dos dentes e esquecer dos olhos, elogiar a estes e omitir
referências aos lábios, não achas?
— Acho sim, o meio de evitares isso é falar de tinia vez na
pessoa inteira; assim nenhuma parte ficará preterida.
— Tens toda a razão; falaste como um Juiz de Berlim; vou
seguir o teu conselho.
E Paulo, molhando a pena, relê a ultima frase do conto
interrompido e de novo retoma o fio (... tens uma voz de anjo, és enfim uma
melodia de carne, és a “Boêmia” sob forma humana. Mas...). De novo Edel o
interrompe simulando cólera e aponta indignada para o mas que Paulo acabava de
escrever no papel:
— Mas? Então vais fazer alguma restrição aos meus encantos?
Atrevido! Há pouco não me disseste que eu era perfeita?
— Espera, filha — acalmou Paulo —, espera um pouco; ainda
não sabes o que eu vou dizer! Arre! Que pressa!
— Bem, continua — fez Edel —, mas se esse mas encerrar
qualquer coisinha deprimente, juro-te como amarroto o papel e o esfrego em tua
cara.
— Sossega, sossega! — fez Paulo recomeçando.
Mas em todo esse conjunto de delícias que tu és, nada me
seduz tanto como... (Paulo interrompe o curso da pena e, erguendo o rosto para
ela, repete interrogativamente: Como? Adivinha lá, como o quê?) Edel fez mil
suposições: opina pelos pés, pelo seio esquerdo, pela nuca, pelos aveludados
lobos da orelha, mas não acerta. Paulo, para a judiar, não conta o que é e se
prepara para escrever. Edel, ardendo de curiosidade, senta-se no colo dele com
o nariz fincado no bico da pena, ansiosíssima.
Paulo continua, o braço esquerdo cingido em torno da
deliciosa cintura da moça (como as tuas mãos).
Um casquinante “óóóra” acolheu a
decifração do enigma. Edel pôs-se a mirar as mãos gorduchas dizendo — por
modéstia: “Já se vê — não acho tanto assim, bem feias que são até; tens mau
gosto”. Paulo retruca: “Será o que quiseres, mas fica quietinha que eu preciso
terminar isto hoje; não me interrompas mais até o fim, ouviste? São proibidos
os apartes”. Retoma a pena, e continua.
Vejo nelas belezas inacessíveis aos sentidos embotados do
vulgo. A descrevê-las eu gastaria uma resma de papel; por isso me contentarei
com falar unicamente uma coisa: a melodia dos gestos de tuas mãos. (— Mas o...
— interrompe Edel.) Bico!, fez Paulo levando o dedo à ponta do nariz e
franzindo os sobrolhos. Melodia sim; parece à primeira vista encerrar essa
expressão um nefelibatismo e no entanto é rigorosamente a verdadeira. Os
movimentos dos teus dedos guardam sempre uma proporção impecável em relação aos
outros movimentos da mão; nunca eu os percebi em desarmonia, discrepando
desafinadamente do conjunto total; são movimentos macios, coleantes,
expressivos, verdadeiros poemazinhos de elegância cor-de-rosa e cheirando à
flor de zéfiro.
(— O que é flor de zéfiro, Paulo?)
— É uma flor que eu inventei, Edel, e que tem um perfume
igual ao do movimento de teus dedinhos. (Satisfeita assim a pergunta da moça,
Paulo principia de novo.) O minguinho é de todos o mais gentil; tem garrulice
de ave e travessura de baby.
E depois, caçula como é, vadiozinho como é, sempre
desocupado, sempre a vadiar enquanto os outros trabalham, ele tem tempo de
requintar a graciosidade nativa. Quando tomas chá, o dandizinho se arrebita
incontinênti numa mesura dengosa e ri-se, o patife, dos seus irmãos que
trabalham segurando a asa da chávena.
(Edel de novo interrompe. — Olhe!, já quatro tiras!, não te
lembras mais do que disse outro dia o redator, o doutor Malinhos? Disse que não
publicava artigos de mais de quatro tiras.)
— É verdade — concordou Paulo —, mas agora? Se parar aí fica
sem sentido o meu conto. Como há de ser?
Ora o quê!, pois para aí mesmo. Quantos leitores tu tens?
Uns dez; desses dez, nove não te leem senão por desfastio bem pouco se
importando com o sentido, e o décimo sou eu e eu acho muito sentido nisso. Por
isso deixa o conto e sai daí que eu estou ansiosa para ver quem ganha a aposta
hoje.
Paulo fecha o tinteiro, mete as tiras escritas na pasta,
levanta-se, apaga o gás e sai com Edel bras dessus, bras dessous em caminho do
perfumoso boudoir...
LOBATOYEWSKY
(O Povo, Caçapava, 16 de julho de 1903)
– Monteiro Lobato
*O texto está presente na obra Literatura do Minarete,
publicada pela Globo Livros.
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