sexta-feira, 26 de abril de 2019

Como se escreve um conto



Oferecido à Nazarena de Bouzuk

— Franqueza! Talvez não acredites, mas é realmente o que mais me seduz em ti. Tens na verdade os mais formosos olhos do mundo, tens uns lábios travessos, corados, cheios de vida úmida, rubros como... eu diria como o nácar se não me houvessem proibido o emprego de chapas; tens um porte graciosíssimo, um talhe de palmeira, principalmente agora com esses espartilhos modernos que te empinam os seios para diante; tens um andar de passarinho, um andar de lã, macio, cheio de ondulações, um andar sonoro, harmonioso; tens uns cabelos magníficos, dourados, fios de sol; tens um perfume ideal, capitosamente embriagador, um cheiro de carnes róseas e sadias, peculiar a ti, inconfundível, tens uma voz...

— Xii!, nesse andar enches duas tiras de tens e nunca terminas o conto — disse a formosa Edel pendida sobre os ombros de Paulo, de onde acompanhava o que ele escrevia. O rapaz, cortado o fio do ditirambo, ergueu os olhos em busca dos olhos de Edel e os lábios de ambos se esfrolaram levemente num beijo sussurrante.

— A culpa é tua, meu bem, a culpa é de quem possui tantas belezas. Bem vês que seria injustiça eu falar dos teus cabelos e esquecer dos dentes, falar dos dentes e esquecer dos olhos, elogiar a estes e omitir referências aos lábios, não achas?

— Acho sim, o meio de evitares isso é falar de tinia vez na pessoa inteira; assim nenhuma parte ficará preterida.

— Tens toda a razão; falaste como um Juiz de Berlim; vou seguir o teu conselho.
E Paulo, molhando a pena, relê a ultima frase do conto interrompido e de novo retoma o fio (... tens uma voz de anjo, és enfim uma melodia de carne, és a “Boêmia” sob forma humana. Mas...). De novo Edel o interrompe simulando cólera e aponta indignada para o mas que Paulo acabava de escrever no papel:

— Mas? Então vais fazer alguma restrição aos meus encantos? Atrevido! Há pouco não me disseste que eu era perfeita?
— Espera, filha — acalmou Paulo —, espera um pouco; ainda não sabes o que eu vou dizer! Arre! Que pressa!

— Bem, continua — fez Edel —, mas se esse mas encerrar qualquer coisinha deprimente, juro-te como amarroto o papel e o esfrego em tua cara.

— Sossega, sossega! — fez Paulo recomeçando.

Mas em todo esse conjunto de delícias que tu és, nada me seduz tanto como... (Paulo interrompe o curso da pena e, erguendo o rosto para ela, repete interrogativamente: Como? Adivinha lá, como o quê?) Edel fez mil suposições: opina pelos pés, pelo seio esquerdo, pela nuca, pelos aveludados lobos da orelha, mas não acerta. Paulo, para a judiar, não conta o que é e se prepara para escrever. Edel, ardendo de curiosidade, senta-se no colo dele com o nariz fincado no bico da pena, ansiosíssima.
Paulo continua, o braço esquerdo cingido em torno da deliciosa cintura da moça (como as tuas mãos).
 Um casquinante “óóóra” acolheu a decifração do enigma. Edel pôs-se a mirar as mãos gorduchas dizendo — por modéstia: “Já se vê — não acho tanto assim, bem feias que são até; tens mau gosto”. Paulo retruca: “Será o que quiseres, mas fica quietinha que eu preciso terminar isto hoje; não me interrompas mais até o fim, ouviste? São proibidos os apartes”. Retoma a pena, e continua.
Vejo nelas belezas inacessíveis aos sentidos embotados do vulgo. A descrevê-las eu gastaria uma resma de papel; por isso me contentarei com falar unicamente uma coisa: a melodia dos gestos de tuas mãos. (— Mas o... — interrompe Edel.) Bico!, fez Paulo levando o dedo à ponta do nariz e franzindo os sobrolhos. Melodia sim; parece à primeira vista encerrar essa expressão um nefelibatismo e no entanto é rigorosamente a verdadeira. Os movimentos dos teus dedos guardam sempre uma proporção impecável em relação aos outros movimentos da mão; nunca eu os percebi em desarmonia, discrepando desafinadamente do conjunto total; são movimentos macios, coleantes, expressivos, verdadeiros poemazinhos de elegância cor-de-rosa e cheirando à flor de zéfiro.

(— O que é flor de zéfiro, Paulo?)

— É uma flor que eu inventei, Edel, e que tem um perfume igual ao do movimento de teus dedinhos. (Satisfeita assim a pergunta da moça, Paulo principia de novo.) O minguinho é de todos o mais gentil; tem garrulice de ave e travessura de baby.

E depois, caçula como é, vadiozinho como é, sempre desocupado, sempre a vadiar enquanto os outros trabalham, ele tem tempo de requintar a graciosidade nativa. Quando tomas chá, o dandizinho se arrebita incontinênti numa mesura dengosa e ri-se, o patife, dos seus irmãos que trabalham segurando a asa da chávena.

(Edel de novo interrompe. — Olhe!, já quatro tiras!, não te lembras mais do que disse outro dia o redator, o doutor Malinhos? Disse que não publicava artigos de mais de quatro tiras.)

— É verdade — concordou Paulo —, mas agora? Se parar aí fica sem sentido o meu conto. Como há de ser?

Ora o quê!, pois para aí mesmo. Quantos leitores tu tens? Uns dez; desses dez, nove não te leem senão por desfastio bem pouco se importando com o sentido, e o décimo sou eu e eu acho muito sentido nisso. Por isso deixa o conto e sai daí que eu estou ansiosa para ver quem ganha a aposta hoje.

Paulo fecha o tinteiro, mete as tiras escritas na pasta, levanta-se, apaga o gás e sai com Edel bras dessus, bras dessous em caminho do perfumoso boudoir...

LOBATOYEWSKY

(O Povo, Caçapava, 16 de julho de 1903)



 – Monteiro Lobato

*O texto está presente na obra Literatura do Minarete, publicada pela Globo Livros.



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