terça-feira, 18 de setembro de 2012

A ENCOMENDA



            Mais de 48 horas de cama, levantava apenas pra ir ao banheiro ou pegar algo na geladeira já quase vazia. Vodka, uísque, conhaque, que nada, a caninha mais barata comprada no boteco mais fulero da Westphalen. Até meus cigarros estavam acabando, uns dez no máximo. Nas rádios uma seleção criteriosa dos programadores tocava o dia inteiro as mesmas músicas, e a televisão havia tempos não era mais a mesma que ajudava a virar as noites, que saudade da programação pornográfica nas madrugadas.
            De hora em hora eu conferia a carta, pra ver se ainda estava lá, dizendo as mesmas coisas:

“Caro senhor Marcelo M.
Esta é a segunda carta que lhe enviamos, sua dívida conosco continua pendente, senão resolver sua situação nos próximos sete dias seremos forçados a tomar as medidas judiciais cabíveis. Caso o senhor já tenha entrado em contato com alguma de nossas lojas e resolvido a situação, favor desconsiderar esta correspondência.”

            Os livros foram as primeiras coisas de que me desfiz pra pagar algumas contas, mas acabei sem nada pra ler. Tive de roubar todas as revistas de fofoca do consultório odontológico do andar de baixo, já tinha lido Wolverine 37 pelo menos umas cinqüenta vezes. Tornei-me obsessivo pelas garras de adamantium do Wolverine, podia ver garras de adamantium saindo das minhas mãos. Até o senhorio tinha vindo me encher o saco algumas vezes, idiota, vai ter que me tirar daqui morto. Mas do jeito que as coisas iam isso não demoraria muito. Mais um cigarro, ou melhor dizendo, menos um cigarro, agora restavam apenas nove.
            Definitivamente tinha sido uma péssima idéia viver de literatura, onde estavam os prêmios? o reconhecimento? e as adaptações pro cinema? e o dinheiro? me mostre a porra do dinheiro Jerry Maguire! Enquanto isso meus “contemporâneos” estão porá aí, escrevendo em blogs, dando entrevistas, em feiras literárias, comendo a caloura mais gostosa de artes cênicas. Até os cínicos se foram: H só faz teatro; Martin escreve roteiros pra cinema; Roger expondo em galerias pelo mundo afora; o Véio Loko a essas horas treina tiro na Serra do Mar. De vez em quando mandam notícias, prometi que se ainda estivesse vivo na semana seguinte eu escreveria pra eles.
            Ok vocês venceram: Sandy e Júnior Xuxa Britanny Spears Paulo Coelho Silvio Santos RBD Zíbia Gasparetto My Chemical Romance Hebe Camargo Justin Timberlake todos os Backstreet Boys Luciana Gimenez Pedro Bial Dan Brown Manoel Carlos Vera Fischer Marcelino Freire Veja William Bonner Caras Galvão Bueno chocolate branco Steven Spielberg Hans Donner Tom Cruise Zagallo Élio Gaspari Franklin Martins Regina Duarte Arnaldo Jabor Fátima Bernardes Harry Potter Boninho Francisco Cuoco Gilberto Dimmenstein Jô Soares. Enfim havia me dado por vencido, eu não servia pra literatura e também pra esse mundo. Decidi definhar até morrer naquela cama assistindo TV, mas deixaria um último registro na forma de um diário, afinal, alguém poderia achar interessante.
           

Sexta-feira


            Assistir televisão ficou um pouco melhor, Curitiba virou o centro das atenções para os principais veículos de imprensa do mundo. As eleições municipais estão marcadas para os próximos meses, a campanha está a pleno vapor, e o quadro político não poderia ser mais tenso: o prefeito esquerdista Luís Felipe Bérgson concorre à reeleição contra o candidato Antonio Machado, um ex-companheiro de Bérgson, agora apoiado pelo governador direitista Paulo Rocha. Um gato na TV a cabo me dá direito a mais de 160 canais, e muita porcaria.
            Canal 125 - Noticiário Internacional: Curitiba – Cidade Sitiada.
            Na serra do mar uma guerrilha armada, “Bandeiras Vermelhas”; na cidade os atos terroristas de um grupo extremista cristão, formado por dissidentes católicos, luteranos, neo-pentecostais, “Os Doze Apóstolos”; a máfia chinesa controla o comércio no centro; a máfia italiana gerencia exportações e importações; o tráfico transformou a CIC (Cidade Industrial de Curitiba) numa cidade à parte. Em meio a seqüestros-relâmpagos, franco-atiradores e homens bomba o centro velho é o único lugar seguro, uma trégua firmada entre todas as partes, e a Catedral antes católica agora acolhe todas as religiões.
            Canal 43 - Condições climáticas
            A emissão de gases poluentes alcança níveis alarmantes, principalmente na região metropolitana. “O céu já foi azul, mas agora é cinza. E o que era verde aqui já não existe mais” Ecologistas alertam para a situação na cidade de Araucária, e protestam contra a instalação de mais uma fábrica multinacional. Há 16 horas o quadro é tenso, a polícia já considera o enfrentamento inevitável.
            Canal 03 – Mundo das celebridades
Quem é a nova namorada de Carlos o Chacal? Depois de breve passagem pela Argentina, o ex-terrorista curte sua aposentadoria em Curitiba, todo mês desfila com uma namorada nova na mansão do vampiro no Alto da Glória.
            Canal 27 – Eleições municipais
            Um rosto conhecido na TV, meu irmão Marquinhos,  - quero dizer Marcos, não pega bem o porta-voz do prefeito se chamar Marquinhos, -  dando entrevista pra responder às acusações do governador de que a prefeitura acoberta os guerrilheiros da serra. Pra variar ele rebate acusando o governo estadual de acobertar os “Doze Apóstolos”. Minha mãe morreu orgulhosa, um político sério e um escritor promissor, ainda bem que já morreu. Tomara que ele não ligue nem apareça, tomara que a campanha esteja corrida, mas ele é atencioso, sempre arranja um tempo pra aparecer. Saber como estou, trazer notícias dos amigos: Cássio, Adriano e Renato. Todo mundo conseguiu um cargo na prefeitura, não tivesse abandonado o partido pelo menos teria um emprego.
            Canal 18 – Agenda Cultural
            “O Corvo” de graça no Cine Luz. Será que o Brandon Lee fez algum outro filme? Tem alguns trocados no bolso pra comprar cachaça, meu irmão sempre aparece na sexta, bom motivo pra sair de casa. Eu amo ele, talvez seja a última pessoa que eu realmente ame no mundo, mas é foda. Meu irmão sempre acompanhado por um americano, John (ou Paul? Foda-se). O puto de merda cita Marx de cabeça e vive me perguntando sobre conspirações internacionais, em suma, um babaca.
             “Não pode chover pra sempre” menos em Curitiba, sem guarda-chuva, tênis furado, molhado feito um pinto. Debaixo de uma marquise na XV vejo um velho jogar um embrulho na lata de lixo, saiu correndo e nem olhou pra trás, muito medo da chuva ou algo no embrulho. Ninguém tá olhando, mais dia menos dia eu ia acabar fuçando no lixo mesmo. Um embrulho: grana (grana pra caralho) quanta grana! E tinha mais: umas fotos, outro envelope menor com uma papelada dentro, além de uma pistola e um bilhete solto, tava fácil demais. Eu só me fodo nessa merda!

“Essa é a encomenda, em anexo um dossiê para auxilio.Você tem quatro dias a contar de hoje para a entrega. O resto do pagamento no mesmo local em cinco dias.
C.C.”
             Mais grana? Porra! Mas eu não precisava de mais, pelo menos por enquanto, dava pra pagar as contas e sobrava um pouco. Quem sabe até pra uma costelinha no Gato Preto. Era melhor ir embora antes que o cara da encomenda aparecesse.

 

Sábado


            Esperando.

Domingo


            Continuo esperando.

Segunda-feira


            Ainda esperando.

Terça-feira


            Parabéns, Dona Neusa! Sua rígida educação religiosa conseguiu efeitos profundos em meu caráter, faz 4 dias que me acometi de um sentimento de culpa cristão. Não gastei nenhum tostão da bolada, me sinto um ladrão, afinal não trabalhei por esse dinheiro. Se existisse algo como um código de ética dos matadores eu com certeza teria quebrado todas suas normas. Devolver o dinheiro? Nem fodendo! Agora já fiz planos pra ele, mas meus planos nunca deram certo: ser um escritor; montar uma banda de rock; fazer a revolução; viver um grande amor; morrer no apartamento. 35 anos e ainda não tinha descoberto meu talento, sempre sonhei em escrever por encomenda – roteiro de cinema, peça de teatro, letra de música – talvez eu pudesse pelo menos matar por encomenda.
            Aprendi a atirar com um amigo de infância, Fabiano, tipo irmão de criação, ainda continua na vila zelando pela segurança da comunidade. Sempre atirei bem, o Véio Loko quando foi montar a guerrilha encheu o saco um monte pra eu ir junto, eu disse que preferia esperar pra ver a revolução marchar vitoriosa pelo calçadão da XV de novembro. As balas da pistola eram suficientes, automática, perfeita pra um serviço rápido e limpo. Está decidido, vou entregar a encomenda.

(...)

A entrega


            Um velho conhecido da cidade, empresário respeitado, financiou a eleição do governador, o filho é deputado federal. Pra variar o velho era um pervertido sexual, tarado por menininhas, o cara era um clichê rodrigueano: católico, conservador, rico, tarado. Isso já era o bastante pra me convencer, o velho deveria morrer. Uma mijada, aparar a barba, um banho. Fui pra rua e segui o itinerário entregue com o pedido da encomenda, queria ver se até a noite estaria tudo resolvido. Na hora de sair pra rua paguei o aluguel, Seu Clóvis nem acreditou, pensei até que ia me abraçar, antes que fizesse isso sai fora.
            O velho era um clichê até no seu dia-a-dia, de manhã passava num escritório na Santos Andrade, almoçava num restaurante de comida caseira, passava a tarde em livrarias, à noite caçava bocetinhas. Sempre saía pra caçar sem seguranças, andava pelas bocas da Visconde de Guarapuava e da Sete de Setembro babando no pescoço das loiras, morenas, mulatas era uma presa fácil. Não mais fácil que a menina que ele pegou aquela noite, uma baixinha tipo mignon, gostosinha, caloura universitária, 19-20 anos chutando alto. A mina esperava alguém na Mariano Torres perto da rodoviária, eram mais de dez horas e o toque de recolher das seis já avisara que as noites de Curitiba não são para amadores. Nem a polícia é louca o bastante pra patrulhar além dos limites do Centro Velho.
            Nada pior que uma menina bonita, amedrontada e crédula, antes que alguém a currasse, a roubasse, ela aceitou a ajuda do velho. Como todo tarado clichê ele mantinha a mesma expressão de um avô brincando com os netinhos. Mas logo se revelou pra ela, a segurou pelo braço e a foi levando cada vez mais pra dentro da boca, pra algum pulgueiro. E ninguém viu? Claro que viu, mas na noite curitibana todos estão preocupados em salvar a própria pele, que cada um se vire. Putas, ladrõezinhos, viciados e toda sorte de tarados lotavam as ruas, bebendo, fumando, trepando, cagando. Sentia que alguém me seguia, mas parar pra ter certeza me atrasaria, e poderia me perder dos dois, depois de matar o velho eu mataria o filho da puta que vinha atrás de mim.
            Até que o velho não escolheu um dos piores pulgueiros da Nilo Cairo, tinha um negro na porta como leão-de-chácara, então tive que alugar um quarto pra não atrair suspeitas, não podia perder tempo com o leão-de-chácara também. Agora, qual o número do quarto? Gritos, tiros, risos tornavam mais difícil achar o quarto que o velho escolheu pra fazer seu “servicinho”. Mas pra algo a arma ia servir, sorte que tinha poucos quartos. Derrubei duas portas na base do pontapé, os ocupantes quando viam a pistola na minha mão se borravam, mas depois que eu saía voltavam ao que estavam fazendo, a porta escancarada devia aumentar o tesão das pessoas.
Finalmente achei os dois, ele ainda não tinha comido a guria, me senti o Macgyver salvando a mocinha dois segundos antes da bomba explodir. O velho era pior do que eu pensava, com um punhal pretendia esfolar a menina. A menina, por sua vez, era muito mais gostosa do que eu pensava, ali no chão aterrorizada e rezando pela própria vida ela virava a mulher mais linda do mundo. Do que eu seria capaz? Eu chupava ela inteira, enrabava ela, gozava na cara dela. Porra, Eu até casava com ela!
            - Pro meu quarto velho! Você fica quieta aqui menina, já volto pra te buscar.
            O velho suplicou, falou dos filhos, netos, da mulher enquanto eu amarrava ele na cama. Caiu um crucifixo esquisito no chão: não tinha o Cristo mas as pontas da cruz tinham detalhes em vermelho, tipo o sangue escorrendo; deixei por lá, podia ser uma relíquia de família. Já amarrado, ele ficou falando uma ladainha estranha, pelo menos não era nenhuma das que a Dona Neusa me ensinou quando eu era criança, devia ser uma reza que todos os velhos tarados fazem na hora da morte. Todas as maluquises dele exigiam um tratamento especial, não podia matar o filho da puta de qualquer jeito, guardei a pistola e usei o punhal dele pra fazer o meu “servicinho”, bem devagar esfolei ele todinho. Eu queria ter um facão, uma espada, uma lança, garras, as garras de adamantium do Wolverine. Papai Noel já sei o que eu quero de presente no natal: as garras de adamantium do Wolverine!
            A encomenda foi entregue.
            Mas meu trabalho ainda não estava concluído, ainda tinha que salvar a menina, ela era a mocinha e eu era o herói assim-assado, mezzo Macgyver mezzo Wolverine. Interessante o que é uma pessoa desesperada, pra minha surpresa ela me esperou, e eu espero que ela tenha aprendido uma lição: a noite curitibana é terra de ninguém. Ela morava perto da reitoria da UFPR, eu estava certo, só mesmo uma caloura pra sair sozinha à noite fora do Centro Velho. No caminho ela me contou toda sua história, desde a infância pacata no interior até o bolo que levou de um hippie metido a músico, novamente eu e os clichês. Enquanto isso eu prestava atenção nos cabelos castanhos compridos, nos olhos cor de mel, mas principalmente na boca, se ela parasse de falar eu agarrava ela.
            E o nome da guria: Marisa. Lembrei da Marisa Tomei, que delícia, como era mesmo o nome daquele filme que ela era uma cubana? Mas a Marisa Tomei estava nos EUA, e a “minha” Marisa estava aqui do lado, igualmente deliciosa, igualmente maravilhosa, e já que também rima: igualmente gostosa.
-          É aqui que eu moro!
-          Beleza!
-          Mais uma vez obrigada, te devo minha vida
E me abraçou.
-     Não foi nada, qualquer um faria isso! Texto do Macgyver na voz do Wolverine.
-          Quando quiser apareça, eu moro no 120.
-          Tá. Como podem perceber, não sou um cara de muitas palavras.
Doutor Faivre 860, apartamento 120. Eu devia voltar, arrombar a porta do apartamento, arrancar sua roupa, jogar ela na cama. E se eu me apaixonasse? Que deprimente. Já eram 4 da manhã e até meu prédio na Westphalen era uma boa andada, pelo menos ainda tinha a luz da lua, “lua, espada nua, bóia no céu imensa e amarela tão redonda a lua, como flutuatarde demais, já estava apaixonado!


Quarta-feira

            Encomenda entregue agora eu podia receber o resto do pagamento sem qualquer culpa, eu trabalhara, e o melhor de tudo: eu era bom, e como eu era bom. Na saída do apartamento tive uma surpresa no corredor, o puto do John/Paul me esperando. Porra, era ele me seguindo a noite passada na boca.
-          E aí? Agora ele falava gíria.
-          E aí?
-          Parabéns pelo novo emprego!
-          Que novo emprego?
-          Precisamos conversar, meu cartão.



John Burgess

Governo dos Estados Unidos da América

CIA – Agência Central de Inteligência

Agente Especial designado para o Brasil

 


            Sabia que esse puto de merda não tava metido em boa coisa.
-          Agora eu tenho um compromisso, conversamos depois.
-          OK!
Que que eu podia fazer? O puto sabia onde eu morava. A gente nunca tá sossegado, já dizia Dona Neusa. Saí na rua pensando o que fazer e torcendo pra pegar o dinheiro sem nenhuma surpresa, mas novamente a Dona Neusa tava certa, nada de sossego pra mim. Mais surpresas no lugar do pagamento: um novo pacote que além do dinheiro tinha um novo bilhete. Eu só me fodo nessa merda!

            “Parabéns senhor Marcelo M. O senhor fez um belo trabalho, agora todos pensam que aquilo foi obra de algum psicopata, um serial killer. Gostei do seu estilo, a maneira como salvou a menina mostrou que o senhor é um homem de princípios, algo em falta na nossa profissão. Sinto que nos daremos bem, o senhor atua da maneira como atuávamos nos “tempos românticos”. Mas não temos mais tempo a perder, há uma nova encomenda para o senhor.
C.C”

Luiz Belmiro
Escritor e sociólogo nas horas vagas.
"A Encomenda" é o primeiro capítulo da novela "Wolverine 37", ainda não concluída.

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