terça-feira, 6 de dezembro de 2016

RETALHOS



“Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa”.
Miguel Torga, in Orfeu Rebelde.


                Em tom quase imperceptível a voz rouca e interior de Ana Maria, bradava incisivamente:
                - Louca..louca...homicida!

                A agitação do pensamento levou-a até um tempo que imaginava perdido na memória.
                A cidade da fala escandida e suas majestosas araucárias, onde passou a infância e juventude, onde amou e deixou amigos e familiares quando partiu em busca de seus sonhos.
                Mulher decidida, correu o mundo, adquiriu conhecimento, destacou-se profissionalmente. Acreditava ser feliz, não obstante nela houvesse um quê de insatisfação que ora a impulsionava a viver intensamente, ora a tornava introspectiva e muda.
                Num destes momentos de banzo, algo inesperado e gratuito aconteceu. Uma brisa ligeira tocou-lhe a face e avivou a chama da Poesia. Incapaz de qualquer gesto contrário, deixou aflorar seu Eu-lírico, pondo-se a escrever sem parar.
                No frenesi de cada novo chamado da poesia, sulcava com frescura a avalanche de imagens criadas pela sua imaginação. Seus olhos percorriam caminhos rasgados pela densa vegetação, seus dedos ao segurar a caneta pareciam serpentear entre cadeias de montanhas e transpor colossais abismos.
                Não descansava, mal se alimentava. Só escrevia. Até o Trabalho  abandonara pela incansável busca do prazer que o texto lhe proporcionava.
                Neste contexto de descobertas, amigos tentavam inutilmente chamá-la à razão.
                - Não tens juízo! - diziam eles.
                Ensimesmada, pensava: - Ora, não venham com repressões!
                E com ternura apenas respondia.
                - Com licença, a lua arde nos contrafortes da serra do mar, não falta mais nada para iniciar nova prosa.
                Acompanhada pela melodia do seu Eu-Poético, sorria com doçura às intempéries da vida.
                Todavia, aquela insatisfação que lhe era inata ... sempre presente, por vezes sussurrava-lhe:
                - Mulher, toma tino!
                - A que propósito serve esta tal Poesia? Olhe em torno de você!! As contas se acumularam. Seus filhos cresceram e você nem percebeu ...
                -  Afinal o que queres da vida? Ficar aí pasmada... a escrever , escrever e engavetar?
                Passados alguns minutos, feito quem age em legítima defesa, lá estava Ana a rabiscar seus versos num fôlego só.
                O tempo passou, as palavras persistiam em escapar aos turbilhões, como se fosse uma vaga selvagem batendo forte numa rocha.
                - Sou a vaga e a rocha - pensou. Ao mesmo tempo em que bato, recuo e permaneço estática. O estar estática me incomoda, retira-me o ar!
                Naquela manhã de inverno, quando a exuberância do azul transbordava do céu, descortinando o destino louco e incompreendido dos homens, cheia de lembranças, ao ouvir sua voz interior decidiu jogar fora todo o amontoado de contradições que a intrigava.
                E, assim livre de pressões, escutando apenas o estalido ígneo do silêncio queimando seu peito.

                Assumiu.

                Andréa Motta


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