“Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa”.
Miguel Torga, in Orfeu Rebelde.
Em tom
quase imperceptível a voz rouca e interior de Ana Maria, bradava incisivamente:
-
Louca..louca...homicida!
A
agitação do pensamento levou-a até um tempo que imaginava perdido na memória.
A
cidade da fala escandida e suas majestosas araucárias, onde passou a infância e
juventude, onde amou e deixou amigos e familiares quando partiu em busca de
seus sonhos.
Mulher
decidida, correu o mundo, adquiriu conhecimento, destacou-se profissionalmente.
Acreditava ser feliz, não obstante nela houvesse um quê de insatisfação que ora
a impulsionava a viver intensamente, ora a tornava introspectiva e muda.
Num
destes momentos de banzo, algo inesperado e gratuito aconteceu. Uma brisa
ligeira tocou-lhe a face e avivou a chama da Poesia. Incapaz de qualquer gesto
contrário, deixou aflorar seu Eu-lírico, pondo-se a escrever sem parar.
No
frenesi de cada novo chamado da poesia, sulcava com frescura a avalanche de
imagens criadas pela sua imaginação. Seus olhos percorriam caminhos rasgados
pela densa vegetação, seus dedos ao segurar a caneta pareciam serpentear entre
cadeias de montanhas e transpor colossais abismos.
Não
descansava, mal se alimentava. Só escrevia. Até o Trabalho abandonara pela incansável busca do prazer
que o texto lhe proporcionava.
Neste
contexto de descobertas, amigos tentavam inutilmente chamá-la à razão.
- Não
tens juízo! - diziam eles.
Ensimesmada,
pensava: - Ora, não venham com repressões!
E com
ternura apenas respondia.
- Com
licença, a lua arde nos contrafortes da serra do mar, não falta mais nada para
iniciar nova prosa.
Acompanhada
pela melodia do seu Eu-Poético, sorria com doçura às intempéries da vida.
Todavia,
aquela insatisfação que lhe era inata ... sempre presente, por vezes
sussurrava-lhe:
-
Mulher, toma tino!
- A que
propósito serve esta tal Poesia? Olhe em torno de você!! As contas se
acumularam. Seus filhos cresceram e você nem percebeu ...
- Afinal o que queres da vida? Ficar aí
pasmada... a escrever , escrever e engavetar?
Passados
alguns minutos, feito quem age em legítima defesa, lá estava Ana a rabiscar
seus versos num fôlego só.
O tempo
passou, as palavras persistiam em escapar aos turbilhões, como se fosse uma
vaga selvagem batendo forte numa rocha.
- Sou a
vaga e a rocha - pensou. Ao mesmo tempo em que bato, recuo e permaneço
estática. O estar estática me incomoda, retira-me o ar!
Naquela
manhã de inverno, quando a exuberância do azul transbordava do céu,
descortinando o destino louco e incompreendido dos homens, cheia de lembranças,
ao ouvir sua voz interior decidiu jogar fora todo o amontoado de contradições
que a intrigava.
E,
assim livre de pressões, escutando apenas o estalido ígneo do silêncio
queimando seu peito.
Assumiu.
Andréa
Motta
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