sexta-feira, 12 de julho de 2019
acordou triste, atropelou a sujeira das tardes e leu poemas.
poemas antes da raiva primeira, antes que o tempo a quebrasse em partes vadias
- de versos e gozos - e o olho direito do medo minguasse sua cor-tragédia.
e leu poemas antes da fuga:
"Uma gota alquímica me mantém.
Mas falta-me o estado de graça,
Posterior à falência do corpo -
Os Olhos ainda escamam a acidez -
trigos giram púrpuras na palidez da
Compreensão improvável -" Mariana Basílio
"Há uma parte de mim
onde a saudade é
vermelha
cálida e gotejante
E enquanto não vens
Estranhas tulipas explodem
na umidade insana do desejo
Compreensão improvável -" Simone Teodoro
"para que possas regressar
ao teu túmulo de rosas,
é preciso que desmembres o sol
em astros menores,
e, nua, deves percorrer os dias
com a leveza dos gatos" - Samuel Malentacchi
"eu sou triste mas coloco comida
pro gato diariamente
bebo água corro alguns metros
peço comida chinesa e te ouço
eu sou triste mas me esforço
eu sou triste mas às vezes esqueço..." - Izabela
Orlandi
"alguma coisa me segura
o olho para que não desregule.
estranho princípio que se atém
aos meus órgãos vivos." - Ana Cristina Cesar
Acho que foi o calor. Ou muito advérbio, sei lá. Você leu
minha tatuagem, ligeira entre goles na limonada batizada, e ignorou todo o
espaço que abrigava ruínas untuosas na aleatória padaria do antigo Sacomã.
Quarta-feira. Meio-dia. Certeza que foi o calor. Você tirou
Rimbaud da bolsa - quem anda com um peso desses em eras infernais? -
descontinuou meu reparo à oratória insubordinada, que era empregada no
pensamento, nas ideias de poder e destroços, naquele instante.
Aliterou e travou minha atenção. Fazia uns 37 graus e as
cores do ambiente transmutavam entre fígado na chapa e moedas de 50 centavos.
Foi o suor. Talvez tua língua a saborear o salgado do buço
acalorado, ou o alarme do relógio de pulso que reclamava atenção, pois, ai de
nós, a vida que se interrompia, por descuido da ordem industrial de telhas a
constatar o progresso de cidade, em seu umbigo cinza, a nosso favor.
E teus olhos anunciavam despautérios, notícias falsas,
filmes velhos e trens lotados de inocências. E eu gostava das mensagens silenciadas
pelo futuro não executado de um "oi".
Matem as vírgulas!
Vestia um vermelho desbotado e roubava a admiração do que é
bellus. E o mundo deixou de respirar, guerras explodiram as cabeças do poder, a
lama secou, Pompéia furtou de nós qualquer ideal, as crianças foram enterradas
nuas e os jornais riram do meu susto coagido.
Acho que foi o calor. Quem mais diria?
As pessoas nas ruas continuaram tristes, os cães atropelados
de propósito e nenhuma luta dignou seu fim. O desajeito matou mais dos nossos e
a poesia não matinou uma esperança sequer.
No entanto. Meio-dia. Sacomã.
Levanto. Beijo tua boca de menina desconhecida. E vida segue
sem juízo, quente, refém dos filhos de ódio e molestada desde o rebentar de
mulher.
Entretanto,
Com gosto de moça na boca -
dizimada de pele e sangue -
saio ensolarada
da padaria.
Pão de Queijo R$ 4,50
e nada de poesia,
General.
Camila Passatuto
Gosta quando derramo meus líquidos sobre a casa. Meu choro,
meu catarro, meu sangue ovulado, minha trilha gastrópode, o suor misturado. Sei
que um risco de satisfação se acomoda em teu ventre, quando escapo e patavinas
me faz dobradiça e possível. Você adora.
Não sei o que deseja ler, talvez nem saiba que ainda escrevo
pelos rumos apressados de documentos empilhados na repartição central da
existência de um caos imaturo.
Minhas mesmices. Eu estive triste, talvez as notícias em
sites vazios, talvez a distância do que é suave, talvez você em outro corpo,
talvez eu em outras vulvas. Todo esse estrago, meu pó de giz, sabe?
Ainda observo pessoas. Descobri que discursos maldosos, no
fundo, ainda são discursos maldosos. Manipulação e jogos de interesses.
Afastei-me dessa gente com gosto de mofo e olhos maldosos. Sem prazer nas vias
cifradas e pixotadas vazias. Ainda observo.
Da poética, esse cantochão que permite rematar e custodiar o
pouco que somos, nada desfiz. Barracos acumulam cidades. Vi um verso avoar
gente e não liguei para o fato. Estou ruim do sentir e do amimar palavras. Da
poética. Nada se leva em dias de cavalhadas sobre a barriga. Entende?
Não sei o que deseja ler. E não faço nada além de dedilhar,
sem estratégias e amor, essa nutriz espaçada de lógica e estrutura. Perdi
metade do mundo que pairava sobre meu lampejo de mulher e não sei compor o que
congrega o humano à alma, aos céus, ao lixo da vizinhança morta em dia de
glória.
Hoje sou mais pedra que mulher. Talvez um muro e um sol.
Você adora.
Camila Passatuto
Você pede uma poesia inocente e eu tenho a putrefação na
ponta dos dedos, granadas avessas, asfixia barata, envenenamentos planejados.
Você pede a literatura maior... e eu fodo minha demência em
clínicas especializadas. Saiba que palavras são meras trincheiras abatidas no
primeiro ato. Estamos entregues.
Guarda teus quereres para a liberdade que dorme. Zela.
Camila Passatuto
As pessoas sempre barulhentas. Com caprichos escandalosos,
com desejos a ensurdecer deuses, com as meias suadas e cabelos oleosos. Os
bandos a caminhar raivosos pelas ruas. Bandos de assalariados, bandos de
ternos, bandos de coxinhas, bandos de sonhadores, bandos barulhentos. Sons que
nada proclamam ou libertam. Em conjunto, mesmo com esforço, ninguém se escuta.
Cada um resmunga para os próprios ouvidos, enquanto o resto finge importar e
compreender o egoísmo do discurso exalado pelo animal da vez.
Camila Passatuto
Não comportou
as vigas bambas
das ocupações
do ser em desacato
Lutou com o garfo torto
o prato vazio
E um gosto ruim
entre os lábios.
Apaziguou suas crises
na muda viagem de trem.
Suportou na fila.
os insetos que zombam.
(Zumbidos soldados)
Não há o riso
na graça do ser.
No ato importuno
de certeza andaluz
estreitou a vigília
da mente sem elo.
Limitou os dias
os gritos, a esperança.
Vomitou três vezes
a mera existência.
Lutou com o garfo torto
nas costas moídas.
Ressuscitou na praça.
estreitou a vigília
dos homens sementes
que não vingam
de junho a agosto.
No ato importuno
recitou poesia
sem rima
mau agouro.
Apertou as contas
contra o peito fundo.
E chorou uma dívida
que não o cabia
Não comportou
processos
cegos e burocratas.
Vingou.
Sem rima
bom agouro.
Óbito
Dia cinco
do mês oposto.
Camila Passatuto
Folheia meus fios na sombra de leis que secam a existência
de um povo amordaçado pelas próprias vestes.
Retira da cruz esmaltada nossa mártir confusa. Sacrifica um
espaço na linha de produção falsificada pelos lobos. Reproduz a poesia mola,
seca uma caatinga inteira no peito metrópole. Seca.
Eu estarei entregue. Atada nos cortes congressistas e
clérigos. Eu estarei ali. Na morbidez noturna de uma iluminação falha da
periferia em nós.
Alumia meus versos. Que estou morta na voz enlamaçada e
latina dos pedintes do centro.
- Uma pedra queimada.
Minha alma se dobra e aquece o umbral da Júlio Prestes.
Mune esse tempo ruim que malsina nossa paz. Vai. A chuva
ácida é literatura de pergaminho nos bueiros atolados.
Eu escrevo sob um rancor oxidado. Sem medo.
Saca essa arma entre os olhos e salva, nos lampejos aluados,
as esquinas de estrofes anêmicas.
O poder suga até a última tripa.
Vem. Limpa a poeira dos dentes.
Pois a linha de frente acabou de se render.
Folheia meus fios com os dedos mais leves no assentar de cor
e liberdade.
Governo nenhum candonga a miséria que levo na boca em
percal.
Folheia meus fios na loucura mais tênue do assimilar de
vida.
Salva um dia por vez.
Sem temer.
Camila Passatuto
Do livro "Nequice: Lapso na Função Supressora"
(Editora Penalux)
Inimigo
Imerso ao cheiro forte da cidade
Na espera do meu galope,
Desesperado.
Eu sei das luzes
depois das seis...
As meninas viram árvores,
As bebidas, em porcentagem,
Melhores.
Queria tua alma
Entre
As rodas da carroça
E você, malfadado,
Do outro lado da bainha,
Na espera
Do lance puro
Que esfola a dignidade
Da pouca poesia
Que me jorra
Da boca
Boca
De poeta
Basculante.
Poema: Inimigo (2014)
Camila Passatuto
[Autismo Feminino] Filme: Loja de Unicórnios
O filme não se trata da passagem da juventude para a vida
adulta. Não do jeito/modo que quase todo mundo transita.
O longa trata, de forma quase camuflada, o espectro do
autismo em mulheres, e mostra como a mulher consegue - quando o autismo não faz
parte dos níveis mais avançados - se adaptar ao mundo. Seja através da
observação e da cópia de gestos e atitudes de outras mulheres, pelo fator
Sociedade ou de uma autocobrança.
Tudo isso, e com a prática do que é visto e repetido, leva
essa mulher com transtorno de espectro autista leve a um quase êxito de seus
objetivos de transição (ou qualquer outro).
Pouco é falado sobre o autismo em mulheres, são raros os
profissionais da saúde que conseguem identificar o autismo em meninas e
mulheres, pelo fato de estar enraizado o manual de "sintomas" do
autismo masculino. Isso faz com que muitas mulheres passem a vida com um
diagnóstico errado.
O filme dirigido, co-produzido e estrelado por Brie Larson
(primeiro filme dirigido por ela) talvez não receba as críticas pontuais com
base nessa linha de interpretação.
Talvez quem conviva, ou viva na pele, com o autismo será
capaz de perceber os "ritos de passagens", as ansiedades, a criação e
desenvolvimento de processos criados pela própria personagem e entender como as
mulheres com o espectro muitas vezes conseguem passar "despercebidas"
neste mundo de tantas cobranças, mudanças, estruturas, complexidades e pressa.
Existem mundos incríveis dentro de cada um. Uns mais
coloridos e complexos que outros. Todos merecem respeito, espaço (espaço é
muito importante) e apoio.
Todas(os) nós lutamos para evoluir. O filme de Brie é
isso... sobre evolução.
Camila Passatuto
Matei
Depende do dia
tudo deriva
da brincadeira
de quem é breve.
Eu não sei
consumar poesia
é chumaço de ideias
é rancor por morrer
calada.
Eu vi Deus liberar línguas
e o Diabo romper pensamentos.
Depende da dor
não há palavras
na garganta de poeta
no balcão da pia suja
na supuração do livre.
Os monstros rasgaram
meus olhos
e fugiram com o sentir.
Hoje sou o primeiro verso
quando mundo se encolhe
de barriga vazia aos socos
longitudinais de uma mãe louca.
Camila Passatuto
Tipos
Eu vi o copo mexer
eu vi a cortina gritar
e gemer e falar mal de mim.
Eu comi um pedaço da mão
eu pensei que era real
Eu vi a menina entrar
e a porta bater
como tambor de Xamã.
Ela mordia meu ventre
perseguia o Eu
que guardei tão bem,
Paranoide,
Cretina. Sou.
E rutilavam,
doces cordas
ao redor do pescoço,
cores que
a coruja me tomou.
Eu vi
e cantei piedade
no enquanto
de sufocamento,
tão mélica
ao vento,
fui.
Camila Passatuto
Encontrei ruínas por trás dos olhos bonitos que seguiam rumo
à região central.
Passarelas implicantes a definhar calçados padronizados com
emendos refletidos às pressas, num domingo deflacionado de prazer, nos levam ao
altar comum de virgens imerecidas.
Pedras e poeiras. As mãos têm fome e tocam macieiras
imaginárias. Multiplicam os afazeres em corpos fajutos no sinaleiro próximo.
Louvo.
Eu matei Helena, senhor!
Sou o embornal dos dias sem caça, precoce decisão de um amor
à primeira vista, chave Philips em narinas quebradas.
Ela desapareceu com granadas nos bolsos. Fios de cobre na
cabeça. E aqui... meu tanque de guerra atolado na pracinha do Municipal.
Alguém levantou bandeira, é uma passeata de improviso.
Confusão na porta da firma.
A moça sumiu.
Tinha ruínas por trás dos olhos e cemitérios inteiros sobre
a pele negra.
-
Jovem é morta.
Virou céu
na minha obsessão.
Não.
Eu não matei Helena, senhor!
___
Trecho do livro "Nequice: Lapso Na Função
Supressora" Camila Passatuto
Virgo 86
(poema publicado na Revista Libertinagem, 2018)
Entregue aos danos
Da fêmea que germina
pérfidas chamas
entre velas
de súplicas e piedades.
Abençoada estou.
No equinócio
atrasado de teu rubro
verme que desaponta
as dores dos brabos verbos.
A ti.
Mulher do canivete amolado,
métricas sem arrimos práticos
da poética que mata por descuido.
A ti.
Mãe do inquestionável
meretriz das falhas
e dos rumos
Senhora
do fim.
Abençoada estou.
No gozo industrial
das máquinas de costura.
Chega, pequena.
Arremata
meus pontos finais.
Vem.
Germina por si só,
ventre interlocutor
de constelações
em mãos duplas.
Bate o ponto.
Floresce.
Rima
a tua com a minha.
Arremata, moça.
Cuspa o arsênico
limpe os pés.
Que estou entregue
aos danos que, em nós,
bem me querem
A ti.
Camila Passatuto
Tentei aquele amontoado de palavras predefinidas para os
dias tristes, untei os pés com lodo divino e recitei ações infundadas na resma
de vontade cujo valor e função dissipava minha existência.
Esperei o ônibus conforme a rotina, e o céu vomitava um
púrpura tumular sobre a massa que mal sabia das padiolas que a sustentava, era
o avesso de uma utopia, o chão de lava que tantos temiam.
Estava ali.
Eu queimava, os capitães do mato choravam nas varandas
frescas de famílias engenhosas e coloridas. Era horrível, bonito e infantil. De
uma balbúrdia visual capaz de afetar um deus desatento.
Tentei um poema curto, cheio de sangue, baço esmagado e
rimas primárias. Nada.
E tinha quem pregava que as linhas eram irmãs puras de
estrofes inteiras. Coitados. Cegos. Ineptos.
-
Hoje, no calcanhar gangrenado do tempo, beslico uma
mortadela ruim e esqueço do universo sombrio que levo nas pontas dos pés.
Carrego o bolso da calça apertada - caralho, engordei cinco
quilos desde aqueles dias - com pinos suficientes para minha equatoriana e eu.
Corre. Joga a toalha enquanto há vida, amor.
-
Lembro que testei uma estrofe mordente, filha de ventos e
mares, cruel e capaz de engolir uma cidade inteira. Assustei-me, e fui escutar
Leci.
Derreto os olhos no tormento que me cabe, não há saídas
alternativas, alguém me avisou.
-
Fico com o velho cheiro de morte
Troféu abrasador dos aflitos
Tentei. Juro.
Conforme rotina
De mãe morta
A ninar com vermes
O intruso que habita seu ventre.
-
Eu queimava.
Era horrível, bonito e infantil.
Eu falhei.
Camila Passatuto
Viaturas nunca intimidam a descarga de sangue quando o tempo
fecha e não chove a mercê do rei.
Tente me esperar do outro lado.
Sei das tolices, esses brotos amarelos que nascem no entre
de vielas abafadas a estourar chinelos gastos e cabeças raspadas.
Esse monumento talhado no metal, que alimenta nosso bando
inteiro, diz que não sabe, não viu ou sentiu.
Quem sabe?
Teu olhar odioso dobra a umidade do alojamento. A vontade de
sobreviver passou.
Tenho saudade dos fins de tarde, tempestade rasteira, vento
de arrepentar linha de pipa, os redemoinhos de saci com fome de medo. E você
escorada na porta de aço, lembra?
Ela toda cinza combinava - desrespeitosa e fiel - com essa
tonalidade que o pé d'água impunha ao olhar teu.
Tudo passou pelo pé da soleira.
Grades finas não educam por uma noite.
É que quebrei o nariz de alguém, a mão ainda dói. Quando vi,
olha só, a garrafa já rompia jugular. O que posso fazer?
Sei das filhas-tolices.
Tua boca borbulha rancor.
Presídio nenhum segura o vício por finais estupidos. E erro
ao pedir um perdão rouco ou uma espera egoísta.
Apunhá-lo o manual das almas. O cheiro de esgoto envolve
minha paz travestida. Juro força ao lúdico e devoro partes dos dedos ansiosos.
Tua boca borbulha rancor.
-
Apago a luz. Sei do disparate.
Peço. Tente me esperar
do outro lado
- linda, calma e sã -
Virgem das noites em mim,
Salvação de tártaro
Filha de Dante.
E foda com Lilith
Na balbúrdia
Do fim,
Meu amor.
Sem dó.
-
Artigo 121
-
Camila Passatuto
Sobre Poemas
Nada contemporâneo
Há um arcaico olhar em mim
Que não sabe ficar de fora
Adentra qualquer alma que passa
Não há nada de moderno
Ainda amolo o poema
No fêmur
E descolo a métrica na mandíbula
E se a morte vem
Matuto que sou
Ofereço um café
Para a transa durante juventude
Nada de Andy Warhol
Tem Basquiat na minha testa
Nada de nada
E você vem
Prova e reprova
É que sou sujo e amargo
Velho em inédito
Nada contemporâneo
Há um poema, leitor,
Brotando no teu peito.
Poema: Sobre Poemas (2014)
Camila Passatuto
Enterrem as soluções. O fim é lastimoso.
A tua matéria não conhece os quereres da tua mente. São
desconexas, descompassadas, desmioladas ligações.
Não adianta, teu peito lânguido não sente mais nada, não
sabe da sede da boca, os olhos não conhecem o sentir do clitóris. É uma farsa.
Abre alas no salão principal.
Dar vastidão ao pensar, livrar-se das mentiras que a mente
produz. Ser um só, um só átomo a desaparecer com os anos e deixar a submissão
da ideia de ser, para trás.
Enterrem as soluções. Somos uma anomalia com fome de
criação. Quero ser um só, um só átomo, filha pedinte de uma só alma.
Desliguem os aparelhos, senhores.
Trecho do Livro "Nequice: Lapso na Função
Supressora" - Camila Passatuto (Editora Penalux, 2018)
Essa exaustão que amiúda os movimentos, contorce os olhos
desesperados dos que me cobram tarefas e prazeres, atrasa minha transa,
descalcifica o amor pela humanidade e bamboleia o lirismo bastião.
Não é nuvem de cigarro, nem lápis apoiado na orelha. É a
inanição dessa gente. Esse ódio tolo que afasta.
Na rua me doam dentes amarelados a fincar firme o braço até
a infecção final... Eu vi o fim e não profetizei.
É uma volta a mais de metrô em teus trilhos de sinfonia
ruim. São meus cavalos que não galopam, sempre estacionados no centro da
cidade, errantes de meus erros supostamente dedilhados nos pasquins de segunda.
Meu amor, eu falo dessa doença que entrava, não escoa e nem
carboniza, faz as palavras tomarem pesos absurdos.
Mata minhas meninas, apodrece os meninos.
Essa preguiça que não é. Limite. Esse caos de começo, essa
poesia que não me cabe os dedos, que não me ladra em rimas ou bastilhas de teu
reino.
– Siga em mim a falha fratura de queda. Entenda!
Calo-me. Sobre a língua o salvador.
Tuas aleluias dominicais adentram minha boca.
21h15.
É prozac, doutora?
Trecho do livro "TW: Para ler com a cabeça entre o
poste e a calçada" - Camila Passatuto (Editora Penalux, 2017)
Elétrica
Entrei na fila,
tomei de eiras
a olhares
em repelão.
Destaquei da luz
entendi
trajetória de santa.
Atravessa
a 39.
Moderna.
Ela
Retorta aos ângulos
dos castanhos meus.
Nua Terezinha.
-
Fui carga
puntiforme,
meu bem.
Tomei de eiras
ao chão distante
de racho-fêmea
era positiva
magnética
pontual.
Entrei na fila.
Desprezível que sou,
de massa pequena
pisotearam o couro
negativaram meus polos,
entende?
Santa minha
esculpida
à d’Arc,
cabem meus dedos
reumáticos
a ti?
Reza-me
propaga tua
luz regular
em corpo translúcido
em copo de bar.
Sente, Tereza.
Goza, Tereza.
Hoje pode.
-
Pisotearam o couro
negativaram meus polos,
entende?
E cá me
recolheram
à morte,
corpo-sol.
-
Descansa que é cedo,
Queima.
Poema: Elétrica (2019), Camila Passatuto
Alegações
O poema fura o silêncio.
Esgota um projeto de nação.
Faccional, entope os bueiros da cidade.
O poema é esse gosto pela dinastia
falida das palavras alinhavadas pelo fel.
O poema explode a metáfora
mas insere no ritmo sua tensão maior.
É, sobretudo, iminência.
O poema perambulando na quadra da morte
desafiando o buraco causado
pelo som, vibrátil, concêntrico
dizendo-se ilharga das folhas
e percepto vegetal.
O poema é você de frente, de costas
pro silêncio continental
de um quarto de século
no spacatto e no sopro
de um bailarino enfurecido
que se tumultua ao sabor do gesto –
o poema não presta e você não presta
mas tudo nele é movimento: te concerne e te preza.
*
(2018)
RTD
Forma
Ficou um mar de sangue
Svetlana Aleksiévitch
O que tenho
o não saber
o que move
o que me desenha
o que o sofrimento petrifica
sem magia ou beleza
do que Aleksiévitch se apodera
do que Chalamóv fala
da imagem de um tempo
gigantesca vala comum
de utopia e inocência
da culpa tão terrível
de todas as histórias
ser um homem-pena
diz Flaubert
penso que me pesa
desejar como Svetlana
ser a mulher-ouvido.
*
(2018)
RTD
A vida podia ser um livro
com sumário.
Aí a gente podia pular as partes chatas, tristes
ou tragicômicas
-- como aquela vez em que me espatifei no chão
diante da menina que eu gostava,
ou aquela outra em que me descobri
menor do que eu me imaginava.
A vida podia ser um livro
com notas de rodapé
-- aí quem sabe eu ia entender
porque tu me traíste
ou porque tantas vezes,
vergonhosamente,
eu me traí.
Mas não, a vida é um livro
que deve ser lido por inteiro,
de cabo a rabo,
sem auxílios, sem atalhos,
nem consulta a dicionários,
torcendo para que ao final
o fim não seja tão vil
quanto morrer abandonado
num leito de hospital.
Otto Leopoldo Winck
Ejonilé
Passo
a ver-te corar
Recita mansa
Alarga verso
Para supostas
entranças,
Em ti?
Mal ligo
os pontos
Rainha das quebras
Pixo de laje
Xeu Epá Babà!
Se tem Molotov,
É jantar.
Pede
Lambe
Caça e
Morde.
E passo
A ver-te
Rolar
De guerras
e birras
Mata homem
Beija chão
(Só quero paz)
Supernova
Nem liga
Só fode
Explode.
Coisas
dessas.
Nua, louca, fina
Na linha
Passo
(Sem ar)
Rasga jornal.
Sirene colore?
Corre, garota,
Não morre.
Sopra meu ar
Abre caminho
Tão fria, vai.
Demanda,
Não entrega
Explode na cara,
Preciso é.
Fala bonito, alarga verso,
Cefeida maldita
- quem hoje
tem fé? -
Meu clichê
Paulista
Dispêndio feroz
Menina
bonita
Perdida na Sé.
Camila Passatuto
Trazes entre as omoplatas
um oceano de antúrios: a vida é doce é bela
como um lábio mordido
e o gosto de sangue e lágrimas misturados.
Trazes entre as coxas
um campo de tulipas e nos antebraços
galés naufragadas.
A história é tão antiga
quanto a chuva nos telhados.
Por isso eu sei que trazes nas panturrilhas
terras ignotas e no ventre uma ilha onde os pinheiros se
elevam
como votos.
A vida é doce e bela
como uma velha história
mal contada.
Otto Leopoldo Winck
Como quem cata feijão
cato velhos poemas
para um livro novo
que já nasce velho
-- como todo livro.
O máximo que posso fazer
é mudar a ordem,
trocar palavras,
renomear poemas -- o nome
é o nosso maior problema.
Como quem recolhe os cacos
da louça que se quebrou,
recolho esses pedaços
da vida que se foi
-- com os quais tento urdir um todo.
O livro pode até alcançar uma ordem,
parecer mosaico, vitral, quebra-cabeça.
A vida, não. A vida
é o nosso maior problema.
Otto Leopoldo Winck
-- Inventa aí um verso. Um verso bem louco.
-- Teu nome é uma cicatriz na minha espessura.
-- Há-há, legal. Outro.
-- Está pensando que eu sou uma máquina de poesia?
-- Você não é poeta?
-- Mas não uma máquina.
-- Deixa de frescura. Inventa aí.
-- O sol escorregou pela encosta e a noite aflorou nos
bordas dos meus olhos.
-- Puxa, que lindo! Agora já sei que você é poeta. Mas será
prosador também?
-- Com certeza. De minha lavra às vezes rola um verso, às
vezes rola um conto.
-- Então, diz aí o início de um conto.
-- Só se for um continho, um conto pequeno, porque minha
paciência está acabando.
-- Tá bom. Pode ser.
-- Inventa aí um verso. Um verso bem louco.
Otto Leopoldo Winck
Não tenho certeza se inventei o som dos pés magros a comer a
rua maldita e discretamente expurgada de um desvario matutino, ou as poças do
líquido urbano que de praxe hidrata pombos e pneus carecas - como mãe de peito
cheio e dolorido.
Afundo as ideias na cena melodiosa, abarrotada em gemidos de
fome e céu, no denso e uniforme borraceiro, imperfeita por sentidos e direções.
Não sei do pertencer de cada elemento, disposto a fino ajuste, no passar de
gente triste e apressada.
Por mim, tanto faz.
É na ponta do ser que posso sentir o real de mundo. Algum
deus desatina compasso entre o medo e o peso do ar, que se rarefez apenas para
patinar meus pulmões e murchar desejos, nesta manhã.
Tenho os pés doentes de mundo. Deve ser por isso.
Pisei, sem querer, no resto de um gato morto. Nada senti.
Foi esses dias.
A morte seca, sem miúdos e sem pulsar, não move minha
atenção, meu amor ou, até mesmo, meu nojo. No entanto, desconfio que tal
repente foi um sonho.
O pouco de corpo crava a carne no centro de um universo
difuso e sonolento. Não tem ninguém nas janelas, nos córregos, na rotina de um
domingo amaldiçoado. Observo minha base diluir e unir-se ao chão sujo, bem no
meio da cidade. E ninguém por perto a fim de relatos futuros.
A chuva leva meu sangue para o bueiro da General Osório. E a
cidade me tem pelos pés, enquanto fico nula ao transmutar meus temores. Afundo
a vida na dor melodiosa dos desprezos meus. E isso acalma.
-
Entrada na emergência
Nulificação parcial dos dedos,
Pé esquerdo.
-
Não tenho certeza
se inventei meus
pedaços, general.
Camila Passatuto
A essa altura, sei que não mais adianta, um copo de cerveja,
a cartela de neurolépticos, aquela agulhada no pé ou a contemplação desse céu
embaçado que maltrata qualquer ideia de vastidão.
Organizei, por datas e sentimentos, desenhos e textos. De
nada vale o peso morto de uma mulher, nos rondantes escapes, pois permanece a
inutilidade da matéria fria sobre os sentimentos caçados em eras de quereres
imos. Só organizo.
Preciso ir.
-
O chiclê dos suicidas me enjoa a alma, faz rir e levita a
poética com a aresta principal do olhar, como se um campo devastado por pragas
alimentasse o senhorio com o orgulho dos restos.
Tolice.
-
Analiso o poder baldo das amantes com notas fiscais, do
cultivo de zinco entre os dentes, de líderes abatidos na sexta-feira santa, dos
poetas apáticos com suas poesias mornas.
E quero queimar.
Droga!
Revirar mentes, descolar a pele que enclausura o sentir,
invadir fármacias e curar o real que se instalou como rei nessa esfera densa de
terror.
De nada vale essa voz que indica as fugas matinais. Saí! Sou
estátua que restou após os bombardeios, não sei ir. Some daqui!
Viro o copo, entorno os remédios, aqueço a colher e observo
as nuvens da cidade choro.
-
Volto a escrever
Nas paredes do corpo
Esqueço vírgulas
No braço azul
De nada adianta
Minha heroína
Decepada,
Poética Ruim.
Camila Passatuto
Anelo
Acaricio seu chorinho
de cão, pequeno gemido
em minha infância corroída
falam os ossos por detrás das cortinas
o sol deriva de alguma manhã
Setembro anela os deserdados
um sorriso perfaz o futuro
pedra de toque, duríssima
surgimos sobre monturos.
*
(2015)
RTD
MosteirodeEsquina
Roga ao som da sineta
Na prolação da fé.
Insinua tua boca
Em pele-salvação.
Distraio em logogrifo
Alguns minutos
Da pouca vida
Prematura.
Ajoelha poesia
Na saliva minha
Ajoelha
Clama e proclama
O verso santo
Das pernas cruas
Roga ao som da sineta
Nossa liberta voz
Lutuosa de hoje
Em tom lúgubre de ontem...
quarta-feira, 10 de julho de 2019
Epifania
homero gomes
Para ana damm –
que teve essa epifania aos 6 ou 7 anos de idade.
Ela caminhou lentamente em direção àquele volume de
luz clara que se expandia. A areia era fofa nos seus pés. Sentou no
escorregador apenas para ver.
Crianças corriam, caiam, davam risadas. Viviam sem
perceber a possibilidade de virarem sombras nos brinquedos retorcidos.
Mas ela percebeu.
A menina viu o fim brotar com esplendor; feito o
amanhecer de pequenas nulidades.
Ela percebeu que os ossos das crianças correriam os
ventos gemendo futuros. Viu os seus ossos pequenos virando poeira de infância.
E sentiu medo de deixar de ser.
O pequeno corpo da menina estancou no meio do
parque. Sem querer brincar, anulou o grito e esperou a primeira fagulha.
Revista Cult, ano 11, n.º 130, novembro/2008.
terça-feira, 9 de julho de 2019
Depois da Cidade
Agora que procuras o verso ideal, que inicie o novo poema
E encerre um primeiro, agora que é maior o malogro.
E tu bem sabes o tamanho disto, a distância entre o que
acham e o que corriges.
Menores assim as premissas que te cabem.
O teu verso parco, o teu desgosto, o teu sorriso inócuo
(inócuo porque és incipiente),
O teu abraço desajeitado, a tua eterna obra em aberto.
É depois da cidade que os suspiros se ajustam.
É depois da cidade, esta que nunca foi tua, onde não existem
mais motivos.
O coração não foi nunca mais aquele pedaço esquecido do
acaso,
E o escopo largo dos sorrisos escamoteia a nuvem negra sobre
a cidade
Enquanto as portas se fecham a toda prova
E os guizos nos pescoços das crianças gemem como elos
achados de uma fantasmagoria.
Por conta do que vai escrito não houve mais recusa sob
hipótese nenhuma.
O trem suburbano viajando na madrugada para mais um dia de
trabalhos forçados,
E o dinheiro estará lá, contado, e o infeliz também estará
lá , com certeza.
O coração bate compassado como numa marcha.
Existem aqui cadafalsos em cada pendência.
Cada passagem e sua impossível sentinela esquálida
parafraseando a metamorfose dos fracos a deitar a vista
Sobre os cumes elevadíssimos da competência – ai!
competência à paga de tanta fuleiragem:
O morto futuro antevê o seu defunto.
Se toda a palavra fosse uma alegria, uma consonantal alegria
impronunciável (?),
E aqui nada haveria como vai; amanhã é sábado, não levar
consigo os escrutínios.
Às vezes é tudo o que se avista daqui: grandes pensamentos
terminam em ócio,
Embora o miocárdio seja insistente na sua jornada finita.
O sangue reticente foi o alvo que agora a seta difusa não
quererá mais atingir,
Seu modelo principal foi o pecado, a multa que a
parafernália dos íntimos não observa.
Aqui estarias saturado de incompetência e desespero,
E sabemos que ninguém advogará em sua causa, coadjuvante que
és na esfera do lindo.
Ari Marinho Bueno
BARROCO
É urgente
o apelo desta tarde:
o sol que arde,
o vento que bate,
e passos que traçam
caminho algum.
É ingente
o desejo desta tarde:
seixos rolados,
templo vazio
e uns olhos arregalados
de pedra-sabão.
Agora é tarde.
O sonho, tardo,
revelou-se torto
– ou falho.
O sol-posto
deixa um travo de sangue
no horizonte.
(Todos os caminhos são nenhum.)
Ao fim da ladeira,
um anjo barroco
– o último –
cerra as janelas
de um velho sobrado
em Mariana.
Otto Leopoldo Winck
Noite morta:
todas as almas são pardas
toas as ruas são largas
todas as luas são baças
e se deixam refletir,
sem nenhuma timidez,
pobres, nuas e loucas,
nas poças sujas
de todos os becos
de todas a bocas.
Noite alta:
todas as esperanças são mortas.
Otto Leopoldo Winck
A TUA AUSÊNCIA
A tua ausência repleta o vazio.
Cachos de inocência,
seio, aroma, pétala
invisível. Teu jeito não se vê,
na sombra se pressente.
A tua ausência é uma adaga
ou uma adega
abandonada.
Há poeira. Há quietude. Há penumbra.
Há expectativa também: é madrugada.
A tua ausência reelabora
a imatéria da memória.
Como um filme eu revejo
a lua, a praia, a rocha da enseada
e teu corpo
arfante,
em silêncio,
a se me entreabrir na areia.
A tua ausência é uma anêmona do mar.
Otto Leopoldo Winck
O DUPLO
Dera para levar uma vida dupla. Uma, oficial, solar, normal.
A outra, clandestina, lunar, secreta. Na primeira, acordava, lavava o rosto,
virava um café, tomava o ônibus em segundos exatos, trabalhava, engolia sapos,
se relacionava com os conhecidos, os parentes, os raros, poucos amigos,
almoçava um prato feito, voltava para casa, dormia menos de seis horas por
noite, pagava contas, telefonava para a mãe no dia do aniversário dela, recebia
poucos, raros telefonemas... Na outra, lia seus romances antiquados adquiridos
no sebo, seus poemas de poetas taciturnos e bêbados, ouvia Brahmns, Miles Davis
e João Gilberto, e sobretudo sonhava com os livros que iria escrever um dia: os
personagens, a trama, as paisagens, os becos, as vielas, as lombadas com os
títulos em caixa alta. Na primeira vida era quase feliz, mas disfarçava. Na
segunda, ao contrário, era profundamente infeliz --. e era feliz com isso,
profundamente feliz com esse signo de eleição. Como Kafka, como Dostoiévski,
como Baudelaire, como Fernando Pessoa. Aquela sim era sua verdadeira vida, só
nela se reconhecia e conhecia o seu rosto. A outra, ah, a outra era um sósia
extramente insosso que a vivia por ele.
Otto Leopoldo Winck
Deus concedeu aos homens e mulheres, ao longo de sua breve
jornada sobre a Terra, algumas doses de felicidade. Mas como ele é sacana, essa
felicidade seria precária, efêmera e clandestina (sobretudo clandestina, como
um contrabando vindo sorrateiramente das terras do Éden). Portanto, aproveite
intensamente cada hausto de felicidade que lhe é dado viver -- pois depois que
ela passa, fica em seu lugar apenas uma como que doce e desolada paisagem crepuscular,
a que chamamos com o nome de saudade. Ou literatura.
Otto Leopoldo Winck
Maxixe
O chocalho dos sapos coaxa
como um caracaxá rachado. Tudo mexe.
Um vento frouxo enlaga uma nuvem baixa
fofa. E desce com ela, desce.
E não a deixa e puxa-a como uma faixa
e espicha-se e enrolam-se. E o feixe rola
e rebola como uma bola
na luz roxa
da tarde oca
boba
chocha.
Arco-íris
Primavera.
Um pedaço de céu caiu na terra:
em tufos fofos de flocos frouxos frívolas hortênsias
volantes como crinolinas fúteis
desmancham-se em reverências
ou passeiam como sombrinhas lindamente inúteis
ou pousam empoadas de ar como pompons. O céu
é um grande linho muito passado no anil
que o vento enfuna num varal de vidro. Ele é o
toldo azul de um bazar
onde brinca vestido de ar
um clown elástico, ágil e sutil.
Haicais de Guilherme de Almeida
(Haicais)
Os andaimes
Na gaiola cheia
(pedreiros e carpinteiros)
o dia gorjeia.
Pescaria
Cochilo. Na linha
eu ponho a isca de um sonho.
Pesco uma estrelinha.
Janeiro
Jasmineiro em flor.
Ciranda o luar na varanda.
Cheiro de calor.
Infância
Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".
De noite
Uma árvore nua
aponta o céu. Numa ponta
brota um fruto. A lua?
Romance
E cruzam-se as linhas
no fino tear do destino.
Tuas mãos nas minhas.
Festa móvel
Nós dois? - Não me lembro.
Quando era que a primavera
caía em setembro?
O haicai
Lava, escorre, agita
a areia. E enfim, na bateia,
fica uma pepita.
Rua
A rua mastiga
os homens: mandíbulas
de asfalto, argamassa,
cimento, pedra e aço.
A rua deglute
os homens: e nutre
com eles seu sôfrego,
omnívoro esôfago.
A rua digere
os homens: mistério
dos seus subterrâneos
com cabos e canos.
A rua dejecta
os homens: o poeta,
o agiota, o larápio,
o bêbado e o sábio.
Humorismo
Sossego macio da tarde.
Um sol cansado
passa pelo rosto suado
uma nuvenzinha alva como um lenço
para enxugar as primeiras estrelas.
Silêncio.
E o sol vai caminhando sobre os montes tranqüilos
vai cochilando. E de repente
tropeça e cai redondamente
sob a pateada dos sapos e a vaia dos grilos.
Essas Cartas
Num tempo de correios eletrônicos e jatos supersônicos , quero saber por que essas cartas disparatadas ainda me são disparadas como flechadas . Devo te dizer que algumas delas , no arco que fazem em sacos sobre o oceano , já chegam por aqui meio arrependidas . Posso muito bem ler a mensagem cifrada nessas entrelinhas recalcadas por canetas esferográficas . Sete selos colados na maldade mais boçal , azedando minha caixa postal ! Sinto informar que as tuas vinganças geladas foram meramente requentadas no sovaco de um carteiro distraído ... Mas , olha...Se você insiste em ser reultrapassada pra trás , então grave um recado malcriado na minha secretária . Prometo não atender a chamada . Se preferir, o que é melhor , nem ligue.
Fernando Bonassi. in Da Rua. . FSP . Ilustrada . 03/01/01
segunda-feira, 8 de julho de 2019
Vergílio Ferreira e a leitura
"Fala-se às vezes de 'inspiração' a propósito de quem
escreve uma obra. Mas nunca se diz isso de quem a lê. Mas lê-la é escrevê-la
outra vez. E é preciso estar-se inspirado para o conseguir bem. A inspiração
possível de quem escreve um livro cumpre-se nele sem mais para o autor. Mas a
de quem o reescreve, ou seja lê, é sempre variável. Ela varia não só com o
desgaste da repetição da leitura, mas ainda com a variação dessa variação e o
motivo dela. Porque por arranjos incognoscíveis pode alternar a adesão com a
repulsa e recuperar depois em adesão o que repelira e o contrário. Como pode
tudo ter que ver com razões mais cognoscíveis ou razoáveis e tudo depender
assim de um insulto que nos doeu ou de um vinho que nos caiu mal. Um livro que
se escreveu é imutável. O mesmo livro que se lê não o à ©. A inspiração de quem
escreveu deu o que tinha a dar. A de quem o recebe varia e não se esgota.
Porque se se esgotar, o livro não tinha nenhuma."
Vergílio Ferreira
Fonte : Macondo
Minha cantilena ao sol de isopor
Nato gênio retilíneo, são
Performático circo soube,
Ser
Então.
Sobras de olhos,
Sobras de sexo,
Sobras de afeto, adulação
Nada de novo entre o céu
E a tecla.
Os dias passam diante
Das páginas.
Todos poderiam se libertar
De si mesmos.
Ao resoluto passo centrípeto
Do coração,
Emerge e vai
Depurado seu não ser.
Hoje o sol brilhará seus pixels
Da glória em cor.
Jamais enxergaríamos,
Com olhos demasiadamente humanos.
Os caídos poetas, menores,
Em vícios menores,
Vícios de linguagem.
Cantarão aos copos vazios,
Beberão a Freud,
E às capas dos livros.
Eu canto ao sol,
Com menos obsessão,
Eu vou, e sou o que sou.
Eu
ACM
quinta-feira, 4 de julho de 2019
Os afazeres
Começava a perceber a razão de qualquer atividade . Não era a única maneira de se afastar de si ? O gato não precisava disso : podia viver pelos cantos , indiferente ao mais .Antes que o levassem para o quarto austero, só sabia rondar feito o bichano, submerso numa aparência que não se lembrava de ter visto em algum lugar . Agora estava ali , desenhando uma coisa parecendo uma gaze , por horas , até o momento do chá . Bebeu-o , a mão esquerda nos traços ainda quentes. Olhou pela janela do pátio . Uma bola parada. Desceu para encontrá-la . Pegou-a . Mirou.Fechou os olhos e a jogou. Atrás de uma coluna , um surdo impacto : alguém a conteve no peito e ali ficou. Voltou para o quarto. Fez do lençol um manto. Das bordas de pia , uma balaustrada. E se extasiou...!
João Gilberto Noll. in Relâmpagos. FSP 120201
João Gilberto Noll. in Relâmpagos. FSP 120201
quarta-feira, 3 de julho de 2019
relógio de sol
de todas as minhas façanhas
a que me dói mais lentamente
é sentir nas minhas entranhas
o meu coração arbitrário
gerando em sentido contrário
à parábola do poente .
Paulo Mendes Campos
a que me dói mais lentamente
é sentir nas minhas entranhas
o meu coração arbitrário
gerando em sentido contrário
à parábola do poente .
Paulo Mendes Campos
Vale de lágrimas
triste sina de gerações :
perdendo o medo de trepar
descobrimos o medo de amar
Ulisses Tavares
perdendo o medo de trepar
descobrimos o medo de amar
Ulisses Tavares
Patalogia social
seu porte altivo
seu carro último tipo
seu olhar de cima
seu clube exclusivo
seu andar seguro
sua empresa lucrativa
seu cumprimento vigoroso
seu loteamento fechado
seu sorriso decidido
suas ações e seu dinheiro
seu gesto certo e preciso.
você está doente, moço, doente.
Ulisses Tavares
seu carro último tipo
seu olhar de cima
seu clube exclusivo
seu andar seguro
sua empresa lucrativa
seu cumprimento vigoroso
seu loteamento fechado
seu sorriso decidido
suas ações e seu dinheiro
seu gesto certo e preciso.
você está doente, moço, doente.
Ulisses Tavares
Fera
meu filho é bicho.
ao ver como combina
seu riso com a utopia
sinto a urgência de destruir
as jaulas do mundo.
Ulisses Tavares
Abril de 1980
ao ver como combina
seu riso com a utopia
sinto a urgência de destruir
as jaulas do mundo.
Ulisses Tavares
Abril de 1980
segunda-feira, 1 de julho de 2019
DISPARIDADE
eles são todos redondos
que farei eu de minhas quinas?
logo eu, tão cheia de ângulos!
eu não caibo
nada encaixa
eles, tão planos e circulares
parecem plenos
desavisados de um diâmetro tão pequeno...
e eu aqui
eternamente a conformar minhas arestas
nas helicoidais difusas
desta minha conchacaixa
samizdat oficina e editora
Por falar em violência
Bom, ingressei nesse fim-de-semana acompanhado de uma
pneumonia. Essa seria pra mim a pior notícia do mês não fosse a que veio de
Goiás, onde uma enfermeira acabou de matar a pancadas seu cachorrinho na frente
da filha de 2 anos.
Os casos de maus-tratos a animais no país não é coisa nova,
mas está, ainda bem, sendo mais veiculado, debatido e criando, felizmente,
picos de indignação. O grande problema, como se sabe, é a impunidade ou a
fragilidade da lei penal brasileira. Maus-tratos a animais aqui é regido pela
lei de Crimes Ambientais de 1998 e dá, no máximo, 1 ano pra um sujeito que
extermina com crueldade um gato, um papagaio ou qualquer outro bicho. Nos EUA
um indivíduo foi condenado a 9 anos de prisão por ter queimado um pitbull.
Gandhi certa vez disse “pode-se medir a qualidade de um país
pela forma como seus animais são tratados”. No Brasil a cultura da indiferença
ao sofrimento e ao não temor pela punição começa desde cedo. Vemos crianças
atirando pedras em cães ou em cavamos e achamos normal. E daí para um patamar
superior, com jovens matando animais com creueldade, pelo prazer do ato, é um
ato “criminoso” no papel apenas. Cestas básicas ou termos circunstanciados
resolvem e o psicopata está de volta às ruas para continuar espalhando seu modo
cancerígeno de viver a vida.
Desse estágio em diante encontramos mães que largam seus
bebês à própria sorte em caçambas de lixo, em sacos plásticos nas calçadas,
etc. Que criação tiveram? Em que valores se espelharam? Que tipo de vida
pretendem ter? Matar um filhote de gato foi só o início.
Dizer que a culpa é só do governo é hipocrisia. Dizer que a
culpa é só da família que não educou, também. O controle de natalidade é uma
ferramenta importante a ser trabalhada, mas passa-se primeiro pelo ajuste do
campo social de emergência. Nesse ponto, o primeiro passo é uma consciência
ampla de família. Trabalhar a mente do pai e da mãe nesse sentido: há condições
de ter filhos? É necessário tê-los? Essa é primeira meta. Mas esse tipo de
pensamento também passa por uma reforma política. Porque é sabido que a miséria
gera votos. A miséria, ela própria, cria uma indústria de votos. Então, esperar
que o cenário macro mude sem a mudança micro, é como querer que o adulto não
seja traumatizado, estranho, rude ou violento se o que ele viu na infância foi
barbárie, se ele, aos 2 anos, viu sua mãe matar um cachorrinho na pancada.
samizdat oficina e editora
João Cabral de Melo Neto
Poeta brasileiro nascido em Recife/PE (1920), que com sua
tentativa de desvendar os elementos concretos da realidade, inaugurou um novo
modo de fazer poesia em nossa literatura. Ingressou na carreira diplomática aos
25 anos, exercendo sua profissão em diversos países, por mais de quarenta anos
um período em que o poeta conheceu a fundo a cultura espanhola, especialmente
quando viveu em Barcelona e Sevilha, o que deixou muitas marcas na sua poesia.
Membro da Academia Brasileira de Letras (1968), após se aposentar do serviço
público, radicou-se no Rio de Janeiro, cidade onde veio a falecer em 1999. Seu
poema mais conhecido, Morte e vida Severina (1956), é uma narrativa
(subintitulada Auto de Natal pernambucano) que trata da caminhada de um
retirante do sertão até o litoral, em busca de condições para sobreviver à
seca. A semelhança com um auto natalino ocorre no final, quando, ao presenciar
o nascimento de uma criança, o retirante renuncia aos seus pensamentos
suicidas. A obra do autor ainda contempla Pedra do sono (1942), O engenheiro
(1945), Psicologia da composição (1947), O cão sem plumas (1950), O no (1954),
Paisagem com figuras (1956), Uma faca só lâmina (1956), A educação pela pedra
(1966), Museu de tudo (1975), Auto do frade (1984), Agrestes (1985) e Crime na
Calle Relator (1987). (Fonte)
Poemas:
Cartão de Natal
Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de vôo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:
que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem
o sim comer o não.
Fábula de um arquiteto
1.
A arquitetura como construir portas,
de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e tecto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.
2.
Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até fechar o homem: na capela útero, com confortos de matriz,
outra vez feto
Homenagem a Picasso
O esquadro disfarça o eclipse
que os homens não querem ver.
Não há música aparentemente
nos violinos fechados.
Apenas os recortes dos jornais diários
acenam para mim como o juízo final.
Tecendo a manhã
1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
A lição da poesia
1.
Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.
Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:
nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.
2.
A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.
Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.
Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.
3.
A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.
A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis - naturezas vivas.
E as vinte palavras recolhidas
as águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.
Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.
Fonte : revista macondo
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