Dera para levar uma vida dupla. Uma, oficial, solar, normal.
A outra, clandestina, lunar, secreta. Na primeira, acordava, lavava o rosto,
virava um café, tomava o ônibus em segundos exatos, trabalhava, engolia sapos,
se relacionava com os conhecidos, os parentes, os raros, poucos amigos,
almoçava um prato feito, voltava para casa, dormia menos de seis horas por
noite, pagava contas, telefonava para a mãe no dia do aniversário dela, recebia
poucos, raros telefonemas... Na outra, lia seus romances antiquados adquiridos
no sebo, seus poemas de poetas taciturnos e bêbados, ouvia Brahmns, Miles Davis
e João Gilberto, e sobretudo sonhava com os livros que iria escrever um dia: os
personagens, a trama, as paisagens, os becos, as vielas, as lombadas com os
títulos em caixa alta. Na primeira vida era quase feliz, mas disfarçava. Na
segunda, ao contrário, era profundamente infeliz --. e era feliz com isso,
profundamente feliz com esse signo de eleição. Como Kafka, como Dostoiévski,
como Baudelaire, como Fernando Pessoa. Aquela sim era sua verdadeira vida, só
nela se reconhecia e conhecia o seu rosto. A outra, ah, a outra era um sósia
extramente insosso que a vivia por ele.
Otto Leopoldo Winck
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