"Fala-se às vezes de 'inspiração' a propósito de quem
escreve uma obra. Mas nunca se diz isso de quem a lê. Mas lê-la é escrevê-la
outra vez. E é preciso estar-se inspirado para o conseguir bem. A inspiração
possível de quem escreve um livro cumpre-se nele sem mais para o autor. Mas a
de quem o reescreve, ou seja lê, é sempre variável. Ela varia não só com o
desgaste da repetição da leitura, mas ainda com a variação dessa variação e o
motivo dela. Porque por arranjos incognoscíveis pode alternar a adesão com a
repulsa e recuperar depois em adesão o que repelira e o contrário. Como pode
tudo ter que ver com razões mais cognoscíveis ou razoáveis e tudo depender
assim de um insulto que nos doeu ou de um vinho que nos caiu mal. Um livro que
se escreveu é imutável. O mesmo livro que se lê não o à ©. A inspiração de quem
escreveu deu o que tinha a dar. A de quem o recebe varia e não se esgota.
Porque se se esgotar, o livro não tinha nenhuma."
Vergílio Ferreira
Fonte : Macondo
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