Minha terra tem madeiras
onde cantam motoserras ;
peões que ali viviam
servem de adubo à terra.
Ademir Braz
sexta-feira, 29 de novembro de 2019
quinta-feira, 28 de novembro de 2019
Três excertos do terror
I
Algum dia falaremos sobre amor ?
Só quando a morte fizer sentido, respondeu,
e urinou sobre o cadáver do amigo.
II
O sol do meio-dia sobre mim
como um helicóptero
e ou também
ratos brincando nas vaginas
das meninas.
III
Foi do alto de um telhado,
na primavera de dois mil e quatro.
O primeiro caiu como um carvalho na floresta.
O segundo, como uma velha no banheiro.
E o terceiro ?
O terceiro caiu como uma torre de Manhattan.
Pam. Bem na cabeça.
Rodolfo Jaruga
Algum dia falaremos sobre amor ?
Só quando a morte fizer sentido, respondeu,
e urinou sobre o cadáver do amigo.
II
O sol do meio-dia sobre mim
como um helicóptero
e ou também
ratos brincando nas vaginas
das meninas.
III
Foi do alto de um telhado,
na primavera de dois mil e quatro.
O primeiro caiu como um carvalho na floresta.
O segundo, como uma velha no banheiro.
E o terceiro ?
O terceiro caiu como uma torre de Manhattan.
Pam. Bem na cabeça.
Rodolfo Jaruga
agora um pássaro sobrevoa a cidade - é noite
e as penas não devem ser azuis
vasto o campo de morangos e rosas
onde
caminhei num tempo longe
faminto busca os caracóis do dia
[simbiótica autofagia ]
bichos que devoram
noites- dias
a vida sabe ser crua - mas se mantém
e os bichos
saciados a (se) suportam
nydia bonneti
revista Gilda
e as penas não devem ser azuis
vasto o campo de morangos e rosas
onde
caminhei num tempo longe
faminto busca os caracóis do dia
[simbiótica autofagia ]
bichos que devoram
noites- dias
a vida sabe ser crua - mas se mantém
e os bichos
saciados a (se) suportam
nydia bonneti
revista Gilda
Máquina
Há uma opressão de girassóis
e primaveras
em meu peito
as ruas cheias
os mundos cheios
- de fato nada repleto
todos tropeçam
na falsa lua
de um velho relógio
aguardam a anunciação
na verde sala de espera enquanto
as coisas reclamam a voracidade de máquinas
e respiramos
borracha e cobre
e rostos queimados
no fundo do peito
um arranhar de giz
brota, como se um menino
ousasse caminhar
inexperiente pelos chãos
da via
mas ainda que pisasse
suavemente espelhos
irremediável seria aprender rachaduras
há uma rede de pescar
( rasgada ) no mar do meu peito.
Angel Cabeza
e primaveras
em meu peito
as ruas cheias
os mundos cheios
- de fato nada repleto
todos tropeçam
na falsa lua
de um velho relógio
aguardam a anunciação
na verde sala de espera enquanto
as coisas reclamam a voracidade de máquinas
e respiramos
borracha e cobre
e rostos queimados
no fundo do peito
um arranhar de giz
brota, como se um menino
ousasse caminhar
inexperiente pelos chãos
da via
mas ainda que pisasse
suavemente espelhos
irremediável seria aprender rachaduras
há uma rede de pescar
( rasgada ) no mar do meu peito.
Angel Cabeza
quarta-feira, 27 de novembro de 2019
Olímpia
Três velocistas rasgam a madrugada
Dois negros , um branco
Qual detém vantagem ?
Ofegantes , ultrapassam os cem
metros com obstáculos .
Destaca-se a técnica espontânea.
Aquele que está à frente divisa
a linha de chegada
Mas antes de cruzá-la, recebe
quatro medalhas de chumbo
nas costas
Ricardo Pozzo
revista Gilda
Dois negros , um branco
Qual detém vantagem ?
Ofegantes , ultrapassam os cem
metros com obstáculos .
Destaca-se a técnica espontânea.
Aquele que está à frente divisa
a linha de chegada
Mas antes de cruzá-la, recebe
quatro medalhas de chumbo
nas costas
Ricardo Pozzo
revista Gilda
Um sentimento + um amigo= Um amor impossível!
Certa vez, Chris conheceu uma pessoa incrível à quem ele deu
o título de melhor amigo. Ele era alto, cabelos ondulados como os de anjos,
olhos verdes e muito bonito por sinal e se chamava M de Mistério ... Místico
... Muitos significados que na etimologia de seu nome é aquele que protege, que
defende.
No inicio, Christoff achou que poderia estar apaixonado por
M, mas não teve aquelas borboletas no estômago como todos têm quando encontra
alguém especial. Porém, Chris tinha muitos ciúmes dele, os dois se falavam
quase que diretos, por mensagem, telefone, chat ....
Alguns encontros que Chris tinha, contava a seu amigo M que
lhe aconselhava e as vezes xingava também, assim como um bom amigo. Certa vez,
Chris teve a ideia de convidar M para sair para beber a noite, dançar e os dois
foram, mas chegando na baladinha como se dizem, depois de algumas bebidas,
Chris teve enfim coragem de chegar em M, mas ele já estava acompanhado, Chris
então não sabia como reagir aquilo e só quis sair dali para não ver esta cena, depois
da noite de bebedeira e dança, foram para casa de Chris, seu amigo dormiu em um
quarto e Chris no outro, demorou até pegar no sono uma vez que estava
encorajado para abrir seu coração ao seu amigo, mas não o fez por medo. E
seguiu-se a vida.
Certa vez M chamou Chris para viajar com alguns amigos em
uma cidade próxima para um show, e com a convicção de se abrir e estar junto
dele, Chris aceitou e foi, chegando lá, tomou-se pela dança, bebida e mais uma
vez quando criou coragem, M já estava beijando outra pessoa, e novamente Chris
perdeu a chance, então ele convencido pela tristeza, jurou que não iria
atrapalhar a amizade dos dois. Meses passaram-se até que Chris foi trabalhar em
outra cidade, sempre manteve contato com seus amigos, e principalmente M.
Nesta outra cidade, Chris realmente aceitou que o que
sentira pelo seu amigo era amor, paixão, sentimentos encubados todos esses
meses, anos que nunca teve a coragem de falar a ele. Quando teve a oportunidade
de voltar para casa à passeio, convidou alguns amigos e M. Todos começaram a
chegar e Chris estava normal, quando M apareceu em frente a sua casa, seu
coração acelerou fortemente, aquele brilho no olhar tomou conta de seu ser, até
que uma das amigas de Chris teve coragem em perguntar:
- Chris, desculpa ser indiscreta, mas você e M estão juntos?
- Não! Porque diz isto?
- Parece que ele gosta mesmo de você e pelo que conheço,
você também. Só não teve coragem de admitir.
Nesta hora, as famosas borboletas voaram em sua barriga, e
realmente o que ele sentira era realmente amor.
Mas o destino as vezes é cruel, Chris resolveu afastar-se do
que tentar algo com seu amigo.
Chris quando retornou, escreveu uma carta para M, mas nunca
teve coragem de postar ao amado. Mas certa vez em conversa, ele mandou a tal
carta. Nunca soube a reação de seu amigo, se realmente o que Chris sentiu por
ele era recíproco, mas passaram-se os anos, M acabou indo embora com alguém e
Chris ficou, arrependido por nunca ter tentado sequer declarar o que sentia, e
o que sente depois de todos esses anos. As vezes fica pensando em como seria se
estivessem tentado, mas o resultado concreto desta equação nunca acontecerá,
pois nunca ao menos tentou, e por esperar acabou perdendo para sempre.
: Leandro Varela de Sousa - 22/12/2016
Influenza
Depois , você pega a Ilíada e segue reto até a Odisseia. Ali, você vai dar com o Troya's Horse ( bem na esquina ) : Peça um nausicaa. Normal. Se amarra no navio. Se segura. Mas deixa o olho aberto. Uns salpicados de onda fria no peito peludo. As imagens diagonais. Poseidon bem loke fazendo aqueles efeitos especiais . Não dê bola. Aperta o play : Véronique suave e triste, de um lirisminho tipo Ismália . Garantidíssimo, meu chapa. Vá por mim. Ai , e tudo num wislawês szymborskiano pra rebentar o coração . Love it soul much ! Coise Lá.
Avia !
Björks !
Assionara Souza
revista Gilda
Avia !
Björks !
Assionara Souza
revista Gilda
quinta-feira, 14 de novembro de 2019
UM TANTO DISTO
se a pessoa não te quis
ou foi você quem não quis
pense que a Cássia Kiss
e também a Alicia Keys
além do que até a banda Kiss
pra não dizer o que está visto:
mesmo o pus de um quisto
dependendo de onde posto
pode ser bem quisto
distante um tanto disto
ijs
"Se tudo pode ser metáfora de qualquer coisa e qualquer
coisa pode ser traduzida numa coisa qualquer, não há centro, o centro pode
estar em qualquer parte, ao mesmo tempo, ou nunca estar em lugar algum. Numa
cidade muito antiga, vivia uma história antiquíssima, a história de uma cidade
que foi destruída pela beleza de uma mulher, Helena, mulher do rei Menelau.
Naquele tempo, a beleza matava. A Medusa queria paralisar a história, a Medusa
queria a pedra. Perseu queria mais, fazer a história, contar a história, ser
contado pela história, esse, um dos significados possíveis da fábula de Perseu
e da Medusa, diz Tirésias a Heródoto, não me pergunte mais. Saber o futuro é
meu castigo, saber o fim de todas as histórias, o encontro das histórias
paralelas no esquecimento infinito. Cada cidade, suas histórias. [...] Viajar é
mergulhar no labirinto vertiginoso, lendas, cidades, variantes."
p.leminski, trecho de "Metaformose", sem grifo
(nem hipogrifo)...
ATO DE FILA
eu me declaro alma e corpo:
mente divina de Pallas Athena
mais espírito de porco
se uma divindade é trina
também não sou só um:
mão maga que fascina
fantasma que solta pum
ijs
Cor e som
Desde que signifiquei
A olhos outros
Não fui eu
A expressão se me veio
E, sim, se perdeu.
Um amor, um valor, uma
Matéria, um som, ideia
Ser,
Qualquer ser.
O atropelo terráqueo humano
Rotineiro
Sou póstumo para essa
Geração,
Meu poente anonimato.
ACM
quarta-feira, 13 de novembro de 2019
Laboratório Poético: desespero e pássaros carniceiros
Volmar Camargo Junior
Esquecimento
(revisitado)
i.
ecoa em cada quadro dessa galeria
a justeza por que caminho,
e a aspereza do alheio
as mãos que não trazem calos
os impossíveis desapegos
um panorama do que não possuo
a perfídia do leito
cada hora perdida
cada fio de cabelo
os princípios e os fins
as cãibras, o suor
o cheiro de noite e os sonhos
a tortura, a morte, a dor,
o rancor e a solidão
o que de mim não se enamora
sussurra uma voz com cheiro velho
“ouço estrelas”, sabe-me o destino todo
fujo
ii.
persegue-me insistente o eco
que ecoa e ecoa e ecoa
nesse templo vazio e oco
buscam-me mortas
as coisas, mortas as horas,
as letras, mortas
o nunca, o nada, o pó
de uma rua velha, numa casa velha,
num mundo invisível e velho
ainda desperto ante o corredor
áspero e poeirento
sinto a frialdade do seu hálito
em cada quadro dessa galeria
ecoam o velho e o sono,
ecoam o verbo e o verso
vencido, desisto da fuga
devora-me uma fome urgente que não tem nome
sou engolido pelo torpor do esquecimento
Machado de Assis
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu pobre e epilético. Era
filho de Francisco José Machado de Assis e de Leopoldina Machado de Assis, neto
de escravos alforriados. Foi criado no morro do Livramento, no Rio de Janeiro.
Ajudava a família como podia, não tendo freqüentado regularmente a escola.
Sua instrução veio por conta própria, devido ao interesse
que tinha em todos os tipos de leitura. Graças a seu talento e a uma enorme
força de vontade, superou todas essas dificuldades e tornou-se em um dos
maiores escritores brasileiros de todos os tempos.
Entre os seis e os 14 anos, Machado perdeu sua única irmã, a
mãe e o pai. Aos 16 anos empregou-se como aprendiz numa tipografia e publicou
os primeiros versos no jornal "A Marmota". Em 1860, foi convidado por
Quintino Bocaiúva para colaborar no "Diário do Rio de Janeiro". Datam
dessa década quase todas as suas comédias teatrais e o livro de poemas
"Crisálidas".
Em 12 de novembro de 1869 casou-se com Carolina Augusta
Xavier de Novais. Esse casamento ocorreu contra a vontade da família da moça,
uma vez que Machado tinha mais problemas do que fama. Essa união durou cerca de
35 anos e casal não teve filhos. Carolina contribuiu para o amadurecimento
intelectual de Machado, revelando-lhe os clássicos portugueses e vários autores
de língua inglesa.
Na década de 1870, Machado publicou os poemas
"Falenas" e "Americanas"; além dos "Contos
Fluminenses" e "Histórias da meia-noite". O público e a crítica
consagraram seus méritos de escritor. Publicou os romances: "Ressurreição"
(1872); "A Mão e a Luva" (1874); "Helena" (1876);
"Iaiá Garcia" (1878). Essas obras ainda estão ligadas à literatura
romântica e formam a chamada primeira fase de Machado de Assis.
Em 1873, o escritor foi nomeado primeiro oficial da
secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras públicas. A
sua carreira burocrática teve uma ascensão muito rápida, uma vez que, em 1892,
já era diretor geral do Ministério da Viação. O emprego público garantiu a
estabilidade financeira, uma vez que viver de literatura naquela época era
quase impossível, mesmo para os bons escritores.
Na década de 1880, a obra de Machado de Assis sofreu uma
verdadeira revolução, em termos de estilo e de conteúdo, inaugurando o Realismo
na literatura brasileira. Os romances "Memórias póstumas de Brás Cubas"
(1881); "Quincas Borba" (1891); "Dom Casmurro" (1899) e os
contos "Papéis avulsos" (1882); "Histórias sem data"
(1884), "Várias histórias" (1896) e "Páginas recolhidas"
(1899), entre outros, revelam o autor em sua plenitude. O espírito crítico, a
grande ironia, o pessimismo e uma profunda reflexão sobre a sociedade
brasileira são as suas marcas mais características.
Em 1897, Machado fundou a Academia Brasileira de Letras, da
qual foi o primeiro presidente, pelo que a instituição também conhecida como
casa de Machado de Assis. Ocupou a Cadeira N.º 23, de cujo patrono, José de
Alencar, foi amigo e admirador.
Em 1904, a morte de sua mulher foi um duro golpe para o
escritor. Depois disso, raramente ele saía de casa e sua saúde foi piorando por
causa da epilepsia. Os problemas nervosos e uma gagueira contribuíram ainda
mais para o seu isolamento. São dessa época seus últimos romances "Esaú e
Jacó" (1904) e "Memorial de Aires" (1908), que fecham o ciclo
realista iniciado com "Brás Cubas"
Machado de Assis morreu em sua casa situada na rua Cosme
Velho. Foi decretado luto oficial no Rio de Janeiro e seu enterro, acompanhado
por uma multidão, atesta a fama alcançada pelo autor.
O fato de ter escrito em português, uma língua de poucos
leitores, tornou difícil o reconhecimento internacional do autor. A partir do
final do século 20, porém, suas obras têm sido traduzidas para o inglês, o
francês, o espanhol e o alemão, despertando interesse mundial. De fato,
trata-se de um dos grandes nomes do Realismo, que pode se colocar lado a lado
ao francês Flaubert ou ao russo Dostoievski, apenas para citar dois dos maiores
autores do mesmo período na literatura universal.
A Igreja do Diabo
Publicado originalmente em Gazeta de Notícias 1883
I De uma idéia mirífica
Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo
dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos
e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos,
sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por
assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada
fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era
o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
— Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra
Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à
farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho
eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja
uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se
dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem
Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.
Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços,
com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus
para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio,
ásperos de vingança, e disse consigo: — Vamos, é tempo. E rápido, batendo as
asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da
sombra para o infinito azul.
II Entre Deus e o Diabo
Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os
serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo
deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.
— Que me queres tu? perguntou este.
— Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo
rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.
— Explica-te.
— Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga:
recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais
afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...
— Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos
cheios de doçura.
— Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter
convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por
causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas
palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu
reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E
então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de
dissimulação... Boa idéia, não vos parece?
— Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.
— Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de
ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um
mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a
minha pedra fundamental.
— Vai.
— Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
— Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo,
cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?
O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha
alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória,
qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior
ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
— Só agora concluí uma observação, começada desde alguns
séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a
rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu
proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja;
atrás delas virão as de seda pura...
— Velho retórico! murmurou o Senhor.
— Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos
templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do
mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade
e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor — a
indiferença, ao menos — com que esse cavalheiro põe em letras públicas os
benefícios que liberalmente espalha — ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou
quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me
detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz
de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma
comenda... Vou a negócios mais altos...
Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono.
Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o
Diabo.
— Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um
espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está
dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força,
nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te
retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do
tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
— Já vos disse que não.
— Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime.
Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos,
na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e
mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí
a franja de algodão?
— Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
— Negas esta morte?
— Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade;
deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
— Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua
igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os
homens... Mas, vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus
impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as
harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar;
dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.
III A boa nova aos homens
Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se
pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a
espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas
entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da
terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo;
mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir
as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.
— Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites
sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e
único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do
coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos
lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um
lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era assim que falava, a princípio, para excitar o
entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de
si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A
doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à
substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e
deslavada.
Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas
por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça
foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que
a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma
esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de
Aquiles, não haveria a Ilíada: “Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de
Peleu”... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais,
e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra
das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal.
Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só
mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor
sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus
bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a
vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e
verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas
do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem
de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as
outras, e ao próprio talento.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo
incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas,
trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele
dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a
força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia
que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos,
outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração,
porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo
chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo,
era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender
a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma
razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não
podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são
mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?
Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem
os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo
a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um
privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim
o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou
pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria
dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo
tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.
E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está
claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e
cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a
exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos,
porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada
mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração.
Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis
de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do
interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que
o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento
aplicado e não aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar
por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo
grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção
de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão
indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de
que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles,
aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo
regime: “Leve a breca o próximo! Não há próximo!” A única hipótese em que ele
permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque
essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que
o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal
explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu
a um apólogo: — Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns;
mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que
acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.
IV Franjas e franjas
A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja
capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja,
deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram
chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a
doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma
língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de
triunfo.
Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos
seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam
todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas.
Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano,
justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite,
ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe
pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas
mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando
os outros.
A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais
diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até
incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente
uma geração inteira, e[1] com o produto das drogas socorria os filhos das
vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para
ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o
procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogman;
roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que
rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas
extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos
seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne
falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana,
telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na
cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao
jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de
um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e,
conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas
vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha
aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.
Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de
refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao
passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa
secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o
interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica.
Pôs os olhos nele, e disse:
— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm
agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres
tu? É a eterna contradição humana.
FIM de A igreja do Diabo
fonte: http://www2.uol.com.br/machadodeassis/machado.html
Augustod os Anjos
Augusto dos Anjos nasceu no engenho Pau d'Arco, no município
de Sapé, estado da Paraíba. Foi educado nas primeiras letras pelo pai e estudou
no Liceu Paraibano, onde viria a ser professor em 1908. Precoce poeta
brasileiro, compôs os primeiros versos aos 7 anos de idade.
Em 1903, ingressou no curso de Direito na Faculdade de
Direito do Recife, bacharelando-se em 1907. Em 1910 casa-se com Ester Fialho.
Seu contato com a leitura, influenciaria muito na construção de sua dialética
poética e visão de mundo.
Com a obra de Herbert Spencer, teria aprendido a
incapacidade de se conhecer a essência das coisas e compreendido a evolução da
natureza e da humanidade. De Ernst Haeckel, teria absorvido o conceito da
monera como princípio da vida, e de que a morte e a vida são um puro fato
químico. Arthur Schopenhauer o teria inspirado a perceber que o aniquilamento
da vontade própria seria a única saída para o ser humano. E da Bíblia Sagrada
ao qual, também, não contestava sua essência espiritualística, usando-a para
contrapor, de forma poeticamente agressiva, os pensamentos remanescentes, em
principal os ideais iluministas/materialistas que, endeusando-se, se emergiam
na sua época.
Essa filosofia, fora do contexto europeu em que nascera,
para Augusto dos Anjos seria a demonstração da realidade que via ao seu redor,
com a crise de um modo de produção pré-materialista, proprietários falindo e
ex-escravos na miséria. O mundo seria representado por ele, então, como repleto
dessa tragédia, cada ser vivenciando-a no nascimento e na morte.
Dedicou-se ao magistério, transferindo-se para o Rio de
Janeiro, onde foi professor em vários estabelecimentos de ensino. Faleceu em 12
de novembro de 1914, às 4 horas da madrugada, aos 30 anos, em Leopoldina, Minas
Gerais, onde era diretor de um grupo escolar. A causa de sua morte foi a
pneumonia.
Durante sua vida, publicou vários poemas em periódicos, o
primeiro, Saudade, em 1900. Em 1912, publicou seu livro único de poemas, Eu.
Após sua morte, seu amigo Órris Soares organizaria uma edição chamada Eu e
Outras Poesias, incluindo poemas até então não publicados pelo autor.
fonte:
http://www.biblio.com.br/conteudo/AugustodosAnjos/augustodosanjosobras.htm
VERSOS ÍNTIMOS
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
VOZES DE UM TÚMULO
Morri! E a Terra - a mãe comum - o brilho
Destes meus olhos apagou!... Assim
Tântalo, aos reais convivas, num festim,
Serviu as carnes do seu próprio filho!
Por que para este cemitério vim?!
Por quê?! Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!
No ardor do sonho que o fronema exalta
Construí de orgulho ênea pirâmide alta...
Hoje, porém, que se desmoronou
A pirâmide real do meu orgulho,
Hoje que arenas sou matéria e entulho
Tenho consciência de que nada sou!
ASA DE CORVO
Asa de corvos carniceiros, asa
De mau agouro que, nos doze meses,
Cobre às vezes o espaço e cobre ás vezes
O telhado de nossa própria casa...
Perseguido por todos os reveses,
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto á brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!
E com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
Que as famílias de luto martiriza...
E ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte - a costureira funerária
- Cose para o homem a última camisa!
O DEUS-VERME
Fator universal do transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme - é o seu nome obscuro de batismo.
Jamais emprega o acérrimo exorcismo
Em sua diária ocupação funérea,
E vive em contubérnio com a bactéria,
Livre das roupas do antropomorfismo.
Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrôpicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão...
Ah! Para ele é que a carne podre fica,
E no inventário da matéria rica
Cabe aos seus filhos a maior porção!
O MORCEGO
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, á noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
PROPÓSITO
Viver pouco mas
viver muito
Ser todo o pensamento
Toda a esperança
Toda a alegria
ou angústia — mas ser
Nunca morrer
enquanto viver
Eunice Arruda
Entre Noel e os índios
Em Vila Rosali Noel Nutels repousa
do desamor alheio aos índios
e de seu próprio amor maior aos índios.
Como se os bastos bigodes perguntassem:
Valeu a pena?
Valeu a pena gritar em várias línguas
e conferências e entrevistas e países
que a civilização às vezes é assassina?
Valeu, valeu a pena
criar unidades sanitárias aéreas
para salvar os remanescentes
das vítimas de posseiros, madeireiros,
traficantes,
burocratas et reliqua,
que tiram a felicidade aos simples
e em troca lhes atiram de presente
o samburá de espelhos, canivetes,
tuberculose e sífilis?
Noel baixa de helicóptero
e vê a fome à beira d´água trêmula de peixes.
Homens esquecidos do arco e flecha
deixam-se consumir em nome
da integração que desintegra
a raiz do ser e do viver.
"Vocês têm obrigação de usar calça
camisa paletó sapato e lenço,
enquanto no Leblon nos despimos
de toda convenção, e viva a natureza..."
Noel, tu o disseste:
A civilização que sacrifica
povos e culturas antiquissimas
é uma farsa amoral.
O Parque maravilha do Xingu
rasgado e oferecido
ao galope das máquinas,
não o quiseste assim e protestaste
como se fosse coisa tua, e era,
pois onde um índio cisma
e acende fogo e dança
a dança milenar extraConservatório
e desenha seu movimento de existir
longe da Bolsa, da favela e do napalm
aí estavas tu, teu riso companheiro
teus medicamentos,
tua branca alegria de viver
a vida universal.
Valeu? Valeu a pena
teu cerne ucraniano
fundir-se em meiga argila brasileira
para melhor sentires
o primitivo apelo da terra
moldura natural de homens xavantes
e kreen-akarores
lar aberto de bororos
carajás e kaingangs
hoje tão infelizes
pela compulsão da felicidade programada.
Valeu, Noel, a pena
seguir traça de Rondon
e de Nimuendaju,
mãos dadas com Orlando e Cláudio Villas-Boas
sob o olhar de Darcy Ribeiro,
e voar e baixar e assistir e prover
e alertar e verberar
para que fique ao menos no espaço
este signo de amor compreensivo e ardente
que foi a tua vida sertaneja,
a tua vida iluminada,
a tua generosa decepção.
segundo Borges
Segundo Jorge Luis Borges
por muitos anos
o autodidata Constâncio
dependeu do opaco livro de memórias
que pouco o ensinara
orçou o que aprendera
subtraiu o estado opinativo
viu que havia prosperado com a riqueza que forjara
agregou a si valores
razoou para o razoável
olhou adiante
agiu conforme as exigências
e por vários anos Constâncio
foi um grande homem
vivendo da adulação de sua propriedade intelectual
é o que consta no livro de memórias de Constâncio
segundo o nada confiável
senhor Borges.
GRANADA NO PEITO
Estaria eu melhor
se estivesses aqui comigo
neste Café, onde Lorca
se sentava
ao sol morno de dezembro
entre os pássaros
e pombos da praça
com o peito em chamas
os olhos inflamados
o incerto destino dos sós
Angélica Torres
O POEMA QUER SER ÚTIL
O poema quer ser útil
ao mobiliário
da noite solitária
nesta casa.
Pergunto à Musa, respeitosamente:
— Compaixão?
Ou inveja desta
acre-doce amarga
solidão?
Angélica Torres
O escritor
José Guilherme Vereza
Afrânio resolveu escrever um livro. Achava que estava na
hora. Só não decidiu fazer isso antes, porque era perseguido pela mais absoluta
das certezas de que nenhum editor iria dar importância ao seu texto, nenhum
livreiro iria colocar seu livro na vitrine, a noite de autógrafos seria um
fiasco, nenhum leitor iria comprar seus escritos. E todos os críticos iriam
condená-lo a um vexame público e notório.
Mas dessa vez estava firme.
Ouviu dizer que para um escritor bastava um cotoco de lápis
e um papel de pão. O assunto viria no decorrer do pensar e as histórias, as
personagens, as situações brotariam por si só. Bastava apenas um leve empurrãozinho
do tal cotoco.
Foi assim mesmo que se sentou à mesa do jantar.
Muito bem, vamos lá.
Era uma vez.
Ok. Era uma vez o quê?
Era uma vez... era uma vez o quê, onde, quando, como e por
quê?
Afrânio franziu as sobrancelhas diante daquele monstruoso
papel em branco.
Tentou mais uma vez e não saiu nada.
Não era uma vez.
Procurou outro caminho.
Mordidas de lábios, ar de quem tinha caído nas armadilhas da
inspiração.
Gabriel Garcia Márquez também deve ter lá seus dias
absolutamente inócuos.
Inócuos. Bela palavra.
Que tal começar assim?
Inócuos momentos em que...
Toca o telefone.
- Alô.
- Afrânio, sou eu.
- Oi, que voz é essa?
- Uma notícia chata: tio Miguel morreu.
- O quê?
- O tio Miguel mesmo. Enfarte fulminante, agora de manhã,
fazendo a barba. Quando tia Magali chegou só deu tempo de tirar o sabão do
rosto.
- Peraí. Deixa eu me refazer.
- Tudo bem, depois você me liga.
- Não, não, a gente tem que enfrentar. Mas eu não vou a
enterros.
- Nem eu. Dá riso nervoso ver tanta gente chorando...
- E a Candinha, já sabe?
- Iam avisar. Não sei se avisaram. Ela está no Tibet.
- Sabe de uma coisa, não vou ao enterro não. Tio Miguel era
um chato, tia Magali também e a Candinha sempre me irritou com essa mania de
meditação.
- Acho que não vou também não.
- Passo um telegrama e tudo bem.
- Vou fazer a mesma coisa. Tchau.
Mal desligou o telefone, Afrânio teclou o número do
telegrama fonado. Atendeu uma voz de gralha.
- Telegrama fonado, bom dia.
- Bom dia, eu queria passar um telegrama.
- Seu nome e número do seu telefone.
- Afrânio Rosa Batista, 2254-0969.
- Nome e endereço do destinatário.
- Magali Batista Santana. Rua Carlos Pedrosa, 223, se não me
engano.
- Se o senhor se engana, o telegrama não chega.
- Claro, um momento... estou conferindo no meu caderninho...
cá está. O número correto é 476. Passei raspando.
- Texto do telegrama.
- Texto? Ah, sim, a mensagem...
Meu Deus, o branco de novo.
- Vamos lá: QUERIDA TIA MAGALI RECEBA DE SEU DILETO SOBRINHO
AFRÂNIO AS MAIS SINCERAS CONDOLÊNCIAS PELA SÚBITA PERDA DE AMADO CÔNJUGE E
ESTIMADO TIO. UM AFETUOSO ABRAÇO DE DOR E CONSTERNAÇÃO.
- O senhor não acha que está meio rococó?
Afrânio gelou. Ficou sem graça.
- A senhora acha, é...?
- Tá meio rebuscado. Não dá pra ser mais direto?
- Acho que sim, vamos lá: QUERIDA TIA MAGALI, RECEBA MINHAS
CONDOLÊNCIAS PERDA ESTIMADO TIO.
Afrânio ouviu uma risadinha do outro lado da linha.
Não gostou.
- Escuta aqui: a senhora, por acaso, está rindo de quê?
- Nada, nada não senhor...
- Mais risinhos.
- A senhora está rindo do meu telegrama?
- Desculpe seu Afrânio, condolências é muito antigo.
- A senhora acha, é...?
- Desculpe seu Afrânio, o senhor escreve como quiser...
- Não, não, sua opinião é importante. A senhora deve estar
acostumada com muitos telegramas de falecimento. É melhor dizer pêsames mesmo.
- O senhor é quem manda. Então ficamos assim: QUERIDA TIA
MAGALI RECEBA MEUS PÊSAMOS PERDA ESTIMADO TIO.
- Sei não, sei não... tá meio falso.
- Já que o senhor tocou no assunto, sabe que eu acho a mesma
coisa?
- Tá falso, é?
- Pouquinho.
- Então tira o estimado. Bota querido.
- Agora tá redondinho. QUERIDA TIA MAGALI RECEBA MEUS
PÊSAMES PERDA QUERIDO TIO.
- Seu Afrânio, querida e querido na mesma frase?
- É. Na mesma frase, por quê?
Afrânio começou a perder estribeiras.
- Nada não, seu Afrânio, eu só acho que não fica bonito.
- Tem certeza?
- Bem, seu Afrânio, é a minha opinião sincera, mas a tia é
sua, o defunto é seu, o telegrama é seu.
- Tem razão. Tira querido tio e bota tio Miguel.
- Muito bem. QUERIDA TIA MAGALI. RECEBA MEUS PÊSAMES PERDA
TIO MIGUEL. Ok?
- OK... ok... OK nada! Você acabou fazendo a mensagem para
mim.
- Desculpe, Seu Afrânio... mas seu texto não estava bom.
- Quer dizer que temos uma crítica literária fazendo bico de
telefonista? Ora, vê se se enxerga, minha filha...
- Minha filha não senhor! Meu nome é Kátia, telefonista com
muito orgulho.
- Então, Kátia, enfia esse telegrama...
- Além de escrever mal, é grosso. Só para encerrar, o
telegrama não está autorizado, certo?
- Certo, cancela tudo. O que está autorizado, Kátia, já
disse e repito: é esse telegrama enfiado no seu... você sabe aonde, minha
filha.
Afrânio desligou o telefone. Decidiu encarar o velório.
****
Pegou o primeiro táxi.
- Bom dia, o senhor poderia me levar às capelas do Cemitério
São João Batista, por obséquio?
- O motorista deu uma risadinha.
- O senhor está rindo do quê?
- Por obséquio, é? Não é melhor por Botafogo?
E Afrânio mais não disse. Só pensou: outra Kátia na minha
vida.
****
A capela estava vazia. Ninguém. Nem a viúva. Entre flores
mal cheirosas, sob um manto de filó, Tio Miguel era apenas um nariz cor de cera
com algodão em cada narina. Afrânio ficou à distância, observando como os
homens depois que viram defuntos perdem a dignidade. São apenas narizes
apontando para o teto, alheios a seus arredores. Logo Tio Miguel. Tão
extrovertido e mandão. Metido a dar ordens em casa, na cozinha, nas filas de
cinema, nas reuniões familiares, nas casernas, onde passou mais da metade da
sua vida. Agora estava ali sem ninguém para mandar ou chatear. Só esperando a
hora de uma outra pessoa, alheia a sua vontade, mandar fechar o caixão e sair
carregado a uma gaveta qualquer.
De repente, um ruído assustador. Irrompe à capela Tia
Magali. Toda de preto, amparada por uma amiga, proferindo urros de desespero,
gritando bem alto como se o marido gelado pudesse se comover.
- Miguinho, Miguinho! Por que você fez isso comigo? Por que
foi jogar peteca na praia ontem à noite? Eu sabia que ia te fazer mal de
manhã...
Ao descobrir Afrânio encostado na parede mais distante do
caixão, Tia Magali se joga nos seus braços. Aperta-lhe tórax, peito e pescoço.
Como uma sucuri.
- Alfredo, que bom que você veio... vem cá ver o rosto
sereno do Miguinho.
- Afrânio, tia Magali, Afrânio...
- Afraninho, claro, Afraninho de Marieta.
- Antonieta, Tia Magali.
- Vem cá, meu sobrinho querido, vamos nos despedir juntos do
seu tio Miguel.
- Tia Magali, deixa o tio Miguel dormindo seu sono eterno,
tranqüilo. Prefiro ficar aqui mesmo.
Tia Magali em prantos.
- Afraninho, você sempre carinhoso...
- Tia Magali, em meu nome e em nome da minha irmã...
- Luzia...
- Não, Tia Magali. Lavínia. La-ví-nia.
- Lavininha, claro. Deve estar tão crescida.
- 42 anos, Tia Magali.
Tia Magali vira-se para o centro das desatenções da capela e
recomeça a gritaria.
- Miguinho, Miguinho, meu companheiro, meu companheiro que
se foi. Meu Deus, o que será de mim?
Afrânio espera passar o transe. Tão logo a tia se recupera,
volta à carga e, enfim, consegue falar.
- Querida Tia Magali, receba do seu dileto sobrinho Afrânio
e da sua não menos dileta sobrinha Lavínia as mais sinceras condolências pela
súbita perda do amado cônjuge e estimado tio. Dá me cá um afetuoso abraço de
dor e consternação.
Tia Magali olha nos olhos de Afrânio. Tenta se controlar,
esquece a viuvez. E cai na gargalhada.
- Tá rindo de quê, Tia Magali?
- Desculpe, mas esse seu discurso foi muito rococó.
E tome de ataque de riso. Tia Magali e a amiga que a
amparava, olham às gargalhadas para a cara do Afrânio. Circunspecto, contido,
sobrancelhas franzidas. Outras pessoas começam a chegar. Os amigos da peteca,
os coronéis reformados, as balzacas bronzeadas do Posto Seis. A tia retoma os
prantos. Afrânio sai de fininho.
****
Na saída do cemitério. É abordado por um florista.
- Parente ou amigo?
- Tio.
- Então, o melhor é uma coroa de cravos.
- Pensando bem, é distinto.
- Sim, claro, uma bem frondosa, para ficar num cavalete ao
lado do morto. Todo mundo olha para a coroa antes de olhar o falecido. Aliás,
muita gente evita olhar o falecido. É um macete. O parente finge que está
olhando o defunto, mas é atraído pela beleza da coroa.
- Bem pensado.
- Então, só falta os dizeres.
- Dizeres?
- A mensagem.
- Eu sei que dizeres e mensagem são a mesma coisa, não
precisa explicar. Esse é que é o problema.
Afrânio suou frio de novo.
- Uma frase curta e direta, meu amigo.
- Um momento. Estou pensando. Não faz pressão, por favor.
Enxugou a testa e mandou:
- Anote aí: VAI COM DEUS, TIO MIGUEL.
- O florista prendeu o riso. Não conseguiu.
- Está rindo do quê?
- Desculpe, amigo, parece que o senhor...
Mais risos incontidos.
- ... parece que o senhor estava querendo se livrar do tio.
Afrânio se enfureceu.
- Além de florista chato é palpiteiro...
- Desculpe, mas a mensagem pode ser mal interpretada. Parece
deboche.
- Então, vai com Deus o senhor mesmo. E enfia essa coroa
...ó!
E partiu raivoso em direção a um táxi. Em momentos de
cólera, Afrânio também só sabia mandar alguém enfiar alguma coisa no... lá
mesmo. Não variava nunca.
****
No táxi de volta. Afrânio contou até dez. Entrou num clima
de paz interior.
- Boa tarde, por favor leve-me à Francisco Otaviano. Sugiro
irmos pela praia. É mais gratificante ver o azul do céu tocando o azul do mar,
que por sua vez, beija delicadamente as alvas areias com suas espumas
peroladas.
- Não entendi nada. É pra pegá a Atrântica, né moço?
- Isso mesmo. Toca esse táxi e vê se não abre a boca. Tive
uma manhã repleta de arrufos.
- O quê?
O taxista começou a rir.
- Está rindo de que?
- Nada não senhor. É que o senhor fala bonito...
- Você acha mesmo...?
- Só que não entendo nada.
Afrânio olhou fixo para o horizonte. Não mais falou. Não
mais ouviu. Ao parar na Francisco Otaviano, pagou o taxista e disse:
- Muito agradecido.
O taxista recolheu o dinheiro e comentou:
- Taí, bonito dizer “muito agradecido”. Outro dia uma velha
me disse a mesma coisa.
Dessa vez, Afrânio desistiu de xingar o motorista.
****
Ao chegar em casa, desistiu de muito mais. Olhou o cotoco de
lápis ainda sobre o papel em branco. Lembrou da Kátia, da Tia Magali, do
florista, do taxista da ida, do taxista da volta. Rasgou o papel em mil
pedacinhos e jogou pela janela. Só não mandou ele mesmo enfiar o cotoco em si
próprio. Não era coisa de sua preferência.
Fonte : Revista Samizdat
o coisa ruim
me querem manso
cordeiro
imaculado
sangrado
no festim dos canibais
me querem escravo
ordeiro
serviçal
salário apertado no bolso
cego mudo e boçal
me querem rato
acuado
rabo entre as pernas
medroso
um verme, pegajoso
mas eu sou osso
duro de roer
caroço
faca no pescoço
maremoto, tufão, furacão
mas eu sou cão
lato
mordo
arreganho os dentes
incito a revolta dos deuses
toco fogo na cidade
qual nero
devasto o lero lero
entro em campo
desempato
eu sou o que sangra
um poeta nato
Guinen Plumbeano
(Volmar Camargo Junior)
Seguindo a estrada na direção sul, depois de uma sequência
de sobes-e-desces ainda dentro do subúrbio, atravessamos os portões do primeiro
nível de suas muralhas. Diferente do centro da cidade, o bairro que circundava
a estrada parecia ainda não ter amanhecido, e foi um custo perceber alguma
coisa além dos muros altíssimos. Era como se a avenida percorresse o fundo de
um canal, e o bairro ficasse para além de suas margens. Não fosse pelas
pequenas portas de metal, ao longo de um passeio estreito, eu diria que por ali
só passavam carros. Assim, antes de chegar à zona rural, tudo o que vi da parte
mais pobre de Avennin foi uma rua espremida entre dois algos muros de
alvenaria. Seria lógico que eu tivesse perguntado algo a Platin, o motorista,
mas preferi ficar quieto. Concentrei-me na história de meu personagem
principal. E, sim, a ideia que eu fazia dele era a de uma entidade mitológica,
e isso certamente não era culpa minha.
Para o bem ou para o
mal, o Lobo Vermelho era tido como uma figura folclórica. Para seus detratores
e a grande maioria dos ativistas contrários à Confederação das Províncias, ele
era um monstro, um demônio, ou na melhor das hipóteses, uma marionete da
Imperatriz. Para seus admiradores, era um herói lendário, capaz de proezas
bélicas acima da capacidade humana, dono de uma coleção inigualável de façanhas
e o mais importante dos humanos depois dos primeiros filhos de Adanno. Para
aqueles que permanecem céticos, e que têm algum interesse nos fatos como eles
realmente aconteceram – como eu – Petro Velasturvo fora um militar competente,
um homem dotado de grande inteligência e poucos escrúpulos. E eu sei que posso
escrever isso assim, sem nenhum medo de represálias, porque estas não são as
minhas palavras, mas as dele.
Eu precisava de um
foco para minha entrevista. A história dele era realmente muito intensa, e
havia demasiados fatos para tão pouco tempo. Fiquei grato por ter um motorista
guiando – ainda que eu soubesse conduzir um veículo daqueles, jamais me
arriscaria a fazê-lo dentro de uma neblina tão densa. Além do mais, não me
distraí com a rica paisagem rural de Avvena, pelo fato de parecer que o carro
estava todo envolto em lençóis brancos e molhados. Em um momento, tive a nítida
impressão de que Platin estava apenas mantendo o carro em movimento, deixando
que a máquina sozinha seguisse pelo caminho que conhecia. Saquei o bloco e a
caneta do bolso do casaco. Para retomar o fio de raciocínio, que perdera assim
que saí do quarto do hotel, tentei lembrar da primeira façanha que tinha ouvido
a respeito do General.
Meu pai era
aficcionado por objetos históricos, um pesquisador entusiasta, profundamente
avesso à academia e, hoje posso admitir, à Igreja. Em uma sala construída em
nossa casa, especialmente para isso, meu pai guardava sua coleção. Não era como
o museu da Universidade do Farol Púrpura, mas sem dúvida, era um dos maiores
acervos particulares da Capital. Eu, bem como os poucos amigos que tive na
infância, tínhamos uma simpatia enorme pelos artefatos de guerra, os uniformes
dos soldados do império, e, principalmente, as armas. Havia, dentre todas
aquelas peças às quais não podíamos fazer nada além de olhar, uma espada; um
sabre para ser mais exato. No pedestal onde ela ficava, havia a reprodução de
um quadro da época, que retratava um oficial do Exército a frente de uma
quantidade incontável de soldados em marcha, e esse oficial empunhava,
apontando para o alto, aquele mesmíssimo sabre. Meu pai contava que aquela não
era uma peça original, mas era uma cópia fiel da Guardiã do Mar, e que seu
dono, o homem que a empunhava, era o Lobo Vermelho, o maior herói da guerra
contra os invasores delfins. Então, meu pai contava todo tipo de história sobre
ele, e que eu e meus amigos costumávamos reproduzir em nossas brincadeiras,
amarrando toalhas e lençóis às costas como capas, e cada um com uma “Guardiã do
Mar” feita das pernas de uma cadeira velha. Fazíamos um sorteio, todas as
tardes, para decidir quem seria o Lobo Vermelho, depois, quem seria Unmonu, seu
companheiro de aventuras, e, por fim, quem seriam os adversários: príncipes
delfins, lordes adormecidos, bruxos linces, guerreiros bárbaros. E eu recordo
de sempre gostar mais de interpretar os vilões, enquanto meus amigos se
estapeavam para disputar quem seriam os heróis. Ao final da brincadeira era
sempre eu, ou melhor, o inimigo do Mar de Luna, quem tinha a pior sorte, mas
não antes de ter deixado muitos soldados caídos, ter derrubado o “Bovineu
Invencível” e decepado uma das pernas do Lobo Vermelho – e eu nunca tinha certeza
se era a direita ou a esquerda.
Havia dezenas de
versões explicando a razão de o General Velasturvo usar uma perna mecânica, e a
maior parte delas era, no mínimo, fantasiosa. A minha preferida era esta:
Numa tarde de
inverno, Petro e seus colegas praticavam luta no pátio da escola, quando foram
surpreendidos por um lobo selvagem. Eles ainda não o haviam percebido porque
era um lobo branco, e se esgueirou na neve até chegar perto o suficiente para
atacar de surpresa. Os outros meninos fugiram apavorados, mas Petro não teve a
mesma sorte: o lobo saltou em sua direção e, para impedir que fugisse,
abocanhou sua perna e o derrubou. O menino teve o sangue frio de fingir-se de
morto. Quando o predador soltou sua perna para conferir se a presa estava realmente
abatida, Petro reagiu. Com presteza, enfiou as duas mãos no focinho do animal,
segurando suas mandíbulas fechadas e avançou com os dentes contra o pescoço
peludo do lobo. A fúria de Petro era tão grande que o couro do predador
rasgou-se como um trapo velho, e músculos e veias iam-se rompendo à medida que
o menino mordia. Só depois disso é que o professor de luta veio em seu auxílio,
mas aí, o lobo, que era branco, já estava morto, todo tingido de vermelho. A
perna do menino Petro teve de ser amputada. Todos, a partir daquele dia,
passaram a temê-lo e respeitá-lo. Como um pedido de desculpas, a esposa do
professor de luta fez para o menino um casaco feito da pele do lobo, que nunca
mais pode ser alvejado, manchado de sangue para sempre.
Eu ri sozinho no banco de trás do carro. Como aquelas
historietas eram marcantes para as crianças! Era bem provável que, se eu
perguntasse para qualquer um dos meus amigos de infância, eles teriam lembrado
desta, “O menino e o lobo branco”, talvez com as mesmas palavras. Percebendo
que eu ria – devo até ter falado sozinho, em voz alta – Platin olhou-me pelo
espelho, devolvendo-me o sorriso.
— Já conhece o General, Senhor Plumbeano? Digo, já o viu
alguma vez?
— Pode me chamar apenas Guinen, Platin. Só vi o General em
fotografias. Por que a pergunta?
— Porque a última vez que ele foi visto em público, ele
estava bem diferente — respondeu, enfático.
— Diferente como? — eu quis saber.
— Não precisa se preocupar. Você já vai ver. Chegamos. Seja
bem-vindo à Mansão do General.
Fonte : Revista Samizdat
NOTÍCIA DE OUTONO, 1987, JERUSALÉM
O poeta está morto
no entanto eu me levanto às seis e trinta da manhã
porque é hora.
O sol do fim de verão não perde tempo,
as folhas ainda brilham carregadas de frutos da noite
rapidamente
comidos pelo vento.
O poeta está morto e eu leio o jornal onde anunciam
sua morte.
Cirrose?
Coração?
Tristeza?
Alguns morrem de alegria.
Foi o câncer? Um golpe de ar? Cansaço?
Diante do jornal tomo a xícara de café, pronto para o dia.
O dia também é uma fatalidade.
Imaginem, o poeta está morto apesar do barulho das crianças.
Elas brigam, brincam, gritam, pouco importa,
o entusiasmo é o mesmo. Assim como é mesma a rotina desta
manhã —
ou não seria rotina —
embora nela se estenda a sombra do poeta morto.
Morto, imóvel, impassível feito qualquer morto,
apesar do silêncio dos velhos,
apesar do riso sem-vergonha dos velhos.
Pregões pintando o ar.
Frutas, verduras, brinquedos.
Sempre se arranja algo pra vender que a vida urge.
O leite dos filhos nunca espera. A operação da
mulher, o carro,
a passagem de ônibus, o bilhete de loteria,
a camisa nova. A camisa nova.
Tudo pela hora da morte.
Ah, a morte pública do poeta.
Um automóvel, outro, mais outro, parece um rio.
Olhares bailam em saltos fluidos.
Ninguém anuncia o apocalipse.
A TERRA É REDONDA
Se corro corro
o risco de
chegar
Ao mesmo lugar
Eunice Arruda (1939/2017).
(Do livro Mudança de Lua (1986)
AS POETISAS
Elas se amparam
Em papéis
palavras
no brilho
Faca cortando as águas
Os homens
tentam entendê-las
com abraços mágicos
colares
Elas dão poemas
filhos
sombra
e outras possibilidades de abrir
clareiras na floresta
Os homens riscam suas peles
com carinhos beijos
profundos
Mas
elas se amparam
estão
sempre atentas
à bifurcação dos caminhos
à mudança de lua
Os homens as confundem, às
vezes
com mulher
Eunice Arruda
A mais bela das artes
Eder Ferreira
Todas as artes são belas, disso não se pode ter dúvidas. A
dança, a pintura, a escultura, o cinema, todas possuem algo que as fazem
transcender as fronteiras da realidade e aproximar o ser humano da perfeição.
Mas, há uma que faz mais do que isso. Uma arte que, além de servir como base
para outras, cumpre um papel não só de entreter, como também de informar, de
instruir, e de mudar a mente de seus espectadores, ou melhor, leitores. Essa
arte é a literatura. Desde que o Homem inventou a escrita, criou-se uma
necessidade de se registrar o que se via e sentia. E mais. A cultura, que era
apenas oral, passada de boca em boca, podia finalmente ser registrada, para
nunca mais ser esquecida. Mas, logo o Homem percebeu que poderia também
inventar histórias, criando, assim, os mitos, que até hoje emocionam e
impressionam a todos, com poderes mágicos, seres extraordinários e fatos
insólitos.
Com a evolução do conhecimento humano sobre o mundo, a arte
da escrita se fixou como a mais sublime forma de emancipar o que se descobria.
Em muitas obras literárias o caráter de entretenimento praticamente ficou de
lado, dando lugar à transmissão de informações, sejam científicas, filosóficas,
teológicas ou empíricas. Porém, a beleza e suavidade da literatura sempre a
acompanharam. A poesia, por exemplo, pode ser considerada como a representação
máxima do termo “Belas Artes”, quando se fala em literatura. Grandes nomes da
poesia mundial, como John Milton, Charles Baudelaire, Camões, Fernando Pessoa,
e os brasileiros Olavo Bilac, Cruz e Souza, Carlos Drumond de Andrade, entre
muitos outros, elevaram a poesia em sua plenitude. Outros gêneros literários,
também com o caráter de entretenimento, como o romance, o conto, a crônica, o
ensaio, entre tantos outros, fizeram da história da literatura uma das mais
respeitadas dentre todas as artes.
Vista dessa forma, pode parecer que a literatura desfrute de
um rico legado, e que, até hoje, é valorizada. Mas, infelizmente, a arte que
mais contribui para a evolução de seus contempladores, anda deixada de lado,
principalmente em vista de outras artes. A música deixou de ser clássica para
ser popular, fazendo com que sua qualidade decaia cada vez mais. O teatro e a
dança tornaram-se representações artísticas possíveis apenas, na maioria das
vezes, nas grandes cidades. A pintura e a escultura se supervalorizaram e o
cinema transformou-se em uma fábrica de dinheiro. E a literatura, talvez a arte
de mais fácil acesso, ficou obsoleta, restrita apenas para alguns entusiastas
que veem na leitura mais que uma obrigação. A beleza é relativa, cada um tem o
direito de achar o que quiser belo. Mas, enquanto o mundo achar que há mais
beleza em um CD ou DVD do que em um livro, o termo “Belas Artes” deve ficar
engavetado, até que alguém o faça ressurgir.
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