terça-feira, 12 de novembro de 2019

Viver de Poesia




© Nathan de Castro

O que me dá gosto é saber que o tempo não volta.
Amanhã e depois de amanhã nunca mais serei eu.
Poetas são sábios de segundos. Não sobrevivem
para ver o poema crescer.
O meu consolo é que o amanhã acordará de nuvens
carregadas de antigas paixões.
Talvez eu morra de saudade mas, sinceramente, eu
prefiro morrer de poesia.
Sim, é preciso morrer de poesia e viver um poema
a cada dia.
Quem vive um poema a cada dia sabe o encanto de
um nascer do sol, e sabe que o amanhã pode trazer
todas as cores da estação, ou não.
Quem vive um poema a cada dia sabe que na poesia
existe um segundo escondido no espaço do tempo.
A gente chama isso de esperança.
De Adília Lopes, o poema "A salada com molho cor-de-rosa":

1
Conheci a Magda na praia
na praia é uma metáfora obscena
que como as outras metáforas obscenas
pode ser usada quer como eufemismo
quer como insulto
conheço por experiência própria
os dois usos da expressão
na praia

2
Eu gosto de me fazer passar
por uma rapariga ordinária
a Magda era mesmo ordinária
a princípio era isto o que mais
me atraía nela depois foi isto
o que sobretudo me desgostou dela

3
As minhas relações com a Magda
de deliciosas passaram a promíscuas
aconteceu-me
o que me tinha acontecido
quando comi salada com molho cor-de-rosa
ao princípio
a salada era deliciosa por causa do molho
depois comecei a perceber
que era mil vezes melhor
estar a comer os vegetais
sem molho do que com molho
o molho impedia-me de comer os vegetais
com gosto
desgostava-me da vida

4
Vivia com a Magda
num quarto de duas camas
quando eu chegava ao quarto
a Magda estava deitada na minha cama
numa posição de Maja desnuda
mas vestida
o que ainda era pior
outras vezes encontrava-a
sentada na minha cadeira
a folhear os meus livros
e a chupar os dedos

5
A Magda era uma intrusa
depois de ter sido um ser envoûtant
quer como intrusa
quer como ser envoûtant
ela era para mim
uma fonte de perturbação

6
Eu não era casta
não porque me entregasse
com a Magda
(que era aliás uma praticante profissional do safismo)
a um prazer que alguns dizem vicioso
(só lhe toquei uma vez
sem querer
e pedi-lhe automaticamente desculpa)
mas porque com a Magda
não tinha prazer nenhum

7
(Acho que o prazer é casto
o que não é casto
é o simulacro do prazer
ou a renúncia ao prazer
tanto o simulacro
como a renúncia)

8
Um dia voltei ao quarto
e a Magda tinha desaparecido
sem deixar marcas
custou-me não encontrar
o chiqueiro próprio da Magda
os meus cigarros fumados
o meu cinzeiro cheio de beatas
sujas de bâton
(que me faziam lembrar
dentes cuspidos após uma briga)
o "Las Moradas"
antes do "Calculus I"
na minha estante
quando eu me habituei
a pôr esses livros por ordem inversa

9
O que me custou
foi tudo ter acabado
como tinha começado
como se nada se tivesse passado
durante
ora o que se passou durante
ainda hoje me incomoda
e portanto deve ter acontecido


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