Publicado originalmente em Gazeta de Notícias 1883
I De uma idéia mirífica
Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo
dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos
e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos,
sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por
assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada
fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era
o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
— Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra
Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à
farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho
eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja
uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se
dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem
Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.
Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços,
com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus
para comunicar-lhe a idéia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio,
ásperos de vingança, e disse consigo: — Vamos, é tempo. E rápido, batendo as
asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da
sombra para o infinito azul.
II Entre Deus e o Diabo
Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os
serafins que engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-no logo, e o Diabo
deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.
— Que me queres tu? perguntou este.
— Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo
rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.
— Explica-te.
— Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga:
recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais
afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...
— Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos
cheios de doçura.
— Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter
convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por
causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas
palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu
reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E
então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de
dissimulação... Boa idéia, não vos parece?
— Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.
— Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de
ouvir o aplauso dos mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um
mestre vencido, e uma tal exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a
minha pedra fundamental.
— Vai.
— Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
— Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo,
cansado há tanto da tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja?
O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha
alguma idéia cruel no espírito, algum reparo picante no alforje da memória,
qualquer coisa que, nesse breve instante da eternidade, o fazia crer superior
ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
— Só agora concluí uma observação, começada desde alguns
séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a
rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu
proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja;
atrás delas virão as de seda pura...
— Velho retórico! murmurou o Senhor.
— Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos
templos do mundo, trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do
mesmo pó, os lenços cheiram aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade
e devoção entre o livro santo e o bigode do pecado. Vede o ardor — a
indiferença, ao menos — com que esse cavalheiro põe em letras públicas os
benefícios que liberalmente espalha — ou sejam roupas ou botas, ou moedas, ou
quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que me
detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz
de irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma
comenda... Vou a negócios mais altos...
Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono.
Miguel e Gabriel fitaram no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o
Diabo.
— Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um
espírito da tua espécie, replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está
dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força,
nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te
retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do
tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
— Já vos disse que não.
— Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime.
Colhido em um naufrágio, ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos,
na flor da vida, que se debatiam já com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e
mergulhou na eternidade. Nenhum público: a água e o céu por cima. Onde achas aí
a franja de algodão?
— Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
— Negas esta morte?
— Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade;
deixar a vida aos outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
— Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai; vai, funda a tua
igreja; chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os
homens... Mas, vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus
impusera-lhe silêncio; os serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as
harmonias de seus cânticos. O Diabo sentiu, de repente, que se achava no ar;
dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.
III A boa nova aos homens
Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se
pressa em enfiar a cogula beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a
espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas
entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da
terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo;
mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir
as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.
— Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites
sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e
único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do
coração dos homens. Vede-me gentil a airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos
lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um
lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era assim que falava, a princípio, para excitar o
entusiasmo, espertar os indiferentes, congregar, em suma, as multidões ao pé de
si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo passou a definir a doutrina. A
doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de negação. Isso quanto à
substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras cínica e
deslavada.
Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas
por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça
foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que
a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma
esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de
Aquiles, não haveria a Ilíada: “Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de
Peleu”... O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais,
e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra
das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal.
Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só
mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor
sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus
bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a
vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e
verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas
do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem
de prosperidades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as
outras, e ao próprio talento.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo
incutia-lhes, a grandes golpes de eloqüência, toda a nova ordem de coisas,
trocando a noção delas, fazendo amar as perversas e detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele
dava da fraude. Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a
força; e concluía: muitos homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia
que todos fossem canhotos; não era exclusivista. Que uns fossem canhotos,
outros destros; aceitava a todos, menos os que não fossem nada. A demonstração,
porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um casuísta do tempo
chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo,
era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender
a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma
razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não
podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são
mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?
Negá-lo é cair no obscuro e no contraditório. Pois não há mulheres que vendem
os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue para transfundi-lo
a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um
privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrando assim
o princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou
pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria
dissimular o exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo
tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.
E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está
claro que combateu o perdão das injúrias e outras máximas de brandura e
cordialidade. Não proibiu formalmente a calúnia gratuita, mas induziu a
exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra espécie; nos casos,
porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa, e nada
mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração.
Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis
de um certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do
interesse. Mas essa mesma exceção foi logo eliminada, pela consideração de que
o interesse, convertendo o respeito em simples adulação, era este o sentimento
aplicado e não aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar
por toda a solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo
grave à nova instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção
de parasitas e negociantes insolváveis; não se devia dar ao próximo senão
indiferença; em alguns casos, ódio ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de
que a noção de próximo era errada, e citava esta frase de um padre de Nápoles,
aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das marquesas do antigo
regime: “Leve a breca o próximo! Não há próximo!” A única hipótese em que ele
permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias, porque
essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que
o amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal
explicação, por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu
a um apólogo: — Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns;
mas cada acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que
acontece aos adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria.
IV Franjas e franjas
A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja
capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja,
deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova. Atrás foram
chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição. A igreja fundara-se; a
doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a conhecesse, uma
língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou brados de
triunfo.
Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos
seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam
todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas.
Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano,
justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite,
ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe
pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas
mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando
os outros.
A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais
diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram até
incompreensíveis, como o de um droguista do Levante, que envenenara longamente
uma geração inteira, e[1] com o produto das drogas socorria os filhos das
vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a cara para
ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o
procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogman;
roubou-o, com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que
rezou por ele a Alá. O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas
extraordinárias, entre elas esta, que desorientou completamente o Diabo. Um dos
seus melhores apóstolos era um calabrês, varão de cinqüenta anos, insigne
falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na campanha romana,
telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meter-se na
cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao
jogo, como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de
um cônego, ia todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e,
conquanto não lhe desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas
vezes, ao ajoelhar-se, e ao levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha
aleivosia. Mas não havia duvidar; o caso era verdadeiro.
Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de
refletir, comparar e concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao
passado. Voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa
secreta de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o
interrompeu, não o repreendeu, não triunfou, sequer, daquela agonia satânica.
Pôs os olhos nele, e disse:
— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm
agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres
tu? É a eterna contradição humana.
FIM de A igreja do Diabo
fonte: http://www2.uol.com.br/machadodeassis/machado.html
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