sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Ignorância clássica




A história, reconheço, não me deixa bem, mas ao menos tenho a atenuante de que a ideia não foi minha.

Ainda mais vagabundo do que eu, o que não deixava de ser um feito, o primo Fernando parecia decidido a restaurar sua imagem, tanto que resolveu prestar o exame de madureza - um ancestral do supletivo -, numa cidade do interior de Minas. Como não estivesse a fim de viajar sozinho, me convidou para ir com ele.

Nem pensar, descartei eu, sem a menor disposição para o safári que o Nandinho me propunha: se no bem-bom da capital eu já passava humilhação nas provas escolares, por que iria dar vexame também naquela lonjura, conferindo alcance intermunicipal à minha ignorância? Eram seis disciplinas, e entre as obrigatórias havia duas, matemática e biologia, que eu nunca tinha estudado, pois, justamente para fugir delas, optara pelo clássico - o ramo "humanas" do curso colegial. Não foi, aliás, má opção; ainda hoje, questionado sobre qualquer coisa que desconheça, e são tantas, me basta dizer:

-Não sei, eu fiz o clássico.

Nem assim o primo desistiu da minha companhia, e recorreu a um golpe baixo - foi fazer a cabeça de meu pai, terminando por convencer o velho a me pressionar para aderir à expedição. Não tive como resistir, pois meu aberrante prontuário escolar acumulava três estrepitosas reprovações. Sim, por três vezes tomara bomba direto, sem ao menos fazer jus à repescagem da "segunda época". Deveria estar, àquela altura, no segundo ano de alguma faculdade, mas em vez disso tartarugava na metade do clássico. Se dali saltei, poucos meses depois, para a universidade, foi graças ao primo Fernando.

Não direi o nome da cidade onde fomos prestar os exames, para não comprometer com a minha a reputação daquele acolhedor município. Digo apenas que lá se chegava numa interminável, abafada, suarenta viagem de trem. Comigo e o Nandinho, seguiram dezenas de rapazes, bem uns 50, que vinham a ser, ainda mais do que nós dois, a fina flor da vagabundagem escolar belo-horizontina. Não espanta que na chegada nos esperasse um pelotão policial, pois alguns de nossos elementos haviam depredado o carro-restaurante.

As seis disciplinas do madureza deveriam ser matadas de duas, no máximo três vezes. Significava que naquela primeira rodada eu poderia fazer até cinco exames, deixando o derradeiro para mais adiante. Como me restasse um mínimo de noção das coisas, decidi me inscrever em três matérias apenas. Qual não foi a minha surpresa, porém, quando, lá chegando, me encontrei inscrito para cinco provas - entre elas, as impenetráveis matemática e biologia. Até hoje não entendi o que aconteceu.

Não me perguntem, por favor, como foi que, ao cabo de exames orais e escritos, pude voltar para casa, naquele remoto mês de agosto, aprovado, para pasmo geral, a começar do meu, em cinco disciplinas. Para valorizar minha façanha, digo apenas que, no caso da matemática, a prova oral se desdobrava em três, uma para cada ano do curso colegial. Ainda bem que, sorteado o ponto, o candidato tinha alguns minutos para prepará-lo num canto da sala, o que lhe aumentava as chances de êxito - sobretudo se naquele momento pudesse sentar-se nas proximidades de um primo razoavelmente conhecedor da matéria. Fiz melhor figura, em todo caso, que alguns de meus comparsas, um dos quais, no exame oral de biologia, instado a dissertar sobre os musgos, limitou-se a balbuciar que eles serviam para enfeitar presépios.

Sete meses depois, tomei de novo o trem para liquidar a última fatura, que consistiria num exame oral de história. Horas e horas de viagem para que o examinador me propusesse um paralelo entre Ramsés II, o Grande, e o presidente Juscelino Kubitschek.

- As obras faraônicas... - principiei eu, mas não pude ir além destas três palavras, pois o velhinho, de quem me haviam falado como sendo crítico feroz do construtor de Brasília, se abriu num sorriso e me cortou a fala:

- Muito bem, o senhor pode ir.

Fosse outra a pergunta e eu talvez tivesse respondido:

- Sei não. Estou fazendo o clássico.


  - HUMBERTO WERNECK

Estadão.20/05/2012

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