A história, reconheço, não me deixa bem, mas ao menos tenho
a atenuante de que a ideia não foi minha.
Ainda mais vagabundo do que eu, o que não deixava de ser um
feito, o primo Fernando parecia decidido a restaurar sua imagem, tanto que
resolveu prestar o exame de madureza - um ancestral do supletivo -, numa cidade
do interior de Minas. Como não estivesse a fim de viajar sozinho, me convidou
para ir com ele.
Nem pensar, descartei eu, sem a menor disposição para o
safári que o Nandinho me propunha: se no bem-bom da capital eu já passava
humilhação nas provas escolares, por que iria dar vexame também naquela
lonjura, conferindo alcance intermunicipal à minha ignorância? Eram seis disciplinas,
e entre as obrigatórias havia duas, matemática e biologia, que eu nunca tinha
estudado, pois, justamente para fugir delas, optara pelo clássico - o ramo
"humanas" do curso colegial. Não foi, aliás, má opção; ainda hoje,
questionado sobre qualquer coisa que desconheça, e são tantas, me basta dizer:
-Não sei, eu fiz o clássico.
Nem assim o primo desistiu da minha companhia, e recorreu a
um golpe baixo - foi fazer a cabeça de meu pai, terminando por convencer o
velho a me pressionar para aderir à expedição. Não tive como resistir, pois meu
aberrante prontuário escolar acumulava três estrepitosas reprovações. Sim, por
três vezes tomara bomba direto, sem ao menos fazer jus à repescagem da
"segunda época". Deveria estar, àquela altura, no segundo ano de alguma
faculdade, mas em vez disso tartarugava na metade do clássico. Se dali saltei,
poucos meses depois, para a universidade, foi graças ao primo Fernando.
Não direi o nome da cidade onde fomos prestar os exames,
para não comprometer com a minha a reputação daquele acolhedor município. Digo
apenas que lá se chegava numa interminável, abafada, suarenta viagem de trem.
Comigo e o Nandinho, seguiram dezenas de rapazes, bem uns 50, que vinham a ser,
ainda mais do que nós dois, a fina flor da vagabundagem escolar
belo-horizontina. Não espanta que na chegada nos esperasse um pelotão policial,
pois alguns de nossos elementos haviam depredado o carro-restaurante.
As seis disciplinas do madureza deveriam ser matadas de
duas, no máximo três vezes. Significava que naquela primeira rodada eu poderia
fazer até cinco exames, deixando o derradeiro para mais adiante. Como me
restasse um mínimo de noção das coisas, decidi me inscrever em três matérias
apenas. Qual não foi a minha surpresa, porém, quando, lá chegando, me encontrei
inscrito para cinco provas - entre elas, as impenetráveis matemática e
biologia. Até hoje não entendi o que aconteceu.
Não me perguntem, por favor, como foi que, ao cabo de exames
orais e escritos, pude voltar para casa, naquele remoto mês de agosto,
aprovado, para pasmo geral, a começar do meu, em cinco disciplinas. Para
valorizar minha façanha, digo apenas que, no caso da matemática, a prova oral
se desdobrava em três, uma para cada ano do curso colegial. Ainda bem que,
sorteado o ponto, o candidato tinha alguns minutos para prepará-lo num canto da
sala, o que lhe aumentava as chances de êxito - sobretudo se naquele momento
pudesse sentar-se nas proximidades de um primo razoavelmente conhecedor da
matéria. Fiz melhor figura, em todo caso, que alguns de meus comparsas, um dos
quais, no exame oral de biologia, instado a dissertar sobre os musgos,
limitou-se a balbuciar que eles serviam para enfeitar presépios.
Sete meses depois, tomei de novo o trem para liquidar a
última fatura, que consistiria num exame oral de história. Horas e horas de
viagem para que o examinador me propusesse um paralelo entre Ramsés II, o
Grande, e o presidente Juscelino Kubitschek.
- As obras faraônicas... - principiei eu, mas não pude ir
além destas três palavras, pois o velhinho, de quem me haviam falado como sendo
crítico feroz do construtor de Brasília, se abriu num sorriso e me cortou a
fala:
- Muito bem, o senhor pode ir.
Fosse outra a pergunta e eu talvez tivesse respondido:
- Sei não. Estou fazendo o clássico.
Estadão.20/05/2012
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