quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Entre Noel e os índios


  

Em Vila Rosali Noel Nutels repousa
do desamor alheio aos índios
e de seu próprio amor maior aos índios.
Como se os bastos bigodes perguntassem:
Valeu a pena?
Valeu a pena gritar em várias línguas
e conferências e entrevistas e países
que a civilização às vezes é assassina?
Valeu, valeu a pena
criar unidades sanitárias aéreas
para salvar os remanescentes
das vítimas de posseiros, madeireiros,
traficantes,
burocratas et reliqua,
que tiram a felicidade aos simples
e em troca lhes atiram de presente
o samburá de espelhos, canivetes,
tuberculose e sífilis?

Noel baixa de helicóptero
e vê a fome à beira d´água trêmula de peixes.
Homens esquecidos do arco e flecha
deixam-se consumir em nome
da integração que desintegra
a raiz do ser e do viver.

"Vocês têm obrigação de usar calça
camisa paletó sapato e lenço,
enquanto no Leblon nos despimos
de toda convenção, e viva a natureza..."
Noel, tu o disseste:
A civilização que sacrifica
povos e culturas antiquissimas
é uma farsa amoral.

O Parque maravilha do Xingu
rasgado e oferecido
ao galope das máquinas,
não o quiseste assim e protestaste
como se fosse coisa tua, e era,
pois onde um índio cisma
e acende fogo e dança
a dança milenar extraConservatório
e desenha seu movimento de existir
longe da Bolsa, da favela e do napalm
aí estavas tu, teu riso companheiro
teus medicamentos,
tua branca alegria de viver
a vida universal.

Valeu? Valeu a pena
teu cerne ucraniano
fundir-se em meiga argila brasileira
para melhor sentires
o primitivo apelo da terra
moldura natural de homens xavantes
e kreen-akarores
lar aberto de bororos
carajás e kaingangs
hoje tão infelizes
pela compulsão da felicidade programada.
Valeu, Noel, a pena
seguir traça de Rondon
e de Nimuendaju,
mãos dadas com Orlando e Cláudio Villas-Boas
sob o olhar de Darcy Ribeiro,
e voar e baixar e assistir e prover
e alertar e verberar
para que fique ao menos no espaço
este signo de amor compreensivo e ardente
que foi a tua vida sertaneja,
a tua vida iluminada,
a tua generosa decepção.

Carlos Drummond de Andrade

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