Os pais de Adolph Hitler teriam sido aconselhados a levar o
menino para uma consulta com um médico que estava revolucionando o tratamento
de distúrbios mentais, em Viena. Mas decidiram que o que o Adolphinho fazia com
insetos era normal para a idade dele e não procuraram o Dr. Freud. O resultado
foi o que se viu.
Karl Kraus escreveu que a Viena do começo do século 20 era o
campo de provas da destruição do mundo. A derrocada do império Austro-Húngaro
foi o fim de um certo mundo, mas acho que Kraus quis dizer mais do que isto.
Para ele, as revoluções do pensamento postas em movimento na Viena da sua época
trariam o fim do longo dia do humanismo europeu que durara desde a Renascença,
e o novo século restauraria a idade das trevas.
O encontro que não houve entre o intelectual judeu que radicalizou
o estudo da consciência e o homem que quis eliminar as duas coisas, o judeu e a
consciência, da História simboliza este prenúncio, ou esta intuição de Kraus,
sobre o século. Seria fatalmente o século do desencontro entre as duas formas
de modernidade, a que liberava o pensamento pela investigação científica e a
que o aprisionava pelo mito do estado científico.
A questão é até onde coisas vagas como o clima intelectual
de uma cidade, ou clínicas como a maluquice de alguém, influenciam a História,
ou até que ponto uma boa terapia pediátrica teria evitado o Holocausto. A
História teria sido diferente sem Hitler, ou com um Hitler no poder mas tratado
por Freud? A ideia do nazismo como uma anomalia patológica, como coisa de
loucos, é uma ficção conveniente que absolve boa parte da direita cristã
europeia da sua cumplicidade.
Mas a ideia de um determinismo neutro, independente de
qualquer escolha moral, também é assustadora. Precisamos de vilões mais do que
de heróis, de culpados muito mais do que de inocentes. Nem que seja só para
preservar o autorrespeito da espécie.
O materialismo histórico rejeita a ideia de sujeitos regendo
a História e marxistas ortodoxos reagem a qualquer sugestão de que as ideias
justas venham de um discernimento moral inato. Assim a História como um relato
de mocinhos providenciais em guerra com bandidos doentes sobra para a
literatura, ou essa categoria de ficção sentimental que é a História
convencional.
Pois gostamos de pensar que é a iniciativa humana que move a
História, e que o seu objetivo, mesmo que tarde, seja moral e justo, e que ela
tenha uma cara e uma biografia.
- LUIZ FERNANDO VERISSIMO
Estadão.20/05/2012
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