Onde quer que Leona pouse a vista há
uma criança. Alguns meninos têm a mesma altura de Cadu. Nenhum é ele. O peso
dos ossos peitorais de Leona parece ter dobrado. Ela é dominada pelo cansaço de
carregá-los. A respiração encontra obstáculos ao percorrer a traqueia.
Palpitações criam
uma atividade sísmica no território que se estende do pescoço ao coração. A
umidade deixa as palmas de Leona escorregadias, mas ela não solta as mãos da
filha que a encara assustada com o pescoço esticado para enxergar sua
expressão.
Notas de uma mesma
música enjoativa escapam do Bicho da Seda e formam um ciclone de sons ao redor
da cabeça de Leona. É como se seu corpo esticasse e se comprimisse, tornando
variável a distância entre seus olhos e o chão. Leona e Lolô andaram um
quilômetro em círculos, sempre sob os gritos que escapavam da montanha-russa.
A fila em torno do
Barco Viking parece ter sempre a mesma extensão, ainda que os rostos
despreocupados na espera mudassem cada vez que as duas a examinavam. Cadu nunca
estava entre eles.
Leona se sente um
pingo no meio a um horizonte sem fim de brinquedos, barracas e pessoas. Como
seria então para o filho de nove anos, sozinho? Os guardas talvez ajudassem se
ela pedisse ajuda.
Se as caixas de som anunciassem o desaparecimento de uma
criança, os outros visitantes afiariam o olhar. Ela encontraria Cadu mais
rápido.
Mas por que a
indecisão paralisa seus músculos quando ela passa pelos funcionários do parque?
Seu único desejo não era afundar o rosto nos cabelos do filho até deixar o
cheiro de xampu infantil impregnar em suas narinas? Não seria bom sentir a
fragilidade dos ossos que ela conhecia tão bem e jurar protegê-lo do mundo?
Seria?
A viagem ao parque
foi planejada há dois anos. As crianças o visitavam em fantasias desde que
viram as fotos em uma reportagem de revista. Leona, Armando, Cadu e Lolô
alimentavam com cédulas de papel gasto o estômago de uma velha lata de
biscoitos finos da marca Piraquê, já sardenta com a ferrugem. Era da avó das
crianças. Um pé crescia demais, um dente precisava de obturação, uma tosse dava
alerta para a necessidade de remédios e eles se viam obrigados a fazer
retiradas.
A lata só engordou
mesmo naquele novembro, quando Armando deixou uma soma generosa para o
aniversário do filho porque uma viagem a trabalho o impediria estar na festa. O
dinheiro, fonte de uma recente promoção, era um pedido disfarçado de desculpas.
A ideia de ir ao
parque já deixava um gosto amargo preso à boca de Leona naquela época. Os
filhos comemoravam a perspectiva de ida. Cadu se gabava para conhecidos e
desconhecidos sempre que podia, mesmo que a mãe o pedisse para ser discreto.
– E por quê? - ele
sempre questionava, derramando sobre a mãe um olhar de ler mentes.
Armando insistia que ela cumprisse a promessa, quando ela
considerava pretexto para adiar a viagem. Mas que graça teria irmos só eu e as
crianças, sem o você? E como os filhos confiariam neles novamente, caso se
sentissem traídos? Cadu tinha boas notas, não trazia reclamações da escola para
casa, até recolhia garrafas de bebidas usadas para deixar no mercadinho do
bairro em troca de moedas. O moleque merece, não merece? Fácil para Armando
falar, ela pensava, por mais que a decisão de poupar o marido sobre a história
dos gatos fosse decisão dela.
Ao avistar o parque
se revelar distante na paisagem da marginal, Cadu demonstrou uma alegria que
Leona não via desde que o corpo do filho era uma miniaturiazinha de quatro
anos. A culpa dava pontadas no estômago da mãe.
Ela resgatava
lembranças de quando percebeu os músculos faciais do filho caírem em dormência.
Nos últimos anos, o rosto havia ganhado uma máscara de um adulto cansado,
apático demais para uma criança saudável.
Era incômodo ser
alvo de seu olhar fixo por mais de cinco segundos. Cadu nunca piscava as
pálpebras até Leona desviar os olhos. As pupilas dele abriam um caminho até o
tálamo da mãe. Porém, quando os três puseram os pés no parque ele se
transformou de novo no menino de nove anos que deveria ser, como se tocado por
uma Fada Azul das histórias que o filho já rejeitava por estar grande demais
para essas coisas. O medo de Leona recuava.
Cadu procurou o
rosto de Leona com um sorriso convidativo quando subiram juntos no teleférico
do Castelo dos Horrores. A mãe o respondia com a exposição de uma dentição
muito parecida com a do garoto.
Ele disfarçava mal a
curiosidade quando os três caminharam pela mina dos anões. Não dá pra perder
tempo aqui. É brinquedo pra criancinha, igual à Lolô. Cadu indicava com a
cabeça a irmã de seis anos, que desejava ser a própria Branca de Neve ao espiar
o trabalho dos anões. Apesar da diferença de idade, a felicidade no rosto das
duas crianças era idêntica.
Os três se
divertiram. Atacaram o carrinho um do outro no tromba-tromba até as barrigas
ficarem cansadas com o movimento das risadas, dividiram um Dip n’Link
comparando as caretas que faziam ao sentir as explosões na garganta. Leona até
permitiu que os filhos tomassem não um, mas dois sacos de tubaína para afastar
sede e calor.
A nuvem de temor de
Leona se dissipou. O tempo só voltou a se acinzentar quando os olhos dela
esbarraram nas marcas de hematomas no pescoço de Lolô.
– Foi o Cadu,
mamãe. Ele disse que ia me enforcar se eu não ficasse quieta no carro quando
você desceu no posto. Eu só queria ir atrás.
– Quem mente a
língua cai, não é não, mãe?
Lolô lançava um
ensaio de choro para a mãe, seu modo de pedir socorro. Leona não a olhava. Ela
estava ocupada em vasculhar sinais de culpa em Cadu, mas ele estava isento de
remorso, como um inocente.
– Diga a verdade,
Cadu. Você machucou sua irmã? - Leona se segurava para não desviar a face,
embora a pupila do filho já perfurasse seu crânio.
– Eu não tô
mentindo.
– Você sabe que
não gosto de falsidade. Pior que fazer é esconder.
O filho franziu a
testa e exprimiu os lábios. Leona assistia a respiração do menino acelerar. Dos
lábios de Cadu escapou um som. Era um miado quase imperceptível. Leona
estremeceu. As mãos dela engoliam os dedos de Lolô.
Os três caminharam
com as bocas cerradas e assim continuaram por minutos. Uma mistura disforme de
vozes e canções das caixas de som os invadia. O ar foi cortado por um grito
animal que escapava de uma casa.
– A mulher que
vira macaco! - Cadu exclamou. - Vamos ver, mãe? Você prometeu!
– Mamãããe, eu não
queeeero.
– Larga de ser
manhosa, Lolo. Ninguém engole gente manhosa.
– Eu não sou
manhosa, só tô com medo.
– Se vocês não
pararem de brigar, nós vamos é para casa agora mesmo.
Cadu procurou as
mãos da mãe. Ele que odiava andar de mãos dadas porque já estava crescidinho.
Talvez sentisse medo
da promessa de ir embora ou a multidão que descia de um brinquedo o deixasse
com tontura. Talvez ele quisesse sentir nos poros as vibrações da pele de
Leona, enquanto a atacava com um olhar de ler mentes.
– Você teria
coragem mesmo de cumprir quando ameaçava ir embora do parque?
– Está bem. Mas você
vai sozinho. Não vou deixar a Lolô aqui. Vá e se comporte, você já é um
homenzinho, não é?
– Homem, mãe,
homem. Sem essa de “inho”.
Um fantasma da mão
de Cadu agarrava a palma de Leona enquanto ele se distanciava. Quando a figura
do filho atravessou a porta da casa da mulher-macaco, as pernas de Leona
começaram a caminhar. O intervalo entre as batidas do scarpin contra o asfalto
diminuía a cada passo.
A gola do vestido a
sufocava. Ela puxava uma Lolô cheia de perguntas. Não fale nada, Lolô, por
favor! Ao se ver no estacionamento, Leona correu até o Chevette. A chave
demorava a encaixar, porque ela tremia. Depois de apertar o cinto da filha,
Leona se sentou no banco de motorista. As batidas de seu coração se
transportavam para os tímpanos.
– Mas e o Cadu,
mamãe?
Cada ruído da
caminhada até o carro foi uma martelada leve contra um vidro grosso do aquário
onde imergia sua decisão. O primeiro golpe só arranhou a superfície. O ritmo
das batidas aumentava. Bleng. Bleng Bleng. BLENG. Era difícil ignorar. A
pergunta de Lolô foi a última martelada. Perfurou o vidro que protegia a
determinação de Leona. O vão é pequeno, o que não impede o desespero de
escorrer, vazar como a água de um aquário rachado. O choro escapou até Leona
engasgar.
Cadu era mesmo
capaz? Foi o que Leona se perguntou quando encontrou a primeira gata escondida
na caixa de brinquedos do filho. A pergunta se instalou como um visitante
indesejado que desconhece a hora de ir embora. Era um pensamento obsceno do
qual Leona se despedia, mas que não se desprendia do cérebro.
Era uma persa de
pelagem toda cinza, quase azulada. Apesar da cor, seu nome era Mel. Os vizinhos
perguntaram se Leona havia visto a gata alguns dias antes. Mel às vezes pulava
o muro e fazia companhia para Leona enquanto ela esfregava as roupas no tanque.
Seus pelos, antes macios, estavam secos e ásperos. As patas ágeis e o rabo
endureceram. Parecia uma estátua com pescoço quebrado.
Cadu brincava na
sala com soldadinhos verdes e minúsculos. Imitava os barulhos de uma guerra com
os lábios. Tinha sete anos. Leona reparou nos arranhões nos braços do filho.
Ele logo largou os brinquedos para assisti-la. Os dois se encaravam, imóveis.
Era possível ouvir mocinho e a mocinha da novela terminarem um relacionamento
chorosos no televisor.
A cena da atriz chorando lágrimas cinzas era substituída por
um coadjuvante dirigindo um carro que seria azul-marinho fora do mundo
monocromático da televisão sem que Leona e Cadu pronunciassem uma palavra. As
perguntas da mãe eram engolidas. O filho a cercava com o olhar de ler mentes.
– Ela já estava
assim quando a encontrei no jardim. - ele finalmente rompeu o silêncio, com os
olhos grudados nos soldadinhos.
– E por que a
guardou? - Leona perguntou, em vez do “Foi você quem a matou?” em gestação na
sua garganta.
– Não sei. Eu só
quis.
Duas lágrimas
gêmeas escorreram nas bochechas da mãe e do filho. Leona não conseguia
interrogar Cadu. O que dera nela? Só era capaz de abraçar o filho e desejar que
ele diminuísse até voltar a ser o bebê que ela carregava no colo.
Leona saiu de
madrugada com o Chevette. Rezava para que os faróis ou o motor não acordassem
ninguém, principalmente Armando. Ela saiu à caça de um terreno baldio pela
pequena cidade onde moravam. Cavar exigia mais força do que ela parecia ter.
Porém, Leona abriu uma pequena cova e se despediu de Mel.
O segundo gato era
gordo e rajado. Era um animal andarilho que às vezes circulava um boteco da rua
de trás. Estavam em uma gaveta, debaixo das roupas do filho, que ainda
conservavam o cheiro do amaciante.
Leona o enterrou
torcendo para que fosse o último gato enforcado, mas não foi. Houve um
terceiro, um quarto e um quinto. Ela desmontava e remontava a casa todos os
dias ao voltar do trabalho no escritório a procura de um novo corpo. Tentava
ser rápida para realizar os enterros antes de o marido chegar. Às vezes, perdia
o sono e andava pela casa para vigiar as crianças.
Cadu sempre dizia
que os encontrava mortos e os trazia para casa. Leona ameaçava contar para
Armando, mas fraquejava. O marido estava sempre tão cansado e passava tão pouco
tempo com as crianças. Os momentos em que os pai e filho brincavam com trens em
miniatura ou em que Armando ensinava Cadu a imitar jogadores da seleção
tricampeã que o menino nem havia assistido, mas idolatrava porque o pai
idolatrava, não podiam ser maculados.
Quando chegaram ao
parque, o pensamento de medo pareceu morrer. Ou desmaiar, pelo menos. Os três
iriam apenas se divertir. E ficaram alegres, como as famílias das propagandas
que viam na televisão. Davam risadas no tromba-tromba como se quisessem
afrontar o mundo. Tudo parecia bem e agora ela se vê ligando o motor do
Chevette, com o rosto ensopado de lágrimas enquanto se prepara para abandonar
filho em um grande parque.
Leona sente a
vergonha incendiar a pele de seu rosto enquanto se olha no retrovisor. As
lágrimas caem tingidas pelo preto da maquiagem borrada. Ela limpa o rosto com
força. Queria se machucar, queria que doesse. Leona crava as unhas no rosto e
se arranha até as marcas ficarem nítidas. Os cabelos cortados no estilo Farrah
Fawcett estão um caos.
Abandonar Cadu era
inclusive um plano ridículo. Armando se desesperaria com o sumiço do filho,
para começar. A polícia teria de ser avisada e Cadu seria procurado até ser
encontrado. Esclareceriam o crime de abandono. Mas a cidade onde eles moravam
ficava tão longe do parque e era tão pequena, tão esquecida pelo mundo. Só que
Cadu sabia onde morava e pediria ajuda. Não só era idiota demais pensar nisso,
era cruel demais.
Como o mundo trataria
Cadu? Ela era a mãe, sempre ouviu que deveria amar e proteger o filho a
qualquer custo. Devia? É o que chamavam de papel de mãe, de amor incondicional.
Mas era tão difícil enterrar gatos. E se partisse para algo maior? Ela tremia
ao observá-lo ao lado da irmã, ao almoçar e jantar na mesma mesa que ele, ao
conversar com o menino sem conseguir fazer as perguntas que importavam.
Lolô sofre com a
confusão. Chora baixinho com as pupilas pregadas na mãe.
– Não, meu anjo,
não precisa chorar. Já passou. Vem. Está tudo bem. Nós vamos buscar Cadu e ir
embora. Que tal? Podemos tomar sorvete no caminho como você queria. Vem.
As duas voltam ao
local onde o deixaram. Cadu não está na saída da casa da mulher que vira
macaco, nem nos brinquedos mais próximos ou nas barracas nos arredores. Onde
quer que Leona pouse a vista há meninos. Nenhum deles é o filho. Leona o
procura até o sangue se concentrar nos dedos apertados dentro do scarpin velho,
comprado em 1979.
A vontade de fugir
para sempre aumentava na mesma proporção do medo de nunca mais ver o filho,
nunca mais pentear seus cabelos cacheados, nunca medir seu tamanho até perceber
que ele estava um centímetro mais próximo da altura da própria Leona e de
Armando. E nunca mais sentir aquele olhar de ler mentes. Nunca mais encontrar
gatos. Nunca mais sentir medo por Lolô.
Porém, se o filho é
que se tornasse uma criança morta seria culpa dela. Ela sentia ratos subirem
por suas roupas. Ela era um animal sujo, um animal ruim. O filho herdou isso
dela.
Leona volta a chorar
sem perceber. Ela aperta forte a mão da filha, até que Lolô começa a
choramingar que está com dor. No mesmo segundo, uma mulher com sorriso forçado
surge na frente das duas.
– Você está
procurando um menininho com essa altura? Ele estava ali parado, atrás das
barracas. Parecia perdido. Disse que a mãe foi embora.
O dedo da mulher
indica o caminho. Até o último instante, Leona sente dúvidas sobre seguir as
direções ou não. Ela tenta esgarçar a gola que a esganava. E então corre,
arrastando Lolô como se a filha fosse uma mala pesada.
Estava pronta para
abraçar Cadu. A atmosfera fria em volta dele a desmonta. Os dois estão frente a
frente e evitam se olhar. Ela não sabe dizer desculpas, como nunca soube
perguntar em voz alta quem o filho realmente era.
Cadu mantém uma
espécie de voto de silêncio. A certeza está estampada no rosto do garoto. Ele
sabe ler com exatidão os gestos, a respiração da mãe, o cheiro acre de seu
medo. Os dois dão as mãos. Ao apertar a palma macia do filho entre seus dedos,
Leona sente que aquele dia no parque seria um gato que ela e Cadu enterrariam
juntos.
- conto de Rafaela Tavares Kawasaki
fonte : Samizdat oficina editora
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