sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Enterrando gatos




    Onde quer que Leona pouse a vista há uma criança. Alguns meninos têm a mesma altura de Cadu. Nenhum é ele. O peso dos ossos peitorais de Leona parece ter dobrado. Ela é dominada pelo cansaço de carregá-los. A respiração encontra obstáculos ao percorrer a traqueia.
   Palpitações criam uma atividade sísmica no território que se estende do pescoço ao coração. A umidade deixa as palmas de Leona escorregadias, mas ela não solta as mãos da filha que a encara assustada com o pescoço esticado para enxergar sua expressão.
    Notas de uma mesma música enjoativa escapam do Bicho da Seda e formam um ciclone de sons ao redor da cabeça de Leona. É como se seu corpo esticasse e se comprimisse, tornando variável a distância entre seus olhos e o chão. Leona e Lolô andaram um quilômetro em círculos, sempre sob os gritos que escapavam da montanha-russa.
  A fila em torno do Barco Viking parece ter sempre a mesma extensão, ainda que os rostos despreocupados na espera mudassem cada vez que as duas a examinavam. Cadu nunca estava entre eles.
   Leona se sente um pingo no meio a um horizonte sem fim de brinquedos, barracas e pessoas. Como seria então para o filho de nove anos, sozinho? Os guardas talvez ajudassem se ela pedisse ajuda.
Se as caixas de som anunciassem o desaparecimento de uma criança, os outros visitantes afiariam o olhar. Ela encontraria Cadu mais rápido.
   Mas por que a indecisão paralisa seus músculos quando ela passa pelos funcionários do parque? Seu único desejo não era afundar o rosto nos cabelos do filho até deixar o cheiro de xampu infantil impregnar em suas narinas? Não seria bom sentir a fragilidade dos ossos que ela conhecia tão bem e jurar protegê-lo do mundo? Seria?
   A viagem ao parque foi planejada há dois anos. As crianças o visitavam em fantasias desde que viram as fotos em uma reportagem de revista. Leona, Armando, Cadu e Lolô alimentavam com cédulas de papel gasto o estômago de uma velha lata de biscoitos finos da marca Piraquê, já sardenta com a ferrugem. Era da avó das crianças. Um pé crescia demais, um dente precisava de obturação, uma tosse dava alerta para a necessidade de remédios e eles se viam obrigados a fazer retiradas.
   A lata só engordou mesmo naquele novembro, quando Armando deixou uma soma generosa para o aniversário do filho porque uma viagem a trabalho o impediria estar na festa. O dinheiro, fonte de uma recente promoção, era um pedido disfarçado de desculpas.
   A ideia de ir ao parque já deixava um gosto amargo preso à boca de Leona naquela época. Os filhos comemoravam a perspectiva de ida. Cadu se gabava para conhecidos e desconhecidos sempre que podia, mesmo que a mãe o pedisse para ser discreto.
   – E por quê? - ele sempre questionava, derramando sobre a mãe um olhar de ler mentes.
Armando insistia que ela cumprisse a promessa, quando ela considerava pretexto para adiar a viagem. Mas que graça teria irmos só eu e as crianças, sem o você? E como os filhos confiariam neles novamente, caso se sentissem traídos? Cadu tinha boas notas, não trazia reclamações da escola para casa, até recolhia garrafas de bebidas usadas para deixar no mercadinho do bairro em troca de moedas. O moleque merece, não merece? Fácil para Armando falar, ela pensava, por mais que a decisão de poupar o marido sobre a história dos gatos fosse decisão dela.
   Ao avistar o parque se revelar distante na paisagem da marginal, Cadu demonstrou uma alegria que Leona não via desde que o corpo do filho era uma miniaturiazinha de quatro anos. A culpa dava pontadas no estômago da mãe.
   Ela resgatava lembranças de quando percebeu os músculos faciais do filho caírem em dormência. Nos últimos anos, o rosto havia ganhado uma máscara de um adulto cansado, apático demais para uma criança saudável.
  Era incômodo ser alvo de seu olhar fixo por mais de cinco segundos. Cadu nunca piscava as pálpebras até Leona desviar os olhos. As pupilas dele abriam um caminho até o tálamo da mãe. Porém, quando os três puseram os pés no parque ele se transformou de novo no menino de nove anos que deveria ser, como se tocado por uma Fada Azul das histórias que o filho já rejeitava por estar grande demais para essas coisas. O medo de Leona recuava.
   Cadu procurou o rosto de Leona com um sorriso convidativo quando subiram juntos no teleférico do Castelo dos Horrores. A mãe o respondia com a exposição de uma dentição muito parecida com a do garoto.
 Ele disfarçava mal a curiosidade quando os três caminharam pela mina dos anões. Não dá pra perder tempo aqui. É brinquedo pra criancinha, igual à Lolô. Cadu indicava com a cabeça a irmã de seis anos, que desejava ser a própria Branca de Neve ao espiar o trabalho dos anões. Apesar da diferença de idade, a felicidade no rosto das duas crianças era idêntica.
  Os três se divertiram. Atacaram o carrinho um do outro no tromba-tromba até as barrigas ficarem cansadas com o movimento das risadas, dividiram um Dip n’Link comparando as caretas que faziam ao sentir as explosões na garganta. Leona até permitiu que os filhos tomassem não um, mas dois sacos de tubaína para afastar sede e calor.
   A nuvem de temor de Leona se dissipou. O tempo só voltou a se acinzentar quando os olhos dela esbarraram nas marcas de hematomas no pescoço de Lolô.
   – Foi o Cadu, mamãe. Ele disse que ia me enforcar se eu não ficasse quieta no carro quando você desceu no posto. Eu só queria ir atrás.
   – Quem mente a língua cai, não é não, mãe?
   Lolô lançava um ensaio de choro para a mãe, seu modo de pedir socorro. Leona não a olhava. Ela estava ocupada em vasculhar sinais de culpa em Cadu, mas ele estava isento de remorso, como um inocente.
   – Diga a verdade, Cadu. Você machucou sua irmã? - Leona se segurava para não desviar a face, embora a pupila do filho já perfurasse seu crânio.
    – Eu não tô mentindo.
    – Você sabe que não gosto de falsidade. Pior que fazer é esconder.
   O filho franziu a testa e exprimiu os lábios. Leona assistia a respiração do menino acelerar. Dos lábios de Cadu escapou um som. Era um miado quase imperceptível. Leona estremeceu. As mãos dela engoliam os dedos de Lolô.
   Os três caminharam com as bocas cerradas e assim continuaram por minutos. Uma mistura disforme de vozes e canções das caixas de som os invadia. O ar foi cortado por um grito animal que escapava de uma casa.
    – A mulher que vira macaco! - Cadu exclamou. - Vamos ver, mãe? Você prometeu!
    – Mamãããe, eu não queeeero.
    – Larga de ser manhosa, Lolo. Ninguém engole gente manhosa.
    – Eu não sou manhosa, só tô com medo.
    – Se vocês não pararem de brigar, nós vamos é para casa agora mesmo.
    Cadu procurou as mãos da mãe. Ele que odiava andar de mãos dadas porque já estava crescidinho.
  Talvez sentisse medo da promessa de ir embora ou a multidão que descia de um brinquedo o deixasse com tontura. Talvez ele quisesse sentir nos poros as vibrações da pele de Leona, enquanto a atacava com um olhar de ler mentes.
   – Você teria coragem mesmo de cumprir quando ameaçava ir embora do parque?
  – Está bem. Mas você vai sozinho. Não vou deixar a Lolô aqui. Vá e se comporte, você já é um homenzinho, não é?
   – Homem, mãe, homem. Sem essa de “inho”.
  Um fantasma da mão de Cadu agarrava a palma de Leona enquanto ele se distanciava. Quando a figura do filho atravessou a porta da casa da mulher-macaco, as pernas de Leona começaram a caminhar. O intervalo entre as batidas do scarpin contra o asfalto diminuía a cada passo.
 A gola do vestido a sufocava. Ela puxava uma Lolô cheia de perguntas. Não fale nada, Lolô, por favor! Ao se ver no estacionamento, Leona correu até o Chevette. A chave demorava a encaixar, porque ela tremia. Depois de apertar o cinto da filha, Leona se sentou no banco de motorista. As batidas de seu coração se transportavam para os tímpanos.
   – Mas e o Cadu, mamãe?
   Cada ruído da caminhada até o carro foi uma martelada leve contra um vidro grosso do aquário onde imergia sua decisão. O primeiro golpe só arranhou a superfície. O ritmo das batidas aumentava. Bleng. Bleng Bleng. BLENG. Era difícil ignorar. A pergunta de Lolô foi a última martelada. Perfurou o vidro que protegia a determinação de Leona. O vão é pequeno, o que não impede o desespero de escorrer, vazar como a água de um aquário rachado. O choro escapou até Leona engasgar.
   Cadu era mesmo capaz? Foi o que Leona se perguntou quando encontrou a primeira gata escondida na caixa de brinquedos do filho. A pergunta se instalou como um visitante indesejado que desconhece a hora de ir embora. Era um pensamento obsceno do qual Leona se despedia, mas que não se desprendia do cérebro.
   Era uma persa de pelagem toda cinza, quase azulada. Apesar da cor, seu nome era Mel. Os vizinhos perguntaram se Leona havia visto a gata alguns dias antes. Mel às vezes pulava o muro e fazia companhia para Leona enquanto ela esfregava as roupas no tanque. Seus pelos, antes macios, estavam secos e ásperos. As patas ágeis e o rabo endureceram. Parecia uma estátua com pescoço quebrado.
  Cadu brincava na sala com soldadinhos verdes e minúsculos. Imitava os barulhos de uma guerra com os lábios. Tinha sete anos. Leona reparou nos arranhões nos braços do filho. Ele logo largou os brinquedos para assisti-la. Os dois se encaravam, imóveis. Era possível ouvir mocinho e a mocinha da novela terminarem um relacionamento chorosos no televisor.
A cena da atriz chorando lágrimas cinzas era substituída por um coadjuvante dirigindo um carro que seria azul-marinho fora do mundo monocromático da televisão sem que Leona e Cadu pronunciassem uma palavra. As perguntas da mãe eram engolidas. O filho a cercava com o olhar de ler mentes.
   – Ela já estava assim quando a encontrei no jardim. - ele finalmente rompeu o silêncio, com os olhos grudados nos soldadinhos.
   – E por que a guardou? - Leona perguntou, em vez do “Foi você quem a matou?” em gestação na sua garganta.
   – Não sei. Eu só quis.
   Duas lágrimas gêmeas escorreram nas bochechas da mãe e do filho. Leona não conseguia interrogar Cadu. O que dera nela? Só era capaz de abraçar o filho e desejar que ele diminuísse até voltar a ser o bebê que ela carregava no colo.
   Leona saiu de madrugada com o Chevette. Rezava para que os faróis ou o motor não acordassem ninguém, principalmente Armando. Ela saiu à caça de um terreno baldio pela pequena cidade onde moravam. Cavar exigia mais força do que ela parecia ter. Porém, Leona abriu uma pequena cova e se despediu de Mel.
   O segundo gato era gordo e rajado. Era um animal andarilho que às vezes circulava um boteco da rua de trás. Estavam em uma gaveta, debaixo das roupas do filho, que ainda conservavam o cheiro do amaciante.
   Leona o enterrou torcendo para que fosse o último gato enforcado, mas não foi. Houve um terceiro, um quarto e um quinto. Ela desmontava e remontava a casa todos os dias ao voltar do trabalho no escritório a procura de um novo corpo. Tentava ser rápida para realizar os enterros antes de o marido chegar. Às vezes, perdia o sono e andava pela casa para vigiar as crianças.
  Cadu sempre dizia que os encontrava mortos e os trazia para casa. Leona ameaçava contar para Armando, mas fraquejava. O marido estava sempre tão cansado e passava tão pouco tempo com as crianças. Os momentos em que os pai e filho brincavam com trens em miniatura ou em que Armando ensinava Cadu a imitar jogadores da seleção tricampeã que o menino nem havia assistido, mas idolatrava porque o pai idolatrava, não podiam ser maculados.
   Quando chegaram ao parque, o pensamento de medo pareceu morrer. Ou desmaiar, pelo menos. Os três iriam apenas se divertir. E ficaram alegres, como as famílias das propagandas que viam na televisão. Davam risadas no tromba-tromba como se quisessem afrontar o mundo. Tudo parecia bem e agora ela se vê ligando o motor do Chevette, com o rosto ensopado de lágrimas enquanto se prepara para abandonar filho em um grande parque.
   Leona sente a vergonha incendiar a pele de seu rosto enquanto se olha no retrovisor. As lágrimas caem tingidas pelo preto da maquiagem borrada. Ela limpa o rosto com força. Queria se machucar, queria que doesse. Leona crava as unhas no rosto e se arranha até as marcas ficarem nítidas. Os cabelos cortados no estilo Farrah Fawcett estão um caos.
   Abandonar Cadu era inclusive um plano ridículo. Armando se desesperaria com o sumiço do filho, para começar. A polícia teria de ser avisada e Cadu seria procurado até ser encontrado. Esclareceriam o crime de abandono. Mas a cidade onde eles moravam ficava tão longe do parque e era tão pequena, tão esquecida pelo mundo. Só que Cadu sabia onde morava e pediria ajuda. Não só era idiota demais pensar nisso, era cruel demais.
   Como o mundo trataria Cadu? Ela era a mãe, sempre ouviu que deveria amar e proteger o filho a qualquer custo. Devia? É o que chamavam de papel de mãe, de amor incondicional. Mas era tão difícil enterrar gatos. E se partisse para algo maior? Ela tremia ao observá-lo ao lado da irmã, ao almoçar e jantar na mesma mesa que ele, ao conversar com o menino sem conseguir fazer as perguntas que importavam.
   Lolô sofre com a confusão. Chora baixinho com as pupilas pregadas na mãe.
   – Não, meu anjo, não precisa chorar. Já passou. Vem. Está tudo bem. Nós vamos buscar Cadu e ir embora. Que tal? Podemos tomar sorvete no caminho como você queria. Vem.
  As duas voltam ao local onde o deixaram. Cadu não está na saída da casa da mulher que vira macaco, nem nos brinquedos mais próximos ou nas barracas nos arredores. Onde quer que Leona pouse a vista há meninos. Nenhum deles é o filho. Leona o procura até o sangue se concentrar nos dedos apertados dentro do scarpin velho, comprado em 1979.
   A vontade de fugir para sempre aumentava na mesma proporção do medo de nunca mais ver o filho, nunca mais pentear seus cabelos cacheados, nunca medir seu tamanho até perceber que ele estava um centímetro mais próximo da altura da própria Leona e de Armando. E nunca mais sentir aquele olhar de ler mentes. Nunca mais encontrar gatos. Nunca mais sentir medo por Lolô.
   Porém, se o filho é que se tornasse uma criança morta seria culpa dela. Ela sentia ratos subirem por suas roupas. Ela era um animal sujo, um animal ruim. O filho herdou isso dela.
  Leona volta a chorar sem perceber. Ela aperta forte a mão da filha, até que Lolô começa a choramingar que está com dor. No mesmo segundo, uma mulher com sorriso forçado surge na frente das duas.
  – Você está procurando um menininho com essa altura? Ele estava ali parado, atrás das barracas. Parecia perdido. Disse que a mãe foi embora.
  O dedo da mulher indica o caminho. Até o último instante, Leona sente dúvidas sobre seguir as direções ou não. Ela tenta esgarçar a gola que a esganava. E então corre, arrastando Lolô como se a filha fosse uma mala pesada.
  Estava pronta para abraçar Cadu. A atmosfera fria em volta dele a desmonta. Os dois estão frente a frente e evitam se olhar. Ela não sabe dizer desculpas, como nunca soube perguntar em voz alta quem o filho realmente era.
  Cadu mantém uma espécie de voto de silêncio. A certeza está estampada no rosto do garoto. Ele sabe ler com exatidão os gestos, a respiração da mãe, o cheiro acre de seu medo. Os dois dão as mãos. Ao apertar a palma macia do filho entre seus dedos, Leona sente que aquele dia no parque seria um gato que ela e Cadu enterrariam juntos.

- conto de Rafaela Tavares Kawasaki


fonte : Samizdat oficina editora




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