Minha mulher tinha a mania de colocar os fósforos usados de
volta para a caixinha.
Assim que riscava, guardava os palitos velhos com os novos.
Nunca colocava fora, apesar da facilidade do lixinho branco
em cima da pia.
Nem acho que era pressa, mas hábito. Tentei adverti-la uma
vez, duas vezes, até que estava sendo desagradável e desisti (quando marido se
assemelha a um pai, é o momento de calar a boca).
Mesmo disposto a me adaptar e não comprar briga, eu me
irritava com aquela roleta-russa toda manhã. É evidente que pegava de imediato
uma série de fósforos queimados – não sei se você sabe, mas sou o autor da Lei
de Murphy na Câmara de Vereadores de Porto Alegre.
O azar me premiava. Jamais retirava de cara a cabeça ruiva
da caixinha amarela. Sacrificava preciosos minutos para preservar a chatice da
esposa.
Acender incenso, acender fogão, acender vela reivindicavam o
suspense do sorteio, a contagem de votos da eleição. E muita paciência para não
gritar um bom desaforo ao longo da porta.
Aquilo era ainda mais claustrofóbico para quem aprendeu a
tabuada separando grãos de feijão e fósforos. Reproduzia o terror das provas
orais, das superações matemáticas.
A caixa não se abria como uma caixa, e sim se aprofundava
como uma gaveta desorganizada, uma bolsa de mulher, um armário de solteiro.
Solicitava o dobro de cuidado para revirar o fundo e contornar as pontas com o
tato.
Eu me enxergava penalizado, diferente de qualquer pessoa
normal, que apenas riscava o fulgor e não pensava.
Sofri dois anos com minha indisposição.
Somente hoje reparei que gosto imensamente da dúvida, da
possibilidade de colher um fogo extinto ou um fogo vivo.
É uma ansiedade feliz. Uma expectativa pequena, porém
agradável.
Encaro o fósforo e confiro se ele tem a pólvora intacta, se
vai explodir sua cabeleira loira e azul. Faz sentido, porque liberdade
significa manter nossa disposição para se surpreender dentro da rotina.
Presto uma maior atenção na chama, no seu desenho e som.
Descubro que o fósforo é um relâmpago em miniatura, tão bonito quanto os raios
que cortam os morros e céus. Solto uma risada infantil assim que ele mantém sua
auréola firme.
Amar a si próprio é esse movimento: não se resignar, não se
conformar com o que foi feito, não mergulhar na repetição desanimada dos dias:
olhar cada lembrança de frente e ver se ainda queima. Olhar cada palavra de
frente e ver se ainda queima. Olhar cada atitude de frente e ver se ainda
queima.
E incendiar a nossa vida na vida do outro.
FABRÍCIO CARPINEJAR -
ZERO HORA
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