Não tenho direito de escrever sobre o ovo, depois de tantos
outros autores o terem feito. São textos que atingem a imanência do ovo, em sua
essência oval, e que o compreendem em seu mistério integral e íntegro, pois
nada há de mais íntegro do que o ovo em toda a natureza. Se quisermos nos
espelhar em algum modelo para a vida, esse modelo é o ovo.
Mas dizia que não tinha direito de escrever sobre ele e já
me pus a escrever, como se ainda pudesse acrescentar algo a tudo o que sobre
ele já foi dito.
Digo ovo e não ovos, porque os ovos nada têm a ver com o
ovo, este, sim, matéria abstrata, apenas imaginável, enquanto os ovos já vêm
acondicionados em caixas, sempre prontos para ser comidos, transformados em
omeletes, são de galinha ou de codorna, brancos ou vermelhos, médios ou
grandes, enquanto o ovo, este não, este é ovo apenas, não classificável, avesso
a qualquer nome ou número, aquele que não se reduz a dúzias, que não se compra
nem vende, anticomercial, anterior à invenção do comércio e aquele que restará
depois que tiver acabado o dinheiro e quando novamente as criaturas habitarem
as cavernas. Comido e partilhado; ele será o bem que alimentará os velhos e as
crianças. Será totem e coisa do dia a dia.
Ovo é coisa, afinal. Coisa como é coisa uma caneta, uma
cadeira, um palito de fósforo. O ovo é a coisa em que todas as coisas se
inspiram para sê-lo. Ele é a pergunta inicial: o quê? E a final também: para
onde?
Mas incorri no mesmo erro, porque desandei a discorrer sobre
o ovo, quando nada mais resta a dizer sobre ele, mesmo porque dizer algo sobre
o ovo é tentar superá-lo e explicá-lo, quando sabemos que ele é insuperável e
inexplicável. O ovo é a vida e aqui eu disse uma bobagem, porque sobre o ovo só
se pode dizer bobagens, embora dizer que o ovo é a vida não seja tanta bobagem
assim, apesar de ser um enorme lugar-comum, porque o que mais do que a vida se
assemelha ao ovo, a vida, que é afazer extenso e inafiançável?
Mas o que eu queria contar era algo sobre o ovo, na verdade,
já que o ovo é inapreensível, indizível e até inolhável, já que não posso dizer
invisível. Será o ovo invisível? Será a própria invisibilidade? Talvez ele seja
a própria transparência e, quando vemos um ovo, na verdade vemos através dele
ou então é nele que nos espelhamos e, quando pensamos não ver nada além dele em
sua superfície, estamos vendo a nós mesmos nele transformados, a brancura e a
lisura de sermos quem somos.
E a história que quero contar sobre o ovo, se meu amigo me
permitir — mas ele terá que permitir, sim, já que não tenho como lhe pedir
permissão e já que, como a história é sobre um ovo, como o ovo é a essência
desta história, não restaria a ele outra opção senão permiti-la, porque não se
pode proibir nada que contenha um ovo —, a história fala da Rússia.
A Rússia, em meus sonhos russos de ruas largas, de velhas
que vendem ovos na rua — como uma senhora que vi em Varsóvia, que os vendia
enfileirados e diante dos quais ela dispusera uma tabuleta em que escreveu
“ovos” e o preço —, a Rússia é um velho país de ovos, onde, depois da grande
fome de Leningrado, as crianças saíam à rua à caça deles, um ovo apenas que
fosse, para com ele alimentar a família por um dia inteiro. Esse é o país que
eu amo e que não conheço e onde meu amigo foi fazer um filme, um documentário
sobre pequenas cidades do interior. Mais do que de Moscou ou Leningrado,
cidades que só imagino, o que amo mesmo na Rússia são suas pequenas cidades
onde circulam os funcionários de Tchékhov, suas dachas e seus cachorros, o
farmacêutico que dorme profundamente e ronca, sonhando com um medicamento que
vai torná-lo rico, e o dono do capote, de Gógol, que o pendura numa taberna, à
noite, para depois perdê-lo e, com isso, também a vida.
Meu amigo foi de trem a uma dessas cidades e, ao chegar à
estação — uma daquelas estações de trem russas, onde as pessoas esperam debaixo
de uma marquise, bem agasalhadas porque está sempre frio, onde é sempre ou
muito cedo ou muito tarde, onde homens bêbados se encontram para mais um gole e
onde mulheres gordas carregam sacolas e partem um pão com as mãos —, a
orquestra local estava toda adormecida, cada músico sobre seu instrumento. O
trem tinha atrasado muito, a orquestra não soube do atraso e ficou aguardando o
visitante, ele demorava, eles se cansaram, mas não desistiram e acabaram
adormecendo. Quem o recebeu foi apenas o maestro, o único ainda acordado e, ao
vê‑lo,
correu a despertar os músicos todos que rapidamente se
aprumaram, sacaram os instrumentos e começaram a tocar uma peça especialmente
preparada em homenagem a ele — sem dúvida com o talento que só uma orquestra
russa, mesmo sendo do interior, consegue demonstrar, mesmo depois de
adormecida.
Meu amigo, é claro, não sabia onde localizar sua emoção, se
nos olhos, na boca, nas pernas, como agradeceria a tanta dedicação e carinho,
tanto amor entregue a ele, um cineasta iniciante e desconhecido, numa cidade
escondida no interior de um país tão distante. Cumprimentou-os a todos, emocionado,
apenas. Quando a homenagem é tão cândida, o silêncio, como o de um ovo, é o
melhor abraço.
Todos o acompanharam até a casa onde ele iria realizar uma
entrevista. Não me lembro agora se a conversa seria com o próprio maestro ou
com outra pessoa que não fazia parte da orquestra. Só que não quero me
certificar da exatidão dos fatos, porque, de certa forma, os fatos completos,
sem tirar nem pôr, estragariam a nuvem que contorna esta história e as
histórias gostam de estar envolvidas em nuvens de veracidade duvidosa, porque
ali flutuam, absorvendo novos fatos, respirando os gases que circulam nessa
atmosfera, colorindo-se de tons que circulam no ambiente. Penso que era, sim, o
maestro que meu amigo entrevistaria. Não sei, entretanto, o porquê dessa
entrevista. Se ele tinha alguma história especial para contar, se participara
heroicamente de alguma batalha, se formara a orquestra à revelia da censura, se
havia sido preso, se era parente de alguém famoso. Realmente não sei; não me
lembro.
Mas meu amigo me contou que moravam na casa apenas o maestro
e seu filho, um menino ainda pequeno. Que era uma casa bem simples, mas
aconchegante, e que o maestro era gentil, inteligente e espirituoso. Imagino
sua casa pequena: um armário envidraçado carregado de louças floridas, taças e
talheres, todos recentemente limpos; muitos tapetes grossos, estampados e
escuros; um porta-retratos com sua esposa, falecida há não muito tempo; os
cadernos escolares do menino empilhados junto a uma montanha de livros, nas
laterais das paredes; uma pequena geladeira vazia e barulhenta, sua porta
amarrada com um cordão velho; roupas penduradas num varal improvisado na
própria cozinha.
Eles conversaram muito, durante todo o dia e a noite, e o
maestro apresentou várias músicas russas ao meu amigo, tocando-as ele mesmo ao
violino ou numa vitrola antiga, onde ele punha um disco depois do outro,
apontando as melodias, relacionando-as a compositores famosos, localizando-as
no tempo e no espaço. Na verdade, não sei dessa parte da vitrola e estou apenas
inventando. Mas quero que tenha sido assim e acredito então que foi. E, se não
foi, tenho certeza de que poderia ter sido, porque conheço meu amigo e sinto
que também conheço esse maestro.
Até que ficou muito tarde e meu amigo dormiu em sua casa,
tão pequena e sem espaço para hóspedes. Mas hospedar é a prática mais antiga da
humanidade, é a origem do que hoje conhecemos como sociedade e, para os
antigos, esse exercício era tão sagrado como as coisas do que agora chamamos
religião. Então o maestro o hospedou, como um ovo nos hospeda em sua verdade.
No dia seguinte, meu amigo precisava partir cedo. Um trem já
o aguardava para levá-lo a outra cidade, onde entrevistaria outra pessoa para
seu documentário. E o maestro então o acompanhou até a estação. Chegando lá,
meu amigo estava apressado e não havia tempo para muitas despedidas, o maestro
apenas lhe entregou uma lembrança. Era pouco, ele reconhecia, mas tinha sido
preparado com o coração, ele disse, por ele e pelo menino. O pequeno pote de
plástico, meu amigo não abriu na hora, por respeito ao anfitrião. Despediram-se
com um abraço prolongado, de quem já se ama profundamente mas sabe que jamais
vai se reencontrar.
Depois que o trem se afastara um pouco da estação, onde
ainda podia enxergar o maestro acenando, meu amigo abriu o pote. E, nele, havia
uma maçã e um ovo.
Eram tempos difíceis na Rússia. Tempos em que uma maçã e um
ovo não valiam pouca coisa e, certamente, foi com algum sacrifício que o
maestro entregou esses alimentos ao meu amigo, quem sabe subtraindo-os até ao
próprio filho.
Isso. Um ovo e uma maçã. Esqueci de falar da maçã desde o
começo desta história. Mas não importa, porque uma maçã é também um ovo.
Imagino-os ali, dispostos no pote, um ao lado do outro.
E sei que, por eles, por causa deles, desse ovo branco e da
maçã vermelha, entregues por um maestro russo numa estação de trem ao meu amigo
brasileiro, o mundo ainda resiste e resistirá. Um ovo e uma maçã são o lastro
de resistência do mundo e quando tudo estiver despencando, quando me faltar o
ar e o amor, quando eu não puder dizer a você que ainda tenho algo a contar,
contarei do ovo, esse do qual nada mais posso dizer, porque outros já disseram
e, aliás, porque ele, sozinho, já diz tudo.
de Noemi Jaffe
Este conto foi retirado do livro:Não está mais aqui quem
falou
Nenhum comentário:
Postar um comentário