A poesia de Rilke tem
como objeto não a perfeição, mas o inacessível
Os versos do poeta tcheco Rainer Maria Rilke (1875-1926),
apesar do vigor, parecem, em geral, antigos e em desconexão com nosso tempo.
Continuam a ser lidos — para tomar as palavras do crítico José Paulo Paes —
como uma “luta com o anjo”. Seu contemporâneo, o romancista Robert Musil dizia
que Rilke era “um homem mal adaptado aos tempos atuais”. Musil — como quase
todos — o via como um prisioneiro do passado. Eu o vejo, ao contrário, como um
profeta do futuro.
Podia andar, hoje mesmo, pelas ruas de Manhattan, que ainda
assim o tempo lhe deveria algo. O tempo sim — com sua lentidão disfarçada de
agitação — vem a reboque dos poemas de Rilke. Essa impressão se torna mais
forte enquanto releio seus versos em “Rainer Maria Rilke (poemas)”, coletânea
traduzida e apresentada por José Paulo Paes (Companhia das Letras).
É preciso chegar ao avesso da letra. A palavra não passa de
uma cortina através da qual tentamos delinear a silhueta do real. Ler através:
é o que nos pede a poesia de Rilke, e não a leitura rigorosa — “ao pé da letra”
— feita pelos especialistas. Não ao pé, mas frente a frente: este é o desafio
que ele nos propõe.
Escreveu seus poemas escondido em castelos antigos.
Conservou a pose de aristocrata. Os bigodes nobres e o olhar perplexo parecem
um grito de espanto. Seria Rilke, nos sugere Paes, a última alma do Império
Austro-Húngaro. Lembra o crítico, ainda, que ele tinha uma confessa aversão “ao
mundo da velocidade, da máquina e da produção” e que desprezava os artefatos
modernos “vindos da América, coisas vazias, indiferentes”. Fala-se em Rilke e
se pensa, imediatamente, em desamparo, angústia, desprezo pelo novo. Pensa-se
em alguém retido nos mitos e na nostalgia. Tentamos envelhecer Rilke, envolvêlo
em um manto antigo. Mas, enquanto o leio, eu o encontro vigoroso e feroz, como
se — rapazote audacioso e cheio de si — circulasse por Manhattan com seus
cadernos de notas, disposto a ler o que se esconde atrás daquelas torres de
desperdício.
Rilke foi um cidadão do mundo. O próprio José Paulo Paes
constata: “Havia em Rilke uma espécie de compulsão deambulatória que não o
deixava esquentar lugar”. Eis o nosso contemporâneo. Sua metafísica é, talvez,
uma física do invisível. O “Senhor” a quem se dirige é, mais, o Enigma que o
futuro nos propõe. Rilke, leitor do futuro. Indisposto, sim, com seus tempos
aristocráticos. Enquanto parecia fugir para trás, dava um salto à frente. Ainda
hoje ele está à nossa frente.
O epitáfio que escolheu para seu túmulo sintetiza esse
projeto existencial: “Rosa, ó pura contradição”. Está,
mas não está. Pertence, mas não pertence. Não podemos
pisá-lo, como fazemos com um inseto que é sempre igual a si mesmo. Basta ler
seus poemas. Escreve: “A minha vida eu a vivo em círculos crescentes/ sobre as
coisas, alto no ar”. Nossa mente, rasa e cansada, logo evoca os anjos. Mas não
é em círculo que trafegam os aviões de caça, as sondas interplanetárias e os
satélites?
Rilke, com sua poesia, constata a existência de um Enigma
preso no coração do mundo. A ciência deseja perfurá-lo. As religiões querem
iluminá-lo. Rilke — como todo poeta — limita-se a dançar em torno dele. Como um
menino que risca a paisagem urbana com seu skate, ele (com palavras) faz
piruetas, gira, cambaleia. Cai — a cada verso , uma pequena queda —, mas se ergue de novo.
Beija o Enigma, e sabe que só isso nos resta a fazer. Mas
quantos têm a coragem de aceitar? “Giro às voltas de Deus”, ele diz, “e giro há
milênios, tantos...” Quem será, porém, esse Deus? Qual será essa pergunta que o
intriga e em que cujo lugar a palavra Deus aparece? Vê o antigo Deus monoteísta
como um velho solitário, que precisa de sua ajuda. “Vivo sempre à escuta. Dá-me
um sinal qualquer./ Estou bem perto de ti”, oferece-se. Sabe que seus sentidos
estão exilados desse Deus inacessível. Melhor dizendo: desse Enigma.
Rilke tem consciência de que a ideia de Deus é só um manto
com o qual envolvemos o indecifrável. Escreve ainda: “Obreiros somos — mestre,
aprendizes, serventes —/ e te construímos, ó grande nave altaneira”.
Construímos — sim, nós, homens, fazemos isso! — a grande
nave (grande pai) no colo de quem nos encolhemos. Mas o que fazemos, senão
proteger a nós mesmos?
Cada um de nós, diz Rilke, luta para escapar de si. Mas isso
é impossível, situação que ele define no verso atroz: “toda vida é vivida”.
Tudo oque temos é o que vivemos e nada mais. Ele mesmo se pergunta: “Quem a
vive? És tu, Deus, que vives a vida então?” Deus está no Silêncio, o poeta nos
sugere. Está na ausência. A poesia de Rilke tem como objeto não a perfeição,
mas o inacessível. Mas, em um ricochete, a pergunta lhe volta e o atravessa: o
inacessível está aqui mesmo.
Rilke fala, todo o tempo, de seu desejo de suportar a
sombra. Pois é assim nosso mundo: quanto mais ele se expande, quanto mais a
técnica se acelera, mais as perguntas (sombrias, enigmáticas) se acumulam. O
poeta é aquele que sai de si para, como em uma morte, retornar à natureza. Para
falar como Clarice: para retornar à Coisa. Diante do anjo de pedra de Chartes,
o poeta se interroga: “Que sabes, tu de pedra, de nosso ser?” A verdadeira
pergunta, porém, ainda é mais complicada: o que nós mesmos sabemos?
A poesia de Rilke nos empurra de volta às perguntas mais
essenciais. Em torno delas, dançamos. Está bem: como anjos, mas — como alerta
Drummond — um tanto tortos. A ideia de vida, em nossos dias, se assemelha à
cegueira, e talvez à morte. Diz Rilke: os vivos olham para fora, os mortos para
dentro. Como a pantera no Jardin des Plantes, em Paris, que às vezes ergue as
pupilas; mas não basta ver.
Rilke a enxerga presa em um círculo. Nele detida, “a cada
volta urde/ como que uma dança de força; no centro/ delas, uma vontade maior se
aturde”. É nesse centro que a vida lateja. Jamais o pegaremos. Por mais que
atravessemos com nossa ciência o coração da pantera, ele sempre escapará. Sim,
Rilke nos apresenta o insuportável. E o insuportável é o presente no qual,
apesar de tudo, devemos inventar a felicidade.
O Globo.02/06/2012
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