Por Ju
Blasina
Aninha não queria crescer.
Estava decidida e firme nesta decisão, já não era de hoje.
Todos que a conheciam, conheciam também seus planos, quase que simultaneamente.
Aninha definitivamente não era uma menina silenciosa. Era aquilo que os adultos
chamam de “tagarelas”— palavra divertida — pensava ela, sorrindo encantada cada
vez que a ouvia. E a ouvia muito!
Sua mãe era, a seu ver, algum tipo de super-heroína.
Daquelas que saem à noite para combater as forças do mal. E ultimamente as
forças do mal já não respeitavam mais nada — não tinham hora para roubar-lhe a
mãe: era noite, dia e até nos feriados — o telefone tocava e lá ia sua mãe,
salvar o mundo outra vez.
— Quantas vezes será que o mundo precisa ser salvo? —
pensava Ana, ao ver a mãe correndo pra cá, correndo pra lá.
Por ironia ou sabedoria do destino, quem lhe fazia companhia
na maior parte do tempo era a vovó: completamente surda! Não era sua avó de
verdade, mas a julgar pela idade e algo no seu cheiro de biscoitos, certamente
devia ser a avó de alguém — era sua “avó de aluguel”, mas tudo bem — Aninha não
se importava em cuidar de vovozinhas:
— Melhor do que ter que ficar de olho na moça do telefone¬ —
“moça do telefone” era como chamava sua antiga babá ¬— Eca, babás são para
bebês! — Aninha queria ser criança para sempre, mas não um bebê, “bebês fedem”.
Havia vantagens e desvantagens na companhia da vovó surda.
Vantagem: ela nunca interrompia os devaneios de Aninha e ainda fazia ótimos
biscoitos e coisas de lã. Desvantagem: ela não contava estórias e Aninha
adorava estórias. Como solução, começou a contar estórias para si mesma. No
início lia livros em voz alta, embora não conhecesse todas as palavras, afinal
tinha seis anos e queria ficar com nove para sempre, não com seis:
— Com seis não se pode andar em quase nada no Parquinho, é
um absurdo!
Para tudo ela tinha solução: Quando não entendia a palavra,
inventava uma nova ou um novo significado para aquele grupo de letras
desconhecido. Às vezes apenas lia os desenhos. Com o tempo, passou a inventar
novas estórias e desenhar seus próprios livros. Chamavam-se: “As fantásticas
estórias secretas de Aninha” — que de secretas só tinham o nome, pois ela
contava para todo mundo.
Infelizmente a vovó parecia não ouvir e a mamãe não prestar
muita atenção. A professora não lhe deixava contar em aula e os amiguinhos só
queriam fazer coisas de rua. Contava para as bonecas — seu público mais atento.
Aninha gostava de ser alegre, de suas sardas, suas
maria-chiquinhas e de fazer desenhos coloridos, mas nem sempre tinha vontade de
sorrir. Sabia que no mundo havia dois tipos de “gentes e coisas”: As “do bem” e
as “do mal”. Ela não era uma menina medrosa, só não gostava dos “do mal”,
afinal eram eles que davam tanto trabalho para sua mãe e provavelmente tinham
sido eles que roubaram os ouvidos da vovó.
Precisava fazer alguma coisa a respeito. Algo que só uma
criança poderia fazer para mudar o mundo e definitivamente não era crescer —
disso tinha certeza — viu muito bem o que aconteceu a sua prima, Silvinha,
quando resolveu crescer: Antes, era uma menina meiga e feliz, agora virou uma
tal de “Silvia Maria” que não tem tempo para abraços e ainda anda com meninos!
— Ah, adultos!
Existiam outras razões para que Aninha não quisesse crescer
— razões secretas que ela só revelava em suas estórias — e como até hoje
ninguém havia perguntado, ela não sabia explicar direito, só desenhar. Sentia
uma coisa estranha no peito toda vez que pensava nisso, então, fazia um desenho
e mostrava para a mãe. A mãe sempre dizia algo como “Que lindo, filha” e Aninha
não entendia bem o porquê. Achava que a mãe tinha um estranho gosto para
desenhos e saia resmungando:
— Adultos não entendem “nadica de nada” mesmo.
A mãe respondia: — Olha a língua! — e ela até tentava
obedecer, mas olhar a própria língua era uma tarefa difícil! Acabava guardando
o papel junto aos outros desenhos secretos e se emburrando pelo resto do dia.
Até que um dia surgiu a ideia. Uma ideia brilhante! Outra
delas, afinal, tinha muitas ideias brilhantes, mas esta parecia realmente
especial:
— O que é que só uma criança pode fazer para mudar o mundo?
Imaginar!
Precisava imaginar alguma coisa que combatesse as forças do
mal. Assim, poderia deixar sua mãe em casa e trazer os ouvidos da vovó de
volta. Se sua mãe ficasse em casa, poderia abraçá-la com bastante força e
assim, nunca mais precisaria crescer! Se não crescesse, a mamãe não viraria uma
vovó e a vovó não iria à parte alguma! Contariam estórias o dia todo e todos os
dias. Comeriam biscoitos e seriam felizes para sempre...
... Até mesmo no dia dos pais, quando os coleguinhas
entregavam os presentes feitos na escola, enquanto ela levava mais um daqueles
“presentes idiotas” para casa, aumentando a coleção sobre a estante, à espera
de um pai que nunca vinha...
Era isso: faria um pai imaginário! O mais perfeito dos pais,
que combatesse as forças do mal e ainda ouvisse suas estórias. Melhor que isso:
ele contaria novas e incríveis aventuras e nunca se esqueceria do seu próprio
dia.
E assim Aninha começou o mais lindo desenho que alguém já
havia criado. Um desenho feito de sonhos, esperanças e fantasia: um desenho
mágico!
Levou uma eternidade terminando o tal desenho, escolhendo as
cores certas, fazendo pássaros e flores ao redor e quando, enfim, terminou,
correu para mostrar a todo mundo, começando pela mãe:
— O desenho secreto de Aninha.
Pena que naquele dia sua mãe demorou tanto para chegar, que
ela acabou adormecendo no sofá a sua espera, agarrada ao desenho. Não viu a
chegada da mãe, mas se visse, não entenderia a sua reação: Ao ver o desenho que
a filha segurava, já amassado, junto ao peito, ela não disse “que lindo”. Não
dessa vez.
Pegou-o, sentou-se e olhou cada detalhe com a atenção que
nunca antes havia dado a nenhum dos inúmeros desenhos da filha — era mesmo um
desenho especial — lágrimas rolaram enquanto seus olhos percorriam cada traço
do “desenho secreto de Aninha”:
Ele trazia flores e pássaros e, como sempre, era muito colorido.
Trazia também, no centro, três bonecas de mãos dadas: uma menina de sardas e
maria-chiquinhas; uma maior, de pijamas, chinelos e longos cabelos soltos e uma
menor, encurvada, de óculos, embora sem orelhas. Sob elas havia plaquinhas
identificadoras dizendo, respectivamente: “aninha, mamãe e vovó” e sobre elas
voava um homem de rosto borrado. Ele apresentava vastos bigodes e capa.
Carregava um par de orelhas em uma das mãos tinha e um bolo de dinheiro na
outra. Na capa estava escrito em letras grandes e coloridas “meu superpai”.
A mãe a abraçou forte, acordando-a e naquele momento Aninha
soube: “o desenho funciona!”
Sentiu-se muito feliz nos braços da mãe, como se o tempo
parasse.
Agora, ela nunca mais precisaria crescer...
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