(Volmar Camargo Junior)
Seguindo a estrada na direção sul, depois de uma sequência
de sobes-e-desces ainda dentro do subúrbio, atravessamos os portões do primeiro
nível de suas muralhas. Diferente do centro da cidade, o bairro que circundava
a estrada parecia ainda não ter amanhecido, e foi um custo perceber alguma
coisa além dos muros altíssimos. Era como se a avenida percorresse o fundo de
um canal, e o bairro ficasse para além de suas margens. Não fosse pelas
pequenas portas de metal, ao longo de um passeio estreito, eu diria que por ali
só passavam carros. Assim, antes de chegar à zona rural, tudo o que vi da parte
mais pobre de Avennin foi uma rua espremida entre dois algos muros de
alvenaria. Seria lógico que eu tivesse perguntado algo a Platin, o motorista,
mas preferi ficar quieto. Concentrei-me na história de meu personagem
principal. E, sim, a ideia que eu fazia dele era a de uma entidade mitológica,
e isso certamente não era culpa minha.
Para o bem ou para o
mal, o Lobo Vermelho era tido como uma figura folclórica. Para seus detratores
e a grande maioria dos ativistas contrários à Confederação das Províncias, ele
era um monstro, um demônio, ou na melhor das hipóteses, uma marionete da
Imperatriz. Para seus admiradores, era um herói lendário, capaz de proezas
bélicas acima da capacidade humana, dono de uma coleção inigualável de façanhas
e o mais importante dos humanos depois dos primeiros filhos de Adanno. Para
aqueles que permanecem céticos, e que têm algum interesse nos fatos como eles
realmente aconteceram – como eu – Petro Velasturvo fora um militar competente,
um homem dotado de grande inteligência e poucos escrúpulos. E eu sei que posso
escrever isso assim, sem nenhum medo de represálias, porque estas não são as
minhas palavras, mas as dele.
Eu precisava de um
foco para minha entrevista. A história dele era realmente muito intensa, e
havia demasiados fatos para tão pouco tempo. Fiquei grato por ter um motorista
guiando – ainda que eu soubesse conduzir um veículo daqueles, jamais me
arriscaria a fazê-lo dentro de uma neblina tão densa. Além do mais, não me
distraí com a rica paisagem rural de Avvena, pelo fato de parecer que o carro
estava todo envolto em lençóis brancos e molhados. Em um momento, tive a nítida
impressão de que Platin estava apenas mantendo o carro em movimento, deixando
que a máquina sozinha seguisse pelo caminho que conhecia. Saquei o bloco e a
caneta do bolso do casaco. Para retomar o fio de raciocínio, que perdera assim
que saí do quarto do hotel, tentei lembrar da primeira façanha que tinha ouvido
a respeito do General.
Meu pai era
aficcionado por objetos históricos, um pesquisador entusiasta, profundamente
avesso à academia e, hoje posso admitir, à Igreja. Em uma sala construída em
nossa casa, especialmente para isso, meu pai guardava sua coleção. Não era como
o museu da Universidade do Farol Púrpura, mas sem dúvida, era um dos maiores
acervos particulares da Capital. Eu, bem como os poucos amigos que tive na
infância, tínhamos uma simpatia enorme pelos artefatos de guerra, os uniformes
dos soldados do império, e, principalmente, as armas. Havia, dentre todas
aquelas peças às quais não podíamos fazer nada além de olhar, uma espada; um
sabre para ser mais exato. No pedestal onde ela ficava, havia a reprodução de
um quadro da época, que retratava um oficial do Exército a frente de uma
quantidade incontável de soldados em marcha, e esse oficial empunhava,
apontando para o alto, aquele mesmíssimo sabre. Meu pai contava que aquela não
era uma peça original, mas era uma cópia fiel da Guardiã do Mar, e que seu
dono, o homem que a empunhava, era o Lobo Vermelho, o maior herói da guerra
contra os invasores delfins. Então, meu pai contava todo tipo de história sobre
ele, e que eu e meus amigos costumávamos reproduzir em nossas brincadeiras,
amarrando toalhas e lençóis às costas como capas, e cada um com uma “Guardiã do
Mar” feita das pernas de uma cadeira velha. Fazíamos um sorteio, todas as
tardes, para decidir quem seria o Lobo Vermelho, depois, quem seria Unmonu, seu
companheiro de aventuras, e, por fim, quem seriam os adversários: príncipes
delfins, lordes adormecidos, bruxos linces, guerreiros bárbaros. E eu recordo
de sempre gostar mais de interpretar os vilões, enquanto meus amigos se
estapeavam para disputar quem seriam os heróis. Ao final da brincadeira era
sempre eu, ou melhor, o inimigo do Mar de Luna, quem tinha a pior sorte, mas
não antes de ter deixado muitos soldados caídos, ter derrubado o “Bovineu
Invencível” e decepado uma das pernas do Lobo Vermelho – e eu nunca tinha certeza
se era a direita ou a esquerda.
Havia dezenas de
versões explicando a razão de o General Velasturvo usar uma perna mecânica, e a
maior parte delas era, no mínimo, fantasiosa. A minha preferida era esta:
Numa tarde de
inverno, Petro e seus colegas praticavam luta no pátio da escola, quando foram
surpreendidos por um lobo selvagem. Eles ainda não o haviam percebido porque
era um lobo branco, e se esgueirou na neve até chegar perto o suficiente para
atacar de surpresa. Os outros meninos fugiram apavorados, mas Petro não teve a
mesma sorte: o lobo saltou em sua direção e, para impedir que fugisse,
abocanhou sua perna e o derrubou. O menino teve o sangue frio de fingir-se de
morto. Quando o predador soltou sua perna para conferir se a presa estava realmente
abatida, Petro reagiu. Com presteza, enfiou as duas mãos no focinho do animal,
segurando suas mandíbulas fechadas e avançou com os dentes contra o pescoço
peludo do lobo. A fúria de Petro era tão grande que o couro do predador
rasgou-se como um trapo velho, e músculos e veias iam-se rompendo à medida que
o menino mordia. Só depois disso é que o professor de luta veio em seu auxílio,
mas aí, o lobo, que era branco, já estava morto, todo tingido de vermelho. A
perna do menino Petro teve de ser amputada. Todos, a partir daquele dia,
passaram a temê-lo e respeitá-lo. Como um pedido de desculpas, a esposa do
professor de luta fez para o menino um casaco feito da pele do lobo, que nunca
mais pode ser alvejado, manchado de sangue para sempre.
Eu ri sozinho no banco de trás do carro. Como aquelas
historietas eram marcantes para as crianças! Era bem provável que, se eu
perguntasse para qualquer um dos meus amigos de infância, eles teriam lembrado
desta, “O menino e o lobo branco”, talvez com as mesmas palavras. Percebendo
que eu ria – devo até ter falado sozinho, em voz alta – Platin olhou-me pelo
espelho, devolvendo-me o sorriso.
— Já conhece o General, Senhor Plumbeano? Digo, já o viu
alguma vez?
— Pode me chamar apenas Guinen, Platin. Só vi o General em
fotografias. Por que a pergunta?
— Porque a última vez que ele foi visto em público, ele
estava bem diferente — respondeu, enfático.
— Diferente como? — eu quis saber.
— Não precisa se preocupar. Você já vai ver. Chegamos. Seja
bem-vindo à Mansão do General.
Fonte : Revista Samizdat
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