José Guilherme Vereza
Afrânio resolveu escrever um livro. Achava que estava na
hora. Só não decidiu fazer isso antes, porque era perseguido pela mais absoluta
das certezas de que nenhum editor iria dar importância ao seu texto, nenhum
livreiro iria colocar seu livro na vitrine, a noite de autógrafos seria um
fiasco, nenhum leitor iria comprar seus escritos. E todos os críticos iriam
condená-lo a um vexame público e notório.
Mas dessa vez estava firme.
Ouviu dizer que para um escritor bastava um cotoco de lápis
e um papel de pão. O assunto viria no decorrer do pensar e as histórias, as
personagens, as situações brotariam por si só. Bastava apenas um leve empurrãozinho
do tal cotoco.
Foi assim mesmo que se sentou à mesa do jantar.
Muito bem, vamos lá.
Era uma vez.
Ok. Era uma vez o quê?
Era uma vez... era uma vez o quê, onde, quando, como e por
quê?
Afrânio franziu as sobrancelhas diante daquele monstruoso
papel em branco.
Tentou mais uma vez e não saiu nada.
Não era uma vez.
Procurou outro caminho.
Mordidas de lábios, ar de quem tinha caído nas armadilhas da
inspiração.
Gabriel Garcia Márquez também deve ter lá seus dias
absolutamente inócuos.
Inócuos. Bela palavra.
Que tal começar assim?
Inócuos momentos em que...
Toca o telefone.
- Alô.
- Afrânio, sou eu.
- Oi, que voz é essa?
- Uma notícia chata: tio Miguel morreu.
- O quê?
- O tio Miguel mesmo. Enfarte fulminante, agora de manhã,
fazendo a barba. Quando tia Magali chegou só deu tempo de tirar o sabão do
rosto.
- Peraí. Deixa eu me refazer.
- Tudo bem, depois você me liga.
- Não, não, a gente tem que enfrentar. Mas eu não vou a
enterros.
- Nem eu. Dá riso nervoso ver tanta gente chorando...
- E a Candinha, já sabe?
- Iam avisar. Não sei se avisaram. Ela está no Tibet.
- Sabe de uma coisa, não vou ao enterro não. Tio Miguel era
um chato, tia Magali também e a Candinha sempre me irritou com essa mania de
meditação.
- Acho que não vou também não.
- Passo um telegrama e tudo bem.
- Vou fazer a mesma coisa. Tchau.
Mal desligou o telefone, Afrânio teclou o número do
telegrama fonado. Atendeu uma voz de gralha.
- Telegrama fonado, bom dia.
- Bom dia, eu queria passar um telegrama.
- Seu nome e número do seu telefone.
- Afrânio Rosa Batista, 2254-0969.
- Nome e endereço do destinatário.
- Magali Batista Santana. Rua Carlos Pedrosa, 223, se não me
engano.
- Se o senhor se engana, o telegrama não chega.
- Claro, um momento... estou conferindo no meu caderninho...
cá está. O número correto é 476. Passei raspando.
- Texto do telegrama.
- Texto? Ah, sim, a mensagem...
Meu Deus, o branco de novo.
- Vamos lá: QUERIDA TIA MAGALI RECEBA DE SEU DILETO SOBRINHO
AFRÂNIO AS MAIS SINCERAS CONDOLÊNCIAS PELA SÚBITA PERDA DE AMADO CÔNJUGE E
ESTIMADO TIO. UM AFETUOSO ABRAÇO DE DOR E CONSTERNAÇÃO.
- O senhor não acha que está meio rococó?
Afrânio gelou. Ficou sem graça.
- A senhora acha, é...?
- Tá meio rebuscado. Não dá pra ser mais direto?
- Acho que sim, vamos lá: QUERIDA TIA MAGALI, RECEBA MINHAS
CONDOLÊNCIAS PERDA ESTIMADO TIO.
Afrânio ouviu uma risadinha do outro lado da linha.
Não gostou.
- Escuta aqui: a senhora, por acaso, está rindo de quê?
- Nada, nada não senhor...
- Mais risinhos.
- A senhora está rindo do meu telegrama?
- Desculpe seu Afrânio, condolências é muito antigo.
- A senhora acha, é...?
- Desculpe seu Afrânio, o senhor escreve como quiser...
- Não, não, sua opinião é importante. A senhora deve estar
acostumada com muitos telegramas de falecimento. É melhor dizer pêsames mesmo.
- O senhor é quem manda. Então ficamos assim: QUERIDA TIA
MAGALI RECEBA MEUS PÊSAMOS PERDA ESTIMADO TIO.
- Sei não, sei não... tá meio falso.
- Já que o senhor tocou no assunto, sabe que eu acho a mesma
coisa?
- Tá falso, é?
- Pouquinho.
- Então tira o estimado. Bota querido.
- Agora tá redondinho. QUERIDA TIA MAGALI RECEBA MEUS
PÊSAMES PERDA QUERIDO TIO.
- Seu Afrânio, querida e querido na mesma frase?
- É. Na mesma frase, por quê?
Afrânio começou a perder estribeiras.
- Nada não, seu Afrânio, eu só acho que não fica bonito.
- Tem certeza?
- Bem, seu Afrânio, é a minha opinião sincera, mas a tia é
sua, o defunto é seu, o telegrama é seu.
- Tem razão. Tira querido tio e bota tio Miguel.
- Muito bem. QUERIDA TIA MAGALI. RECEBA MEUS PÊSAMES PERDA
TIO MIGUEL. Ok?
- OK... ok... OK nada! Você acabou fazendo a mensagem para
mim.
- Desculpe, Seu Afrânio... mas seu texto não estava bom.
- Quer dizer que temos uma crítica literária fazendo bico de
telefonista? Ora, vê se se enxerga, minha filha...
- Minha filha não senhor! Meu nome é Kátia, telefonista com
muito orgulho.
- Então, Kátia, enfia esse telegrama...
- Além de escrever mal, é grosso. Só para encerrar, o
telegrama não está autorizado, certo?
- Certo, cancela tudo. O que está autorizado, Kátia, já
disse e repito: é esse telegrama enfiado no seu... você sabe aonde, minha
filha.
Afrânio desligou o telefone. Decidiu encarar o velório.
****
Pegou o primeiro táxi.
- Bom dia, o senhor poderia me levar às capelas do Cemitério
São João Batista, por obséquio?
- O motorista deu uma risadinha.
- O senhor está rindo do quê?
- Por obséquio, é? Não é melhor por Botafogo?
E Afrânio mais não disse. Só pensou: outra Kátia na minha
vida.
****
A capela estava vazia. Ninguém. Nem a viúva. Entre flores
mal cheirosas, sob um manto de filó, Tio Miguel era apenas um nariz cor de cera
com algodão em cada narina. Afrânio ficou à distância, observando como os
homens depois que viram defuntos perdem a dignidade. São apenas narizes
apontando para o teto, alheios a seus arredores. Logo Tio Miguel. Tão
extrovertido e mandão. Metido a dar ordens em casa, na cozinha, nas filas de
cinema, nas reuniões familiares, nas casernas, onde passou mais da metade da
sua vida. Agora estava ali sem ninguém para mandar ou chatear. Só esperando a
hora de uma outra pessoa, alheia a sua vontade, mandar fechar o caixão e sair
carregado a uma gaveta qualquer.
De repente, um ruído assustador. Irrompe à capela Tia
Magali. Toda de preto, amparada por uma amiga, proferindo urros de desespero,
gritando bem alto como se o marido gelado pudesse se comover.
- Miguinho, Miguinho! Por que você fez isso comigo? Por que
foi jogar peteca na praia ontem à noite? Eu sabia que ia te fazer mal de
manhã...
Ao descobrir Afrânio encostado na parede mais distante do
caixão, Tia Magali se joga nos seus braços. Aperta-lhe tórax, peito e pescoço.
Como uma sucuri.
- Alfredo, que bom que você veio... vem cá ver o rosto
sereno do Miguinho.
- Afrânio, tia Magali, Afrânio...
- Afraninho, claro, Afraninho de Marieta.
- Antonieta, Tia Magali.
- Vem cá, meu sobrinho querido, vamos nos despedir juntos do
seu tio Miguel.
- Tia Magali, deixa o tio Miguel dormindo seu sono eterno,
tranqüilo. Prefiro ficar aqui mesmo.
Tia Magali em prantos.
- Afraninho, você sempre carinhoso...
- Tia Magali, em meu nome e em nome da minha irmã...
- Luzia...
- Não, Tia Magali. Lavínia. La-ví-nia.
- Lavininha, claro. Deve estar tão crescida.
- 42 anos, Tia Magali.
Tia Magali vira-se para o centro das desatenções da capela e
recomeça a gritaria.
- Miguinho, Miguinho, meu companheiro, meu companheiro que
se foi. Meu Deus, o que será de mim?
Afrânio espera passar o transe. Tão logo a tia se recupera,
volta à carga e, enfim, consegue falar.
- Querida Tia Magali, receba do seu dileto sobrinho Afrânio
e da sua não menos dileta sobrinha Lavínia as mais sinceras condolências pela
súbita perda do amado cônjuge e estimado tio. Dá me cá um afetuoso abraço de
dor e consternação.
Tia Magali olha nos olhos de Afrânio. Tenta se controlar,
esquece a viuvez. E cai na gargalhada.
- Tá rindo de quê, Tia Magali?
- Desculpe, mas esse seu discurso foi muito rococó.
E tome de ataque de riso. Tia Magali e a amiga que a
amparava, olham às gargalhadas para a cara do Afrânio. Circunspecto, contido,
sobrancelhas franzidas. Outras pessoas começam a chegar. Os amigos da peteca,
os coronéis reformados, as balzacas bronzeadas do Posto Seis. A tia retoma os
prantos. Afrânio sai de fininho.
****
Na saída do cemitério. É abordado por um florista.
- Parente ou amigo?
- Tio.
- Então, o melhor é uma coroa de cravos.
- Pensando bem, é distinto.
- Sim, claro, uma bem frondosa, para ficar num cavalete ao
lado do morto. Todo mundo olha para a coroa antes de olhar o falecido. Aliás,
muita gente evita olhar o falecido. É um macete. O parente finge que está
olhando o defunto, mas é atraído pela beleza da coroa.
- Bem pensado.
- Então, só falta os dizeres.
- Dizeres?
- A mensagem.
- Eu sei que dizeres e mensagem são a mesma coisa, não
precisa explicar. Esse é que é o problema.
Afrânio suou frio de novo.
- Uma frase curta e direta, meu amigo.
- Um momento. Estou pensando. Não faz pressão, por favor.
Enxugou a testa e mandou:
- Anote aí: VAI COM DEUS, TIO MIGUEL.
- O florista prendeu o riso. Não conseguiu.
- Está rindo do quê?
- Desculpe, amigo, parece que o senhor...
Mais risos incontidos.
- ... parece que o senhor estava querendo se livrar do tio.
Afrânio se enfureceu.
- Além de florista chato é palpiteiro...
- Desculpe, mas a mensagem pode ser mal interpretada. Parece
deboche.
- Então, vai com Deus o senhor mesmo. E enfia essa coroa
...ó!
E partiu raivoso em direção a um táxi. Em momentos de
cólera, Afrânio também só sabia mandar alguém enfiar alguma coisa no... lá
mesmo. Não variava nunca.
****
No táxi de volta. Afrânio contou até dez. Entrou num clima
de paz interior.
- Boa tarde, por favor leve-me à Francisco Otaviano. Sugiro
irmos pela praia. É mais gratificante ver o azul do céu tocando o azul do mar,
que por sua vez, beija delicadamente as alvas areias com suas espumas
peroladas.
- Não entendi nada. É pra pegá a Atrântica, né moço?
- Isso mesmo. Toca esse táxi e vê se não abre a boca. Tive
uma manhã repleta de arrufos.
- O quê?
O taxista começou a rir.
- Está rindo de que?
- Nada não senhor. É que o senhor fala bonito...
- Você acha mesmo...?
- Só que não entendo nada.
Afrânio olhou fixo para o horizonte. Não mais falou. Não
mais ouviu. Ao parar na Francisco Otaviano, pagou o taxista e disse:
- Muito agradecido.
O taxista recolheu o dinheiro e comentou:
- Taí, bonito dizer “muito agradecido”. Outro dia uma velha
me disse a mesma coisa.
Dessa vez, Afrânio desistiu de xingar o motorista.
****
Ao chegar em casa, desistiu de muito mais. Olhou o cotoco de
lápis ainda sobre o papel em branco. Lembrou da Kátia, da Tia Magali, do
florista, do taxista da ida, do taxista da volta. Rasgou o papel em mil
pedacinhos e jogou pela janela. Só não mandou ele mesmo enfiar o cotoco em si
próprio. Não era coisa de sua preferência.
Fonte : Revista Samizdat
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