sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Mordendo a própria língua‏



Escrever em português brasileiro tem algo de exílio

O que você diria se lhe pedissem para fazer uma “declaração de amor” à língua portuguesa?
José Carlos Vasconcelos, que edita o indispensável Jornal de Letras, de Portugal, resolveu fazer uma enquete a partir desse tema. Pediu a um punhado de escritores de Portugal, Brasil e África para escreverem algo a esse respeito. Fiquei meio sem saber o que lhe dizer, a ele e a mim. Repetir o que Bilac e outros já disseram? Cair um adjetivoso discurso? Deixei o tempo passar, e ele, amigavelmente, insistiu. Tive, então, que pensar mais fundamente na minha relação pessoal com nossa língua mãe. E escrevi o seguinte, que o Jornal das Letras, na edição de 17 de abril, publicou:
Mordendo a própria língua
“Mãe/madrasta, isto sim, é essa língua que me mal-criou.
Mãe: porque para usar uma semântica apropriada, foi no seu “seio” que me amamentei; no seu colo/braços/casa, que cresci. Deveria amá-la. E a amo, com amor e ódio. Exatamente como Melanie Klein queria.
Por que esse rancor?
Porque ela me mantém preso em seus domínios. Olho pela janela dessa prisão linguística: felizes são os escritores de língua inglesa, francesa e espanhola.
Sinto que falo um dialeto. E nisso reside o exílio.
Sim, somos 200 milhões – só no Brasil. E o exílio continua.
Brasil – Sexta economia do mundo – vai mudar esse quadro? 
Não estou mais na idade de reacreditar no Quinto Império à moda de Vieira.
O Brasil – provinciano – nunca pensou numa política da língua e da literatura à altura de sua dimensão.
Meu pai dava aulas de esperanto.
Temo que vou ter que aprender o mandarim.”
Das dezenas de escritores que escreveram sobre este tema para o Jornal de Letras, senti mais intimidade com Luis Carlos Patraquim, de Moçambique, que disse (de maneira sestrosa) que, em termos linguísticos, ele era na verdade um “filho da mãe”. Então, não sou eu que vê a língua como mãe boa e mãe má.
Minha visão decorre não apenas da vivência como escritor, que suga famintamente o seio materno. Qualquer escritor que diz que é um paraíso estar no regaço da língua pátria está ludibriando. Escrever é lutar com e contra a língua. E, enfim, paradoxalmente, nesse leite, deleitar-se. Aliás, dizem os psicanalistas que a criança enquanto mama morde. Então sigo mordendo a própria língua.
Pois sensação das mais estranhas é quando vamos para o exterior e outros falares e culturas nos atordoam. Mais estranho ainda quando me sabem falando uma língua que para eles soa exótica. Não adianta muito você tentar dizer que quase 300 milhões de pessoas falam o português. Perto do espanhol somos primos pobres.
Nossos autores exemplares, tipo Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond e Nelson Rodrigues, parecem aqueles atletas extemporâneos que conseguem solitários recordes nas Olimpíadas.
Para os escritores que usam as línguas mais conhecidas e oficiais, tudo é mais fácil. Qualquer autor médio e até medíocre naquelas línguas é imediatamene traduzido e trazido para cá, e saudado pela imprensa tupiniquim. Escrever em português brasileiro tem algo de exílio. Exílio em relação a outras culturas e países e exílio em relação ao próprio povo brasileiro. Nem preciso repetir as estatísticas sobre a leitura, o livro e as bibliotecas.
É este o patético paradoxo: quem escreve quer se expressar, quer se comunicar. E, se literatura tem algo de segredo, escrever em português, sobre estar exilado, é passar uma mensagem que poucos, pouquíssimos, podem decodificar.
E outro paradoxo me surpreende: são esses poucos, pouquíssimos, que nos incitam a continuar. O leitor dá sentido ao texto e pode sempre nos surpreender.


AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA 

  www.affonsoromano.com.br

Estado de Minas.20/05/2012

               

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