1
a literatura cobra de você algo que pode ser assustador: a
solidão. sem solidão não há produção literária. ninguém se transforma num
Cristovão Tezza da noite pro dia. parece-me que uma das maiores dificuldades
que o escritor pode enfrentar é a de dar consequência, continuidade a sua obra.
2
a literatura, embora não tenha me trazido dinheiro ao bolso,
deu-me algo que posso chamar de angustiada felicidade, e calos na mão. na
angustia só há perguntas sem respostas. na felicidade, por estarmos plenos,
perguntas não há. quando um sofrimento de difícil explicação surge e com ele
perturbações sem limites, posso optar em escrever ou não. não sei se escrever é
o principal modo de se especular sobre a existência humana, mas é um deles. ou
posso esperar apenas, pacientemente esperar. a espera talvez não. a reflexão,
no entanto, o estado ponderado, pode que produza sabedoria. se só espera e não
põe mãos à obra, o sábio não escreve nada. o que adianta ser sábio sem ação? na
literatura, pra quem precisa escrever, nada. fique claro que estou me referindo
à literatura, já que é possível haver sábios por aí que, inclusive, pode que
sejam analfabetos. agora, escrever, que é uma das mais íntimas pesquisas
humanas... escrever, que é como entrar num laboratório afetivo e recombinar uma
série de poções explosivas... bem, escrever, apesar de tudo, pouco responde, e
assim pode ou não produzir sábios. muita vez produz apenas escritores, e quem
sabe isso bastasse. e aqui vai o paradoxo: será possível um escritor sem
sabedoria? o que posso afirmar? comigo funciona assim, por mais que escave,
vasculhe o que não compreendo, por mais que confeccione um mundo próprio,
sempre rumo na direção do desconhecido.
3
se em meus textos abro algo da minha intimidade é porque (é
óbvio assim) não estou salvo. então faço uma pausa ao escrever isto e coloco as
mãos no rosto. lambo a pele grossa da palma e, de certo modo, é uma ferida o
que a língua lambe. imolo a pele que descreve aquilo que já não sou mais.
escrevo porque embora estejamos acostumados a chorar pelos olhos, as mãos
também choram, mesmo de felicidade.
4
estou sentado aqui por horas a fio. continuo escrevendo já
que o fogo não acabou de comer minhas mãos. sim, escrevo à mão... com as duas.
e mais com as mãos do que com o coração. e mais com ele do que com o cérebro. o
fogo é assim, não escolhe, come o máximo que consegue, mesmo o que não
necessita. o fogo não distingue se isso ou aquilo vale ou não ser comido. nada
pesa em seu estômago azul. a escuridão mastigada é sua melhor amiga, é ela quem
o ajuda a modelar as chamas nervosas. a uma película que escureceu dizemos se
tratar de um filme queimado. películas que enquanto registram imagens as vão
devorando, eis o que estou produzindo aqui?
5
sempre precisei passar longos tempos sozinho, protegendo-me
um pouco do mundo. a biblioteca da escola era um ótimo lugar pra isso. hoje,
porém, gosto de presenciar a balburdia da cidade. a urbe é fundamental pra
composição e a voz interna de meus textos. cafés, bares, ruas, lugares são
salas de estudo. gosto de escrever a mão, então não tenho problema em trabalhar
fora de casa. procuro me manter num estado de latência criativa. e é claro que
em algum momento preciso me trancar para burilar as anotações, alçá-las a um
nível mais complexo da experiência artística. as ruas podem fazer com que você
perca o foco, a concentração. o desequilíbrio, as oscilações de humor, os
acontecimentos inesperados só serão produtivos se você tiver um canto calmo e
silencioso pra retornar quando se vir farto, esgotado.
6
os cafés são bons lugares pra escritores. às vezes roubo
frases da mesa ao lado. trabalho valorizando uma dor de cabeça cujo motivo não
sei qual é e que me ajuda a pensar de um modo torto. ideias pululam de vez em
quando, noutras ocasiões elas somem por longos períodos. mas sou apegado mesmo
à ação. sento e escrevo, pratico. assim desenvolvo as ideias. agir me faz
pensar.
7
duvido de quem diz “não escrevo porque não tenho a dizer,
quando tiver, escreverei”. acontece que se você não escreve, não vai ficar
sabendo se tem mesmo algo a dizer ou não. permanecer no universo da idealização
é estar pré-morto. é preciso enfrentar-se. responder ao medo, com ênfase, como
ensina Carlos Drummond ao dizer, se bem me recordo, que tristes são as coisas
feitas sem ênfase.
8
daí vai que o corpo é o começo do meu texto. meu trabalho é
absolutamente artesanal. os livros só chegam bem depois. não escolho o livro
antes de iniciar anotações num caderninho. nunca sei o que será. não posso
dizer que não planejo, pois apesar de tudo, a literatura é uma atividade
intelectual. então há esse diálogo entre instinto e racionalidade. há muita
racionalidade, é inegável, porque a própria capacidade técnica de se escrever
vem de uma espécie de adestramento (a palavra não é exata) vocabular, o aprendizado
desta língua, que tem entre seus fundamentos a alfabetização, o ensino da norma
culta, pra só depois o escritor ir se permitindo a desconstrução, pra só depois
ele ir encontrando sua própria voz. tal instrução liberta, talvez seja
inescapável e, até, altamente desejável. as técnicas devem ser dominadas pra
que as esqueçamos depois, permitindo que o inconsciente aflore, não que ele não
faça isso desde sempre, queiramos ou não. mas o domínio de seu ofício é um bom
companheiro do escritor, que jamais o dominará por completo. “lutar com as
palavras é a luta mais vã”, mais uma vez Drummond. mesmo assim, viver nesse
lugar de tensão entre esses dois pólos (instinto e técnica) possibilita que o
desconhecido que habita em nós venha ser parte do que produzimos.
9
há vezes em que traço objetivamente a composição de uma
série de textos. defino o que quero como eu fosse um projetista. mas logo que
inicio o trabalho, imediatamente me cobro a liberdade. então endereço os
textos, faço isso, crio para alguém, para o mundo, por amor, por vingança, por
política, por ternura, por revolta, por desespero, por orgulho, não importa.
vale que assim eu me implico. não tenho medo de me machucar quando estou
criando. depois desse ímpeto inicial, sou capaz de trabalhar o mesmo parágrafo
durante a semana inteira promovendo inúmeras variações de sua estrutura,
invertendo o sentido, retirando de uma frase todas as palavras que a natureza
não exige, tal a dica que li recentemente num belo livro de Gonçalo M. Tavares.
tudo isso me esgota, claro. porém, me importa ter forças pra podar arestas – a
poda fortalece os galhos – já que pra mim é muitíssimo trabalhoso deixar de ser
prolixo.
10
o escritor é tão falível quanto qualquer outro ser humano. e
é nesse ponto que quanto mais me enfrento, mais a criação se impõe – eu me
nego, me inverto. só assim posso ser tão sincero quanto preciso. só assim quem
ler o que escrevi com tal verdade poderá duvidar de que aquilo não é ficção.
desejo que os leitores esqueçam que estão lendo algo ficcional. o que lêem é a
vida mesma. é assim que sinto quando me deparo com a obra de um grande autor.
não estou querendo me comparar, mas acredito que os artistas não podem querer
pouco. não querer pouco é muito o nosso ofício. é por causa dessa tensão entre
a verdade do escritor e sua criação formal que a literatura se dá em estado de
revelação. a epifania agora tem de ser do leitor. ele é quem, em última
instância (ainda assim um instância de passagem), possibilita a existência das
personagens (se houverem, por exemplo), os deslocamentos, as evoluções, as
trajetórias todas, enfim, da linguagem.
Luiz Felipe Leprevost
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