Primeira carta:
“…acordei por volta das 3 e 15 da manhã… sim, era isso…
olhei para o relógio da mesinha de cabeceira e marcava 3 e 15… é um relógio
daqueles de ponteiros luminosos… Olhei para o tecto sem saber porque razão
acordara, mas lembro-me que talvez tenha ouvido a porta de um carro, lá fora, a
bater ao fechar-se… olhei de seguida para os buraquinhos das frinchas da
persiana da janela e divisei a luz da noite… a rua tem candeeiros e vê-se essa luz
ainda que difusa… Senti o corpo morno e passei a minha mão pelos meus seios
acariciando os bicos do peito… Deixei a minha mão descer pela barriga até
sentir o meu sexo e desejei ter-te ali comigo… a minha mão acariciou os pelos
púbicos e lentamente introduzi um dedo na minha vagina… Deixei-me estar assim
durante uns momentos e lembrei-me de ti… lembrei-me de todos os momentos que te
tive e que a meu lado te senti… Sabes, quando me abraçavas e me sentia
pequenina, dessa forma mágica que tens de me abraçar… quando me beijavas e me
sentia desfalecer ao sentir a humidade dos teus lábios… sabes, não sabes?… Sei
que sim… Lembras-te daquele dia em que nos encontramos pela primeira vez?… O
dia em que nos olhamos e os nossos corações bateram?… Aquele dia mágico que
marcou o resto dos outros nossos dias?… Acordei sem saber por razão acordava
mas penso que a saudade marca o sonho e, se calhar, estaria a sonhar contigo…
Lembras-te daquele dia em que estavas sentado no sofá da nossa sala e me
ajoelhei a teus pés?… Lembras-te de termos feito amor na mesa da cozinha?…
Lembras-te daquelas férias que tivemos na montanha e lembras-te de certeza de
termos feito amor deitados naquele chão branco de neve… Lembras-te de, no fim,
teres lavado o teu sexo com a fria neve que estava ao nosso lado?… Lembras-te
como ele ficou pequenino por causa do frio?… Lembras-te como nos rimos às
gargalhadas?… E daquele dia que fizemos amor no carro?… A meio deste um grito
porque te aleijaste numa perna no travão de mão?… Sim, porque não te haverias
de lembrar, se eu me lembro tão bem… e daquela outra vez na praia, escondidos
numa duna, quando eu fiquei cheia de areia… Acordei às 3 e 15 e já são 3 e 40!…
25 Minutos a pensar nisto… sinto-te em mim, meu amor e não estás aqui presente…
mas sinto-te… sei que sou eu que me acaricio mas é como se fosses tu… sinto
como se fossem as tuas mãos, o teu corpo quente, o teu hálito a maçã que
costumavas comer a toda a hora… eras doido por maçãs… nunca soube porquê… nunca
considerei isso importante mas era importante para ti, não era?… Os teus beijos
quentes e húmidos, num saltitar constante entre os meus mamilos e a minha boca…
Como beijavas tão bem… mas sei que mesmo que beijasses mal, para mim era sempre
bom, doce, quente, por vezes abrasador… como eu costumava dizer que acendias em
mim o fogo da lareira sempre acesa… eu sei que fui sempre “louca” por ti mas tu
sempre gostaste de mim assim… eu sei que sim… eu sentia que tu gostavas de mim
assim… tu também eras louco, sabias?… Sim, a tua loucura me incendiava e quando
nos rebolávamos na cama parecia que tudo se partia e a cama chiava… como nós
nos riamos disso… coisas giras e loucas, não eram?… Meu bem, como me lembro de
ti assim?… Porque acordei eu a pensar em ti?… Porque é que ainda penso em ti ou
porque é que estou sempre a pensar em ti?… Sabes que não há um único momento da
minha vida que não pense em ti?… Eu sei, eu sei que dizem que estou louca… mas
eles não sabem que já não estou louca, já estive, sim já estive louca por ti…
agora já não estou… estou feliz, triste mas feliz e tu sabes porquê, não
sabes?… Sabes, eu sei que sabes… Já são 4 da manhã… Acho que vou dormir um
pouco… Penso que vou sonhar contigo e depois… depois voltar a acordar para
pensar mais uma vez nos nossos dias felizes, nos dias que passamos juntos,
naqueles dias em que a loucura era permitida e nada mais interessava… até ao
dia em que te foste… Nunca soube porquê, porque me deixaste, porque não me
quiseste mais… porquê, meu amor?… O sono está a regressar… sabes, deram-me mais
uma injecção e vou ter de dormir, sim?… Eu vou dormir mais um pouco, meu amor…
mais um pouco… mais um pouco… como ainda te amo… sim, serei sempre a tua Maria,
meu amor… tua para sempre… para sempre…”
a tua Maria
Segunda carta:
“…continuo a acordar todas as noites… não há forma de o
evitar… a tua ausência incendeia-me os sentidos… a tua falta provoca-me esta
ânsia de te sentir presente… sofro neste sofrimento sofrido de dor e solidão…
já não sei quem sou… também não interessa… lembras-te da última carta que te
escrevi… sim, daquela em que acordei às 3 e 15 da manhã?… Essa…sim, quando
senti a tua falta e me acariciei como se fosses tu que o estivesses a fazer… oh
meu amor, como sinto a tua falta!… Não, não sei que horas são… até o relógio me
tiraram deste sepulcro… olho pelas frinchas da janela e vejo luar… não sei a
quantos estamos… mas isso tem importância?… Que valor terá o dia em que me
encontro se não te encontro num só momento?… Desespero neste tormento de sentir
a tua falta e não te sentir a presença… Como poderia sentir se tudo o que sinto
é dor?… Todos os nossos momentos me passam pela memória e esta lembrança chora,
chora como se fosse ela a minha própria alma e eu não existisse… Aqui onde
estou não me lembro do que sou, só me lembro de ti e de todos os momentos em
que estive contigo e contigo vivi… Sim, agora não vivo, apenas recordo… Dizem
que recordar é viver… oh meu amor como pode ser viver se cada vez que me
lembro, sinto que estou a morrer… as tuas mãos estão aqui no meu peito
apertando-me os seios como tu tanto gostavas de fazer… a tua boca na minha boca
e a humidade da tua língua na minha língua… o doce beijo nos meus mamilos e
como as tuas mãos me penetravam com doçura e força ao mesmo tempo… oh meu bem,
como te amo tanto… como te quero tanto… oh meu bem que lágrimas tão amargas
estas que broto a todo o momento… olha, devem ser 4 da manhã… vem aí a
enfermeira com a injecção do costume… continuam a dizer que esta minha loucura
não tem cura… eu sei que não tem, como poderia ter?… Como me posso curar da tua
ausência?… Como posso viver nesta minha morte?… Não sei meu amor, não sei… A
enfermeira me aconchegou os cobertores… sabes, está frio e sinto frio dentro de
mim… já não consigo falar… apenas olho no vazio… neste vazio que me preenche…
Mas não preciso de mais nada, basta-me a lembrança dos momentos que vivemos…
basta-me esta dor que vive comigo… bastam-me estas lágrimas… o meu pão de cada
dia… o meu alimento neste vazio… sinto os olhos pesados… sei que vou dormir
mais um pouco mas estou feliz pois vou dormir contigo nos meus braços, nestes
braços que não te sentindo te lembram, te tocam, te apertam contra mim…
lembras-te de quando adormecíamos assim?… Como era bom acordar a meio da noite
com os braços dormentes e sentir o calor do teu corpo abrasar este meu ser que
de tanto te querer te perdeu… oh meu amor, como te amo… como sinto a tua
ausência… vou dormir… até mais logo… lembra-te de mim como me lembro de ti… um
resto de noite feliz, meu amor…”
a tua Maria
Última carta:
“…já é habitual acordar a meio da noite… é sempre naqueles
intervalos entre o efeito das drogas que me dão… aproveitei sempre esses
momentos para te escrever, meu amor… porém, estou convencida que esta será a
minha última carta e, sinceramente, não sei o que te quero dizer… meu amado,
meu bem, meu doce, meu tudo, meu ser, minha alma, minha única razão de existir:
não sei sequer se irás ler estas minhas palavras… como é hábito e tu sabes,
devem ser 4 da manhã… está na hora de mais uma dose e a enfermeira deve estar a
chegar… restam-me poucos minutos e estas serão as últimas que vou poder te
escrever… as outras cartas que te enviei, onde recordava tudo o que de belo e
bom tivemos durante os tempos em que estivemos juntos, também não sei se foram
parar às tuas doces mãos, (tão doces de todas as carícias que me levaram ao
êxtase e ao delírio, tão suaves que eram, meu amor, tão doces que as sentia em
mim como se minhas fossem, como se me pertencessem desde sempre)… não sei se te
disseram como estou, não sei se sabes no que me tornei… mas, há cerca de meia
dúzia de dias (como se contam os dias aqui?… não me perguntes porque não te sei
responder…) ouvi-os dizer que já não havia nada a fazer e que a única forma era
o isolamento total e final… vão, pois, privar-me da única coisa que tinha vinda
do exterior… a luz da lua nas noites frias porque sem ti e da luz do sol gelado
porque não a teu lado… tiram-me também o bater das gotas da chuva que me faziam
contar os segundos em que olhava o tecto e recordava tudo o que fomos… vão,
portanto, enviar-me para longe de mim mesma, encharcar-me de drogas e mais
drogas para que eu não possa reagir e gritar como tenho gritado estes últimos
anos… gritado por ti, meu amor, gritado pela tua ausência, pelo amor que
tivemos, por tudo de bom que passámos, por tudo o que está gravado na minha
alma, na minha pele, no meu ser, na minha totalidade… como dizer-lhes que não
estou louca, como dizer-lhes que o que sou é apenas o resultado do que fomos…
como dizer-lhes que nada tenho porque apenas e só tu me faltas e que nada mais
desejo que não seja o que um dia fomos… queria, antes de ir, antes (eu sei) de
morrer de falta de ti, olhar-te apenas mais uma vez; fixar teus olhos e sorrir
no teu sorriso… tocar teus lábios e tornar-me num beijo… sentir tuas mãos nos
meus seios e ser eu mesma esse toque… sentir teu sexo me penetrar e ser eu
mesma a penetração… meu amor, apenas uma última vez e eu ficaria curada… mas
tenho consciência (sabes aquela consciência que nos resta no intervalo curto
entre as injecções) de que tal não vai acontecer e sei que o meu túmulo estará
naquelas 4 paredes sem grades porque sem janelas; já tinha ouvido falar delas
quando cá entrei… ouço passos; deve ser a enfermeira do turno da noite… deve
ser a próxima toma de mais um calmante… o habitual, a norma, o gesto, o ritual,
a morte em ensaio… sei que já não vou ter mais tempo… o tempo terminou… vou
levar comigo todas as recordações que me restam porque nada mais tenho nem nada
mais quero: quero apenas que não me tirem a recordação do som do teu riso, o
sabor do teu toque, o brilho do teu olhar… isso eles não me conseguem tirar… é
isso o que vou levar comigo… quando partir para sempre deste corpo físico que
já nada sente, irás dentro da minha alma e serei sempre feliz para onde quer
que eu vá, tu estarás lá… eu sei, meu amor, eu sei… me despeço para todo o
sempre… deixo-te a minha paz, a paz que obtive na loucura do nosso amor, a paz
que me toca ao de leve enquanto sonho contigo… nada mais resta… perdoa-me por
te ter amado tanto… perdoa-me por não conseguir deixar de te amar… perdoa-me
por te levar comigo no meu coração… adeus, meu amor…”
a tua Maria
JOAQUIM NOGUEIRA
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