"...Acabo de chegar de um lugar indeterminado; não o
sei localizar; fica algures na minha memória, já um pouco esbatida pelo tempo;
gastei muito do meu tempo a lembrar o que não deveria ter sido recordado. Mas o
arrependimento não trás nada de novo, apenas revolve o velho e não deixámos de
ser o que somos, apenas almas errantes neste mundo de contrastes e de negações.
Somos apenas e tão somente os "dejectos" dum mundo imperfeito. Não
nos foi dada a possibilidade de esboçar a nossa própria vida e assim temos de
nos contentar com os constantes ensaios que fazem de nós, indeterminando a
solução final.Perdemo-nos na amálgama do tempo e da insanidade.Já não somos
quem queremos ser.Somos apenas o que nos "dão" para ser.Permitem-nos
viver de memórias e de factos que de novo se transformam em lembranças.Mas,
lembrar para quê? Para sofrer? Para verificar que afinal de contas de nada
serviu o esboço que de mim fizeram em constantes ensaios que a nada me levaram?
Apenas à negação, só me levaram à negação.Não sei quem sou. Talvez nem queira
saber: Não foi para isso que aqui vim; vim a este mundo para ser feliz,
disseram-me um dia; e eu, parvo, acreditei.Vivi correndo nesse sentido; esbocei
sorrisos e ensaiei risadas. Tropecei, caí mas de novo me levantava. O horizonte
estava sempre perto e me bastava estender a mão; a ajuda nunca me era negada;
acreditei que o esboço que de mim fizeram em alguma coisa de bom se haveria de
tornar, um dia, quando não sabia, mas haveria de me realizar.Engano. Puro
engano. Quando dei por mim estava caído, só, perdido, fendido em mil pedaços de
mim, dorido de dores que não imaginava existirem.Mesmo assim olhava em frente
na expectativa de que o esboço que fizeram de mim, depois de tantos e tantos
ensaios, me permitissem olhar e sorrir de novo. Fiz isso muitas vezes. E havia
sempre uma mão, ali, expectante, sorrindo para mim (engano). Para que foi que
me sorriram? Porque me enganaram? Porque me disseram que sim? Porque razão me
arrastei até aqui?Porquê?Que ganhei eu?Derrota após derrota?Claro que ganhei
muitas batalhas, claro que sorri muitas vezes, claro que dei gritos de espanto
e de prazer, claro que sim, mas, para quê? Para chegar a este fim?Para
verificar que tudo o que vivi foi uma dramatização de mais uma história igual a
tantas outras histórias de amor e sofrimento?Foi para isso?Foi para isso que me
trouxeram até aqui?Foi para verificar que "isso" não existe? E, o que
é o "isso"? O "isso" é um sarcástico riso dum engano
simples mas preciso; dizem-nos: Vai e sê feliz, foi para isso que aqui vieste.
E eu vim, olhando, sorrindo, esboçando e ensaiando o que poderia vir a ser e a
ter: um amor, o amor!Amei e fui amado.Quis ficar pela simples razão de ter
gostado. Então amei e fui novamente amado e numa infindável sequência de vidas
eu percebi que estava a ser traido pelo esboço que fizeram de mim; o ensaio não
tinha tido ensaio-geral; o pano subira para a representação da vida e eu não
sabia o papel.Destruiram-me, logo ali, logo à partida.Negaram-me a
possibilidade de estudar melhor as deixas e as palavras, os tregeitos e a forma
de colocar o corpo no palco da vida; o esboço havia sido mal concebido; o
ensaio não havia servido de nada.
Não havia ponto.
Não havia nada. No entanto, pensei que havia tudo e de nada
me servi a não ser da minha inadaptação ao papel. Fui um mau actor
As lágrimas caiem-me agora e ninguém as vê; só eu as sinto
aqui ao meu redor; os olhos se me toldam numa profunda mágoa e a tristeza me
invade.
Quis amar e ser amado.
E, sou-o!
Para quê?
Onde é que ele está? Aqui, ao meu lado? Ali, depois daquela
esquina? Depois, um pouco mais para além do horizonte? Ou a seguir àquele
arco-íris colorido de vida mas que nada mais me traz para além dessas mesmas
cores.
Isto não é um grito.
É para dizer que não me contratem mais; não há esboço e
ensaio que cheguem para me reconstruirem de novo; a "argamassa" foi
totalmente utilizada quando havia um sorriso, quando havia riso e olhos
brilhantes.
Já não sei o papel de cor e já não consigo ler.
No entanto, o amor não precisa de esboços nem de ensaios; no
entanto, o amor não precisa de saber o papel, nem de ponto, nem de palco; o
amor precisa de actor, de alguém que grite que está vivo, que ainda não perdeu
a única "coisa" que tem para dar e isso está ainda dentro do meu
coração, ainda pulsa e me diz que é, que existe, que sente, que vibra.
Grito, no meio de uma lágrima escorrendo sobre um sorriso,
que por muitos esboços e ensaios, eu ainda o sinto e que esse amor (latente,
vivo) não acabará nunca, morrerá comigo, levá-lo-ei para onde eu for, será
presa de mim mas não estará preso em mim, será livre de ser o que tiver de ser,
será o advir..."
Joaquim Nogueira
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