sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Camuflagem





Horas a fio a observar o pequeno exército de formigas. Marchavam sobre a mesa, capturavam migalhas e restos de açúcar, invadiam o pote mal fechado de geléia. A cabeça apoiada sobre os braços, só os olhos de fora, bem abertos.
Imaginava.
Persegui-las, esmagá-las uma a uma, afogá-las em leite quente.
De onde vinham? Esquadrinhava os azulejos à procura da fresta. Abre-te, sésamo! E se jogasse lá dentro um pouco de álcool, e depois enfiasse um palito de fósforo aceso pelo buraco?
Imaginava.
Gritos desesperados, as pequenas pernas esturricadas como gravetos em miniatura.
Imaginava. Só.
Só imaginava.

***
Parada diante da estação, vestida de cinza no tom da parede, fazia-se invisível. Gostava de ficar ali, oculta no mimetismo urbano, observando as pessoas.
Iam e vinham aos borbotões. Formigas.
Casais riam juntos, alguns de mãos dadas. Crianças portando mochilas. Outras, menores, puxadas pela mãe que desfiava aos ouvidos desatentos algum discurso moralizante. Adolescentes em turbas barulhentas esbarravam numa velhinha que precisava do corrimão como apoio. Todos disputando a entrada estreita do trem que, implacável, partia em trinta segundos.
Imaginava.
Do que riria a moça? Que livros, naquelas mochilas? Que travessura teria feito a pequena que chorava e se lambuzava de lágrimas e chocolate? O que lhe diria, se fosse ela própria aquela mãe?
Os olhos procuraram furtivamente o mostrador do relógio. Meia hora de atraso.
Imaginava.
Na trupe adolescente, devia dar-se uma quadrilha: Carlos amava Dora, que amava Paulo, que amava Lia... A velhinha lembrou-lhe a avó. Saudade.
Uma hora. Tantos rostos, menos aquele.
Uma hora e meia de atraso. Ele não vem mais.
Imaginava ainda.
Haveria, decerto, um bom motivo. Morreu alguém. Foi assaltado. Ele próprio podia estar morto. E se jogasse sobre ele um pouco de álcool e depois um fósforo aceso? Gritos desesperados, o corpo viril retorcido e carbonizado. Um resto.
Só.
Teria sido um bom encontro, se ele tivesse vindo. Talvez fossem felizes. Talvez tivesse aprendido a amá-la. Talvez tanta coisa.
A noite caía e mais cinza a cidade mais a escondia, desfeita de formas junto à rua borrada de chuva e de gente.
A vida passava. Continuava só.
Só imaginava.

Marcia Szajnbok

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