quinta-feira, 31 de outubro de 2019


Mais um trecho de 'Que fim levaram todas as flores':

O conflito de gerações – que mal ou bem sempre existiu – assumiu naqueles anos proporções cataclísmicas. O hiato virou fosso, o fosso virou abismo. Pais quadrados, filhos avançados. Pais caretas, fihos prafrentex. Não era só uma questão de pontos de vista diferentes. Era a vista de pontos totalmente diferentes, antagônicos, como nunca acontecera antes nem voltaria a acontecer depois. Os pais ouviam samba-canção, mambo, bolero, jazz, ópera etc. Os filhos curtiam rock (agora sem o roll). Os pais até podiam gostar de Beatles e de iê-iê-iê, mas nunca de Rolling Stones, menos ainda de Jimi Hendrix. Hoje, pais, filhos e avós podem ir juntos (e muitas vezes vão) a shows dos Stones ou do Paul McCartney. Agora faça a experiência de assistir aos filmes do Monterrey Pop Festival e do Woodstock: você não vê ninguém ali com mais de trinta anos, nem em cima nem embaixo do palco (descontando Ravi Shankar, é claro). Esse choque geracional se manifestava inclusive entre gerações limítrofes, como a nossa, em torno dos dezoito anos, e a que imediatamente nos antecedeu, que rondava os trinta, com quem convivíamos, embora às turras. Eles tomavam uísque, nós puxávamos fumo – sem deixar o uísque, preferencialmente substituído pela pinga, mais popular. Para eles Deus estava morto e enterrado, para nós solto (não exatamente naquele ano, ainda muito racionalista, mas a partir dos anos seguintes). Era o contraste entre a booze generation e a pot generation, a turma da birita e a patota da fumaça. De um lado a bossa nova e a canção de protesto, do outro a tropicália e os acordes dissonantes. Ali o Teatro de Arena e o legado dos Centros Populares de Cultura, aqui o Teatro Oficina, Plínio Marcos e Antônio Bivar – e em breve Pasquim, Bondinho, Novos Baianos... Mas se com nossos pais não havia nenhuma espécie de diálogo, com eles nós podíamos discutir – e discutíamos muito, madrugadas adentro.
– Cara, o melhor compositor surgido nos festivais é Chico Buarque – dizia o veterano Péricles, que já rondava os quarenta, metade dos quais envelhecidos precocemente em redações enfumaçadas e nos balcões dos botecos mais ordinários da cidade.
– Tu tá por fora, bicho. O lance é Caetano – rebatia Grillo, que depois da minha reportagem só assinava seu nome assim, com dois “L”. – Gil e Caetano. Eles já estão noutra. O tempo passou na janela e só o filho do Sérgio não viu.
– Cantora, sou mais a Nara – era uma loira, carregadíssima de maquiagem e cílios suspeitíssimos, que afirmava, sentada ao lado do Péricles. – A Nara e aquela baixinha, a Elis.
– Que Nara que nada – retrucava uma morena com a metada da idade. – Ela nem tem voz. Sou bem mais a Gal, saca? A Gal e a Kalafe.
Duas garrafas de Natu Nobilis depois, o assunto agora era cinema e teatro:
– Olha, pra dar o recado, não apareceu ninguém melhor que Brecht. É pá-pum: mata a cobra e mostra o pau, o sistema é assim e assado e nós temos que fazer o seguinte...
– Balela! Ele ainda está preso nos velhos moldes racionalitas – retrucava Grillo novamente. – Não percebe que, sendo contra Aristóteles, ele ainda é aristotélico? A razão ocidental está falida, bicho. De minha parte, boto mais fé no Artaud. Teatro da Agressão. E no Living Theatre.
Quem seria o Artaud? – perguntava-me. A trupe do Julian Beck eu já conhecia dos escândalos percutidos pela mídia.
– No cinema, Godard ainda é o maioral. A chinesa é do caralho.
– Aí eu concordo. Mas a Nouvelle vague está ficando sacal. E o Cinema Novo está indo pelo mesmo caminho. Aposto minhas fichas ainda nos italianos. Vocês viram Blow-up? E Teorema?
A morena tinha visto Blow-up.
– E romancista? O melhor que apareceu nos últimos anos foi o Cony – declarava Péricles, com todo o peso de sua autoridade.
– O Cony? Corta essa! – contestava o Grillo. – A onda é o José Agrippino de Paula.
– Nunca vi mais gordo nem mais magro. O que ele escreveu?
– PanAmérica. Livraço. Mistura Marylin Monroe, Cassius Clay e Che Guevara numa prosa alucinada.
– Besteira! Detesto esses “popismos”...
– Eu gostei do Callado – aventava eu, timidamente. – Quarup.
– Ah, esse é bom também.
Grillo não disse nada. A loira e a morena pareciam concordar.
– E estrangeiro? – tornou Péricles.
– O Ken Kesey, o Burroughs...
– Quem são esses cabras? É Norman Mailer o maior, o mais contundente. Não tem pra ninguém.
– Tem muito macho nessa lista aí – dizia a loira, com o que a morena concordava. – Tem que acrescentar a Françoise Sagan.
– Autora de um livro só – alfinetava Péricles.
– E no Brasil não tem ninguém melhor que a Clarice – ajuntou a morena.
– Alienada.
– Alienada o escambau! Alienação é esse papo besta pra ver quem tem o pinto maior – fulminava a loira.
– É claro que é o meu – pilheriava Péricles.
Gargalhávamos. Na dúvida, preferíamos não conferir – eu pelo menos. É provável que as moças já tivessem conferido e que o moço viria a conferir em breve. Ao final da noitada, ao rachar a conta, ainda vinha outra das sentenças do Péricles:
– Pra não fundir a cachola, nos tempos loucos que correm, só o bom e velho Sigmund.
À qual Grillo invariavelmente redarguia:
– Que Freud que nada, meu! Freud é o último positivista. O lance é Jung. Jung.
– Ora, são apenas novos opiáceos populares, já que as velhas religiões estão todas falidas.
– Quer saber de uma coisa? Marx era outro positivista!
Às vezes, a conversa ainda se arrastava pelos paralelepípedos escorregadios de uma Travessa Nestor de Castro deserta, onde, longe de ouvidos alheios, o foco podia se voltar com mais segurança para a política:
– Não sei, cara... Pra derrubar a ditadura só com movimento de massas. Guerrilha a esta altura é canoa furada.
– Sei não, bicho – suspirava Grillo. – Trancaram todas as portas. E além do mais, as massas não estão nem aí pro babado: só pensam em futebol, quermesse e televisão. O jeito é cair fora. Foda-se o povo! Não quer fazer revolução? Que se dane!
Péricles ajeitava o chapéu sobre o crânio ossudo e, com suas escleróticas amareladas, encarava Grillo do alto de sua autoridade de ex-membro do Partidão:
– Grillo, você tem que comer ainda muita farinha pra superar esse seu anarquismo de butique.
Enquanto isso, lá no alto, a lua, apática testemunha, era uma foice de prata num campo de estrelas – ou então um fantasma, um clarão, uma evocação sob as nuvens...
Na verdade, entre um polo e outro, entre os malditos de ontem e os marginais de amanhã, entre os heróis do bas-fond e os pioneiros do underground, entre os boêmios de antanho e os bichos-grilos de alguns anos depois, circulavam seres híbridos, ambíguos, anfíbios, em que essas duas gerações se interseccionavam, fundidas e confundidas: por um lado eram booze, como Péricles e Saul (Debout! les damnés de la terre!), por outro pot, como Bira e Grillo (Turn on, tune in, drop out!).
– Mas, afinal, que mal tem em unir Taiguara e Yardbirds? – perguntava o primo do Bira, aquele mesmo que me emprestara o smoking. – Posso muito bem ser vidrado em Stones e apreciar meu Lukács. Aliás, vocês já ouviram “Street fighting man?”


OlW

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