Mais um trecho de 'Que fim levaram todas as flores':
O conflito de gerações – que mal ou bem sempre existiu –
assumiu naqueles anos proporções cataclísmicas. O hiato virou fosso, o fosso
virou abismo. Pais quadrados, filhos avançados. Pais caretas, fihos prafrentex.
Não era só uma questão de pontos de vista diferentes. Era a vista de pontos
totalmente diferentes, antagônicos, como nunca acontecera antes nem voltaria a
acontecer depois. Os pais ouviam samba-canção, mambo, bolero, jazz, ópera etc.
Os filhos curtiam rock (agora sem o roll). Os pais até podiam gostar de Beatles
e de iê-iê-iê, mas nunca de Rolling Stones, menos ainda de Jimi Hendrix. Hoje,
pais, filhos e avós podem ir juntos (e muitas vezes vão) a shows dos Stones ou
do Paul McCartney. Agora faça a experiência de assistir aos filmes do Monterrey
Pop Festival e do Woodstock: você não vê ninguém ali com mais de trinta anos,
nem em cima nem embaixo do palco (descontando Ravi Shankar, é claro). Esse
choque geracional se manifestava inclusive entre gerações limítrofes, como a
nossa, em torno dos dezoito anos, e a que imediatamente nos antecedeu, que
rondava os trinta, com quem convivíamos, embora às turras. Eles tomavam uísque,
nós puxávamos fumo – sem deixar o uísque, preferencialmente substituído pela
pinga, mais popular. Para eles Deus estava morto e enterrado, para nós solto
(não exatamente naquele ano, ainda muito racionalista, mas a partir dos anos
seguintes). Era o contraste entre a booze generation e a pot generation, a
turma da birita e a patota da fumaça. De um lado a bossa nova e a canção de protesto,
do outro a tropicália e os acordes dissonantes. Ali o Teatro de Arena e o
legado dos Centros Populares de Cultura, aqui o Teatro Oficina, Plínio Marcos e
Antônio Bivar – e em breve Pasquim, Bondinho, Novos Baianos... Mas se com
nossos pais não havia nenhuma espécie de diálogo, com eles nós podíamos
discutir – e discutíamos muito, madrugadas adentro.
– Cara, o melhor compositor surgido nos festivais é Chico
Buarque – dizia o veterano Péricles, que já rondava os quarenta, metade dos
quais envelhecidos precocemente em redações enfumaçadas e nos balcões dos
botecos mais ordinários da cidade.
– Tu tá por fora, bicho. O lance é Caetano – rebatia Grillo,
que depois da minha reportagem só assinava seu nome assim, com dois “L”. – Gil
e Caetano. Eles já estão noutra. O tempo passou na janela e só o filho do
Sérgio não viu.
– Cantora, sou mais a Nara – era uma loira, carregadíssima
de maquiagem e cílios suspeitíssimos, que afirmava, sentada ao lado do
Péricles. – A Nara e aquela baixinha, a Elis.
– Que Nara que nada – retrucava uma morena com a metada da
idade. – Ela nem tem voz. Sou bem mais a Gal, saca? A Gal e a Kalafe.
Duas garrafas de Natu Nobilis depois, o assunto agora era
cinema e teatro:
– Olha, pra dar o recado, não apareceu ninguém melhor que
Brecht. É pá-pum: mata a cobra e mostra o pau, o sistema é assim e assado e nós
temos que fazer o seguinte...
– Balela! Ele ainda está preso nos velhos moldes
racionalitas – retrucava Grillo novamente. – Não percebe que, sendo contra
Aristóteles, ele ainda é aristotélico? A razão ocidental está falida, bicho. De
minha parte, boto mais fé no Artaud. Teatro da Agressão. E no Living Theatre.
Quem seria o Artaud? – perguntava-me. A trupe do Julian Beck
eu já conhecia dos escândalos percutidos pela mídia.
– No cinema, Godard ainda é o maioral. A chinesa é do
caralho.
– Aí eu concordo. Mas a Nouvelle vague está ficando sacal. E
o Cinema Novo está indo pelo mesmo caminho. Aposto minhas fichas ainda nos
italianos. Vocês viram Blow-up? E Teorema?
A morena tinha visto Blow-up.
– E romancista? O melhor que apareceu nos últimos anos foi o
Cony – declarava Péricles, com todo o peso de sua autoridade.
– O Cony? Corta essa! – contestava o Grillo. – A onda é o
José Agrippino de Paula.
– Nunca vi mais gordo nem mais magro. O que ele escreveu?
– PanAmérica. Livraço. Mistura Marylin Monroe, Cassius Clay
e Che Guevara numa prosa alucinada.
– Besteira! Detesto esses “popismos”...
– Eu gostei do Callado – aventava eu, timidamente. – Quarup.
– Ah, esse é bom também.
Grillo não disse nada. A loira e a morena pareciam
concordar.
– E estrangeiro? – tornou Péricles.
– O Ken Kesey, o Burroughs...
– Quem são esses cabras? É Norman Mailer o maior, o mais
contundente. Não tem pra ninguém.
– Tem muito macho nessa lista aí – dizia a loira, com o que
a morena concordava. – Tem que acrescentar a Françoise Sagan.
– Autora de um livro só – alfinetava Péricles.
– E no Brasil não tem ninguém melhor que a Clarice – ajuntou
a morena.
– Alienada.
– Alienada o escambau! Alienação é esse papo besta pra ver
quem tem o pinto maior – fulminava a loira.
– É claro que é o meu – pilheriava Péricles.
Gargalhávamos. Na dúvida, preferíamos não conferir – eu pelo
menos. É provável que as moças já tivessem conferido e que o moço viria a
conferir em breve. Ao final da noitada, ao rachar a conta, ainda vinha outra
das sentenças do Péricles:
– Pra não fundir a cachola, nos tempos loucos que correm, só
o bom e velho Sigmund.
À qual Grillo invariavelmente redarguia:
– Que Freud que nada, meu! Freud é o último positivista. O
lance é Jung. Jung.
– Ora, são apenas novos opiáceos populares, já que as velhas
religiões estão todas falidas.
– Quer saber de uma coisa? Marx era outro positivista!
Às vezes, a conversa ainda se arrastava pelos
paralelepípedos escorregadios de uma Travessa Nestor de Castro deserta, onde,
longe de ouvidos alheios, o foco podia se voltar com mais segurança para a
política:
– Não sei, cara... Pra derrubar a ditadura só com movimento
de massas. Guerrilha a esta altura é canoa furada.
– Sei não, bicho – suspirava Grillo. – Trancaram todas as
portas. E além do mais, as massas não estão nem aí pro babado: só pensam em
futebol, quermesse e televisão. O jeito é cair fora. Foda-se o povo! Não quer
fazer revolução? Que se dane!
Péricles ajeitava o chapéu sobre o crânio ossudo e, com suas
escleróticas amareladas, encarava Grillo do alto de sua autoridade de ex-membro
do Partidão:
– Grillo, você tem que comer ainda muita farinha pra superar
esse seu anarquismo de butique.
Enquanto isso, lá no alto, a lua, apática testemunha, era
uma foice de prata num campo de estrelas – ou então um fantasma, um clarão, uma
evocação sob as nuvens...
Na verdade, entre um polo e outro, entre os malditos de
ontem e os marginais de amanhã, entre os heróis do bas-fond e os pioneiros do
underground, entre os boêmios de antanho e os bichos-grilos de alguns anos
depois, circulavam seres híbridos, ambíguos, anfíbios, em que essas duas
gerações se interseccionavam, fundidas e confundidas: por um lado eram booze,
como Péricles e Saul (Debout! les damnés de la terre!), por outro pot, como
Bira e Grillo (Turn on, tune in, drop out!).
– Mas, afinal, que mal tem em unir Taiguara e Yardbirds? –
perguntava o primo do Bira, aquele mesmo que me emprestara o smoking. – Posso
muito bem ser vidrado em Stones e apreciar meu Lukács. Aliás, vocês já ouviram
“Street fighting man?”
OlW
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