O pintor contemplava o retrato do juiz no cavalete e os seus
olhos teimavam em fitar o olhar incisivo do retratado, muito firme, muito
intenso. Parecia vigiar-lhe cada movimento. Era perturbador. O cliente já devia
ter ido buscar o quadro há duas semanas, mas não havia maneira de aparecer.
Júlio começava a ficar impaciente. Não que o dinheiro lhe fizesse muita falta,
mas o olhar do retrato inquietava-o. Cada vez que o observava, parecia
encontrar-lhe novos aspectos fisionómicos. Como se tivesse vida. Era, sem
dúvida, das suas obras mais conseguidas.
Desde novo que, nas suas mãos, as telas se povoavam de
figuras, umas cândidas, outras austeras, umas históricas, outras, que podíamos
esperar encontrar na rua, representadas com uma naturalidade notável. Manobrava
os pincéis com destreza, como se já tivesse muitos anos de prática. Quase
sempre fazia as misturas das cores na paleta mas, em obras de maior
arrebatamento, aplicava as cores puras directamente na tela, em empastamentos
de força cromática avassaladora.
Com o tempo, percebeu que o retrato próprio era das imagens
que as pessoas mais prezavam e passou a especializar-se nesse género, adoptando
Columbano como referência. Ao seu “atelier” da rua de S. Paulo, em Lisboa,
acudiam militares, magistrados, catedráticos, políticos. Cavalheiros graves em
fundo escuro e damas vistosas em “toilettes” requintadas nasciam nas suas
telas. Os olhares eram sempre inteligentes, a pose sempre nobre e elegante.
Ultimamente, a clientela já não abundava mas Júlio, de
sessenta e três anos escorreitos, gostava do que fazia e tencionava continuar a
trabalhar indefinidamente.
O último cliente fora este juiz. Tinha querido pagar a
totalidade do trabalho, mas Júlio aceitara apenas metade; o resto seria pago
contra a entrega da obra. Era um cliente fácil. Chegava sempre pontualmente às
nove da manhã, no seu fato preto impecável, e mantinha-se firme na pose
escolhida, durante as duas horas da sessão. Era de poucas falas, mesmo no
pequeno intervalo que faziam a meio.
O rosto, que era a parte mais delicada e a que dava mais
trabalho, foi nascendo, mancha a mancha nas carnações da face, pincelada a
pincelada nos fartos cabelos grisalhos e nas sobrancelhas rectas e espessas. Ao
fim de duas semanas, os olhos vivos e inquisidores do juiz acenderam-se na tela
como se fossem reais. Pouco depois, Júlio disse ao cliente que só faltava
rematar os fundos e que podia ir buscar o retrato daí a uns dias.
Tinham-se passado três semanas e o juiz não aparecia.
O retrato estava muito realista. Júlio olhava-o e não
conseguia evitar uma inquietação difusa. Começava a tornar-se uma obsessão.
Não ficara, do juiz, com mais que o nome e a morada,
rabiscados num papel. Pensou em telefonar-lhe, mas das Informações disseram-lhe
que aquela morada não tinha telefone fixo. Resolveu procurar o cliente,
pessoalmente. Apanhou o comboio para Carcavelos e, lá chegado, foi perguntando
até encontrar a casa do juiz. O que descobriu não podia ser mais perturbador.
Realmente, ali era a casa do juiz, mas ele não estava. Nem
ele nem ninguém. Perguntando à vizinhança, soube que a casa estava abandonada
desde que o juiz morrera, havia quinze anos.
Júlio deixou-se cair num banco de jardim e ali ficou, sem
tomar conta das horas, mergulhado num assombro de que não sabia como sair. Se
havia coisa com que não sabia lidar era com o sobrenatural.
Desde então que Júlio não pinta. No primeiro mês após a
traumática revelação, só voltou ao “atelier” uma única vez. Tornar a encarar
aquele olhar foi aterrador. Podia jurar que o juiz o olhava de cenho mais
carregado, num misto de tensão e recriminação. Voltou a face da tela para a
parede, mas Júlio continuou a pressentir a intensidade do olhar através dela.
Sentiu medo. Saiu rapidamente, ofegante, sem saber o que fazer, sem vontade de
voltar.
Em casa pensou que, se calhar, estava na altura de parar de
pintar. Foi falar com um amigo, vizinho do “atelier”, que há tempos se
propusera comprar-lho para alargar a sua loja de aprestos marítimos. Fizeram
negócio, depois de o amigo aceitar ficar também com o recheio.
Júlio recolheu-se à sua pequena casa de Montemor,
sobranceira ao vale de Loures, disposto a desanuviar o espírito, mas não o tem
conseguido. Passa as tardes na varanda, de olhar perdido no horizonte. Não
consegue tirar da cabeça o olhar mau do juiz. Nem consegue entender que intuito
teve ele, ao voltar do outro mundo e lhe encomendar o retrato.
Por um desses dias, na sua casa de Azeitão, Armando
Magalhães levantava-se da mesa e improvisava um pequeno discurso para uma dúzia
de familiares reunidos à volta do almoço dominical:
– Meus queridos, é com agrado e enorme orgulho que celebro
convosco a próxima expansão da nossa pequena empresa. Foi um negócio bem
sucedido de que todos saíram a ganhar, como gosto que sejam todos os nossos
negócios. Ganhámos nós e ganhou o Sr. Júlio, que agora pode gozar uma bem
merecida reforma. Era um grande artista. Vejam como ele captou o olhar austero
do tio – apontava Armando o quadro na parede. – Aliás, quero fazer um
agradecimento muito especial ao tio Jerónimo, pelo esforço que fez de ir todas
as manhãs a Lisboa e assumir tão bem aquela personagem. Sem a sua ajuda, talvez
não tivéssemos conseguido o que há tanto tempo pretendíamos: a expansão do
nosso armazém de vendas e do nosso negócio. Obrigado tio! E faço questão, é
claro, que fique com o quadro. Bem o merece! De qualquer modo, estamos todos de
parabéns. Por isso, peço que me acompanhem num brinde.
Armando levantou um copo e pronunciou a fórmula habitual:
– A família é a nossa fortaleza. À família!
Todos se levantaram, de copo na mão, respondendo em coro:
– À família!
O brinde terminou com uma longa salva de palmas, que
comunicou, ao espírito de cada um, o enternecimento de quem se sabe
participante no bom sucesso de um projecto comum.
Joaquim Bispo
[Conto publicado pela primeira vez em 2007, na edição
resultante dum concurso de contos promovido pelo site Ora, vejamos... em que
obteve um 3º lugar ex-aequo, entre 67 candidatos]
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