sexta-feira, 25 de outubro de 2019

O retrato do juiz



  

O pintor contemplava o retrato do juiz no cavalete e os seus olhos teimavam em fitar o olhar incisivo do retratado, muito firme, muito intenso. Parecia vigiar-lhe cada movimento. Era perturbador. O cliente já devia ter ido buscar o quadro há duas semanas, mas não havia maneira de aparecer. Júlio começava a ficar impaciente. Não que o dinheiro lhe fizesse muita falta, mas o olhar do retrato inquietava-o. Cada vez que o observava, parecia encontrar-lhe novos aspectos fisionómicos. Como se tivesse vida. Era, sem dúvida, das suas obras mais conseguidas.

Desde novo que, nas suas mãos, as telas se povoavam de figuras, umas cândidas, outras austeras, umas históricas, outras, que podíamos esperar encontrar na rua, representadas com uma naturalidade notável. Manobrava os pincéis com destreza, como se já tivesse muitos anos de prática. Quase sempre fazia as misturas das cores na paleta mas, em obras de maior arrebatamento, aplicava as cores puras directamente na tela, em empastamentos de força cromática avassaladora.
Com o tempo, percebeu que o retrato próprio era das imagens que as pessoas mais prezavam e passou a especializar-se nesse género, adoptando Columbano como referência. Ao seu “atelier” da rua de S. Paulo, em Lisboa, acudiam militares, magistrados, catedráticos, políticos. Cavalheiros graves em fundo escuro e damas vistosas em “toilettes” requintadas nasciam nas suas telas. Os olhares eram sempre inteligentes, a pose sempre nobre e elegante.
Ultimamente, a clientela já não abundava mas Júlio, de sessenta e três anos escorreitos, gostava do que fazia e tencionava continuar a trabalhar indefinidamente.
O último cliente fora este juiz. Tinha querido pagar a totalidade do trabalho, mas Júlio aceitara apenas metade; o resto seria pago contra a entrega da obra. Era um cliente fácil. Chegava sempre pontualmente às nove da manhã, no seu fato preto impecável, e mantinha-se firme na pose escolhida, durante as duas horas da sessão. Era de poucas falas, mesmo no pequeno intervalo que faziam a meio.
O rosto, que era a parte mais delicada e a que dava mais trabalho, foi nascendo, mancha a mancha nas carnações da face, pincelada a pincelada nos fartos cabelos grisalhos e nas sobrancelhas rectas e espessas. Ao fim de duas semanas, os olhos vivos e inquisidores do juiz acenderam-se na tela como se fossem reais. Pouco depois, Júlio disse ao cliente que só faltava rematar os fundos e que podia ir buscar o retrato daí a uns dias.
Tinham-se passado três semanas e o juiz não aparecia.

O retrato estava muito realista. Júlio olhava-o e não conseguia evitar uma inquietação difusa. Começava a tornar-se uma obsessão.
Não ficara, do juiz, com mais que o nome e a morada, rabiscados num papel. Pensou em telefonar-lhe, mas das Informações disseram-lhe que aquela morada não tinha telefone fixo. Resolveu procurar o cliente, pessoalmente. Apanhou o comboio para Carcavelos e, lá chegado, foi perguntando até encontrar a casa do juiz. O que descobriu não podia ser mais perturbador.
Realmente, ali era a casa do juiz, mas ele não estava. Nem ele nem ninguém. Perguntando à vizinhança, soube que a casa estava abandonada desde que o juiz morrera, havia quinze anos.
Júlio deixou-se cair num banco de jardim e ali ficou, sem tomar conta das horas, mergulhado num assombro de que não sabia como sair. Se havia coisa com que não sabia lidar era com o sobrenatural.

Desde então que Júlio não pinta. No primeiro mês após a traumática revelação, só voltou ao “atelier” uma única vez. Tornar a encarar aquele olhar foi aterrador. Podia jurar que o juiz o olhava de cenho mais carregado, num misto de tensão e recriminação. Voltou a face da tela para a parede, mas Júlio continuou a pressentir a intensidade do olhar através dela. Sentiu medo. Saiu rapidamente, ofegante, sem saber o que fazer, sem vontade de voltar.
Em casa pensou que, se calhar, estava na altura de parar de pintar. Foi falar com um amigo, vizinho do “atelier”, que há tempos se propusera comprar-lho para alargar a sua loja de aprestos marítimos. Fizeram negócio, depois de o amigo aceitar ficar também com o recheio.
Júlio recolheu-se à sua pequena casa de Montemor, sobranceira ao vale de Loures, disposto a desanuviar o espírito, mas não o tem conseguido. Passa as tardes na varanda, de olhar perdido no horizonte. Não consegue tirar da cabeça o olhar mau do juiz. Nem consegue entender que intuito teve ele, ao voltar do outro mundo e lhe encomendar o retrato.

Por um desses dias, na sua casa de Azeitão, Armando Magalhães levantava-se da mesa e improvisava um pequeno discurso para uma dúzia de familiares reunidos à volta do almoço dominical:
– Meus queridos, é com agrado e enorme orgulho que celebro convosco a próxima expansão da nossa pequena empresa. Foi um negócio bem sucedido de que todos saíram a ganhar, como gosto que sejam todos os nossos negócios. Ganhámos nós e ganhou o Sr. Júlio, que agora pode gozar uma bem merecida reforma. Era um grande artista. Vejam como ele captou o olhar austero do tio – apontava Armando o quadro na parede. – Aliás, quero fazer um agradecimento muito especial ao tio Jerónimo, pelo esforço que fez de ir todas as manhãs a Lisboa e assumir tão bem aquela personagem. Sem a sua ajuda, talvez não tivéssemos conseguido o que há tanto tempo pretendíamos: a expansão do nosso armazém de vendas e do nosso negócio. Obrigado tio! E faço questão, é claro, que fique com o quadro. Bem o merece! De qualquer modo, estamos todos de parabéns. Por isso, peço que me acompanhem num brinde.
Armando levantou um copo e pronunciou a fórmula habitual:
– A família é a nossa fortaleza. À família!
Todos se levantaram, de copo na mão, respondendo em coro:
– À família!
O brinde terminou com uma longa salva de palmas, que comunicou, ao espírito de cada um, o enternecimento de quem se sabe participante no bom sucesso de um projecto comum.

Joaquim Bispo

[Conto publicado pela primeira vez em 2007, na edição resultante dum concurso de contos promovido pelo site Ora, vejamos... em que obteve um 3º lugar ex-aequo, entre 67 candidatos]

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