quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Sagui


  
Irene, cansada, cansada, como custa esforço não pensar em nada!, como custa afastar do pensamento a criança nos braços encarquilhados da velha naquele barraco fincado na lama, o papel amarelo com o resultado do exame, o médico falando, falando, falando, o tempo passando, passando, passando numa correria, quase todo dia já é segunda-feira, ir levar um dinheiro para a velha, ir saber se o remédio prometido chegou, pegar o pacote de camisinhas e ouvir a assistente social lhe dizer que mude de vida. Irene ri, amargo e torto, com uma banda só da boca para não deixar ver a falha dos dentes da outra banda, ainda que ninguém a veja agora, ainda que ninguém lhe olhe a cara de frente, nunca. Engraçada aquela assistente social, “deixe essa vida”, está certo, eu deixo essa vida, não me importo de tudo se acabar agorinha, que essa minha vida só tem uma porta, que dá pro cemitério, mas a senhora vai tomar conta do menino e da velha? Era bom, que Irene já quase nem consegue levar dinheiro toda semana, muitos homens não querem nada com camisinha, vão procurar outra, e ela não pode fazer como Anjinha, querendo passar a doença para todo o mundo, com ódio, Irene não, não pode fazer mal a nenhum vivente, nenhum, por causa do sagui, daquele aperto na boca do estômago cada vez que lembra. Já faz tanto tempo e aconteceu tão longe, mas quando pensa no sagui a agonia é hoje e aqui. A alegria quando Simão voltou da caçada, só com duas rolinhas que nem chegavam para dar gosto à farofa d’água mas com o mico dentro do bornal, tão pequeno que Irene também tão pequena podia segurá-lo com uma mão só, sentindo o calor e o tremor do corpinho doente, ai que vontade de chorar de dó!, dias e noites cuidando dele, enrolado num trapo, encostado ao peito dela, dando-lhe água de gota em gota com o bico de uma folhinha de laranjeira, pedacinhos de fruta, o sagui cada dia melhorando, já olhando e rindo para ela feito gente, agradecido, puxando-lhe os cabelos, ai como está ficando danado esse bichinho!, não tem juízo, querendo soltar-se, voltar pro mato, pra ficar outra vez doente e morrer?, não pode, não deixo, não largava o macaquinho nem um segundo, não fosse escapar para a capoeira. Que difícil viver assim fazendo tudo com uma só mão!, a outra mão agarrando o rabo do bicho, não entregava a ninguém, com medo de traição, fossem soltar, não confiava. “Essa menina vai ficar doente, vigia que magrinha está, não come nem dorme por mor desse sagui, larga disso, Irene, solta esse bicho, dorme!” Então Simão foi para a feira e trouxe uma correntinha fina, fez uma coleirinha macia de couro de cabrito, Irene agora podia dormir, brincar de roda pegada das duas mãos, normal, trepar nas mangueiras, com o sagui seguro na ponta da corrente atada ao pulso dela, ao pé da mesa, a um tronco de goiabeira. Não sabe como foi que se descuidou, só se lembra do susto, da correria, o sagui correndo, correndo, solto no terreiro, correndo, correndo danado em volta da casa, ela correndo, correndo atrás dele, tanto, tanto que já não podia respirar, zonza, zzzonza, zzzzzzonza, a correntinha solta serpenteando à sua frente, um último impulso, a correntinha ao alcance do pé, o salto, o pé de Irene pisando a corrente, o tranco da coleira no pescocinho fino, enforcando, o corpinho peludo arrefecendo entre as mãos dela, os olhos dele pedindo-lhe socorro, apagando-se, a dor de Irene, a culpa, a culpa dela que nunca mais passou, já faz tanto tempo!, até hoje... Para de pensar, mulher, pensa nada, pensa vazio como essa rua, pensa nos cotovelos doendo de estar assim apoiados na beira da janela, estou tão magra!, é da doença... Afasta-se da janela, atravessa o quarto, as tábuas bambas do assoalho, qualquer dia esse chão afunda e a terra me engole, o saguão vazio, ninguém, não há clientes, comeram e beberam demais, estão dormindo em seus esconderijos em algum lugar dessa imensa cidade abandonada, domingo à tarde tudo dorme, as outras mulheres todas dormem, só Irene não pode, espera a sorte de aparecer algum freguês, quem sabe, alguma coisa, amanhã é segunda-feira, o menino e a velha, arrasta os pés pelo chão de mármore encardido até a porta carcomida do casarão antes senhorial, depois cortiço, puteiro hoje, olha outra vez o mormaço da rua, tontura, apoia-se no portal e quando abre de novo os olhos vê o homem, vindo em sua direção, reanima-se, volta para o quarto para debruçar-se à janela, é mais romântico, eles gostam, abre a gaveta do criado-mudo em busca da camisinha... já não há nenhuma, como é que eu nem tinha visto? ah! que importa?, um só, só uma vez, só essa vez... não, nem hoje, nem uma vez. Irene fecha a janela, tranca a porta do quarto, deita-se no escuro mas não dorme, abraça de novo o sagui vivo nos braços magros.
Este conto foi retirado do livro:


Maria Valéria Rezende.in Modo de apanhar pássaros à mão

Fonte : contém um conto/ companhia das letras

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