Irene, cansada, cansada, como custa esforço não pensar em
nada!, como custa afastar do pensamento a criança nos braços encarquilhados da
velha naquele barraco fincado na lama, o papel amarelo com o resultado do
exame, o médico falando, falando, falando, o tempo passando, passando, passando
numa correria, quase todo dia já é segunda-feira, ir levar um dinheiro para a
velha, ir saber se o remédio prometido chegou, pegar o pacote de camisinhas e
ouvir a assistente social lhe dizer que mude de vida. Irene ri, amargo e torto,
com uma banda só da boca para não deixar ver a falha dos dentes da outra banda,
ainda que ninguém a veja agora, ainda que ninguém lhe olhe a cara de frente,
nunca. Engraçada aquela assistente social, “deixe essa vida”, está certo, eu
deixo essa vida, não me importo de tudo se acabar agorinha, que essa minha vida
só tem uma porta, que dá pro cemitério, mas a senhora vai tomar conta do menino
e da velha? Era bom, que Irene já quase nem consegue levar dinheiro toda
semana, muitos homens não querem nada com camisinha, vão procurar outra, e ela
não pode fazer como Anjinha, querendo passar a doença para todo o mundo, com
ódio, Irene não, não pode fazer mal a nenhum vivente, nenhum, por causa do
sagui, daquele aperto na boca do estômago cada vez que lembra. Já faz tanto
tempo e aconteceu tão longe, mas quando pensa no sagui a agonia é hoje e aqui.
A alegria quando Simão voltou da caçada, só com duas rolinhas que nem chegavam
para dar gosto à farofa d’água mas com o mico dentro do bornal, tão pequeno que
Irene também tão pequena podia segurá-lo com uma mão só, sentindo o calor e o
tremor do corpinho doente, ai que vontade de chorar de dó!, dias e noites
cuidando dele, enrolado num trapo, encostado ao peito dela, dando-lhe água de
gota em gota com o bico de uma folhinha de laranjeira, pedacinhos de fruta, o
sagui cada dia melhorando, já olhando e rindo para ela feito gente, agradecido,
puxando-lhe os cabelos, ai como está ficando danado esse bichinho!, não tem
juízo, querendo soltar-se, voltar pro mato, pra ficar outra vez doente e
morrer?, não pode, não deixo, não largava o macaquinho nem um segundo, não
fosse escapar para a capoeira. Que difícil viver assim fazendo tudo com uma só
mão!, a outra mão agarrando o rabo do bicho, não entregava a ninguém, com medo
de traição, fossem soltar, não confiava. “Essa menina vai ficar doente, vigia
que magrinha está, não come nem dorme por mor desse sagui, larga disso, Irene,
solta esse bicho, dorme!” Então Simão foi para a feira e trouxe uma correntinha
fina, fez uma coleirinha macia de couro de cabrito, Irene agora podia dormir,
brincar de roda pegada das duas mãos, normal, trepar nas mangueiras, com o
sagui seguro na ponta da corrente atada ao pulso dela, ao pé da mesa, a um
tronco de goiabeira. Não sabe como foi que se descuidou, só se lembra do susto,
da correria, o sagui correndo, correndo, solto no terreiro, correndo, correndo
danado em volta da casa, ela correndo, correndo atrás dele, tanto, tanto que já
não podia respirar, zonza, zzzonza, zzzzzzonza, a correntinha solta
serpenteando à sua frente, um último impulso, a correntinha ao alcance do pé, o
salto, o pé de Irene pisando a corrente, o tranco da coleira no pescocinho
fino, enforcando, o corpinho peludo arrefecendo entre as mãos dela, os olhos
dele pedindo-lhe socorro, apagando-se, a dor de Irene, a culpa, a culpa dela
que nunca mais passou, já faz tanto tempo!, até hoje... Para de pensar, mulher,
pensa nada, pensa vazio como essa rua, pensa nos cotovelos doendo de estar
assim apoiados na beira da janela, estou tão magra!, é da doença... Afasta-se
da janela, atravessa o quarto, as tábuas bambas do assoalho, qualquer dia esse
chão afunda e a terra me engole, o saguão vazio, ninguém, não há clientes,
comeram e beberam demais, estão dormindo em seus esconderijos em algum lugar
dessa imensa cidade abandonada, domingo à tarde tudo dorme, as outras mulheres
todas dormem, só Irene não pode, espera a sorte de aparecer algum freguês, quem
sabe, alguma coisa, amanhã é segunda-feira, o menino e a velha, arrasta os pés
pelo chão de mármore encardido até a porta carcomida do casarão antes
senhorial, depois cortiço, puteiro hoje, olha outra vez o mormaço da rua,
tontura, apoia-se no portal e quando abre de novo os olhos vê o homem, vindo em
sua direção, reanima-se, volta para o quarto para debruçar-se à janela, é mais
romântico, eles gostam, abre a gaveta do criado-mudo em busca da camisinha...
já não há nenhuma, como é que eu nem tinha visto? ah! que importa?, um só, só
uma vez, só essa vez... não, nem hoje, nem uma vez. Irene fecha a janela,
tranca a porta do quarto, deita-se no escuro mas não dorme, abraça de novo o
sagui vivo nos braços magros.
Este conto foi retirado do livro:
Maria Valéria Rezende.in Modo de apanhar pássaros à mão
Fonte : contém um conto/ companhia das letras
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