– Vou embora. Eu estou namorando a Silvia. Quero que você
entenda a minha liberdade, porque estou procurando ser feliz.
Com essas palavras minha mulher se despediu de mim, alguns
anos atrás. A incompreensão e a dor foram elementos que me acompanharam desde
então, intensos como deveriam ser. Mas não foram maiores do que a reflexão que
fiz sobre os núcleos daquela estrutura oracional: “liberdade” e “ser feliz”.
Naquela época, eu poderia me declarar escritor, romancista de uma literatura
esparsa, livre na acepção da palavra, mas que – depois descobri – não era
verdadeira. Procurava levar entretenimento às pessoas, prendê-las a minha
fantasia frugal. Falava muito disso, de liberdade, mas Laura propiciou-me, com
aquele ato, a oportunidade do meu primeiro livro não-escrito de sucesso, o que
mostrava, então, a verdade sobre essa palavra com a qual os poetas iludem os
tolos: a derradeira obra sobre a inexistência da liberdade.
Laura saiu do matrimônio para poder entrar na vida de outra
mulher e acreditou que assim seria feliz. A felicidade, embora seja um agente
ilusório, é, paradoxalmente, passível de ser procurada. Liberdade, então, seria
algum ânimo misterioso que nos mantém ativos nesta busca. De fato, seria mesmo terrível
se todos se descobrissem presos. Por isso minha admiração por Laura nunca
acabou, até porque com o rompimento pude descobrir, enfim, que estar livre é,
em verdade, estar mantido sob engano. Ou seja, a liberdade seria o perfeito
ópio da humanidade. Estarmos presos a conceitos dimensionais é melhor do que
compreendermos as armadilhas de um mundo supostamente livre. E esta clausura
transparente é que nos mantém esperançosos em algo que nunca chega, mas que nos
auxilia em nossa submissão.
A fé nessa liberdade fictícia atrapalha nosso curso natural
e nos aprisiona nesse deprimente cenário de falsas alegrias, impedindo que
vidas se enveredem por cenas paralelas, fossem estas a plasticidade de um
suicídio, conforme bem demonstrou Hemingway, ou através do prazer orgíaco,
pecador por definição cristã, desde sempre confirmado por Calígula. Nesse
sistema perverso onde democracias são impostas e necessidades são criadas, eu
era apenas mais uma peça. Toda a cegueira nessa crença mentecapta fazia com que
não deixassem de comprar meus livros medíocres sobre esse Mal. O último, então,
com um belo e embusteiro título – "A liberdade que nos rege" – vendeu
bastante.
Assim que Laura foi embora mergulhei no triunvirato que
sublima a vida de qualquer escritor de sucesso: álcool, tabaco e bordéis. Essas
experiências foram boas para minha metamorfose. Autodestruição, obviamente, não
significa liberdade, mas é o melhor caminho para compreender sua inexistência.
Chegava carregado por estranhos ao meu apartamento e vomitava sobre rascunhos
de minha próxima obra, "Alavancando o sonho de ser livre". Meu
público-alvo, normalmente mulheres na casa dos cinqüenta, adora essas
picaretagens literárias. E eu, o pilantra maior, preso ciente desta sina cruel
de forjar histórias românticas e assépticas com o objetivo espúrio de ser
reconhecido como "o escritor da liberdade". A imprensa soube de minha
separação, mas não os detalhes. “Parece que sua esposa mantinha um caso
homossexual há anos”. Alguns criticaram pesadamente a decisão de Laura, não
conseguindo nem mesmo esconder a homofobia das declarações. Queriam ser
solidários, mas eu sentia pena deles. Por sorte minha, escritores de uma forma
geral não têm sua vida tão esmiuçada na mídia como os pobres artistas de TV.
Estes sofrem muito mais com fotógrafos amaldiçoados, fãs histéricos e outros
entes hediondos.
Foi quando resolvi que não iria mais sair do meu
apartamento. A partir daí comecei a perceber algumas coisas não identificáveis
do tempo em que eu acreditava na liberdade. Nesta pequena sucursal de cárcere
da vida entendi melhor o formato deste perverso sistema. Minha sala era
claramente claustrofóbica, mas, ao mesmo tempo, eficiente em me dar respostas:
com meu corpo confinado, eu podia enxergar melhor a prisão da alma. Meu lar,
então, se tornou o escritório ideal para meus livros não-escritos. Não saía
para mais absolutamente nada. Abria a porta para pegar a comida com o
entregador e pagava com cheques que eram trazidos, por sua vez, pelo contínuo
do banco. Ninguém mais me visitava. Minha promotora tratava de minhas
publicações através do telefone ou de mensagens pelo computador. Minha sogra,
dona Célia, que infantilmente repudiou a idéia separatista de sua filha, morava
no mesmo andar e insistia na tese de que eu estaria com a chamada Síndrome do
Pânico e que precisava de auxílio médico.
Ah, os médicos! Descompromissados com o calor dos
sentimentos, assim como os cientistas que inventam remédios, passam suas vidas
trancados em frios e limpos ambientes ministrando pílulas que, pretensiosamente,
seriam a cura de todos os males. A indústria farmacêutica é um dos tentáculos
desse monstro invisível que aprisiona nossas almas, que fomenta esse massivo
ataque a seres inofensivos como a dona Célia. Dava pena ver as suas tentativas
de me “salvar” desta doença perniciosa. Como eu não queria encontrá-la, ela,
vez por outra, soltava o Guardião, seu gato preto, para que, sorrateiramente,
ele viesse me fazer companhia. O que mais me causava comoção, porém, era outra
curiosa iniciativa sua: ela comprava e mandava o entregador da farmácia trazer
para mim uma caixinha de Rivotril a cada quinze dias. A atitude da Laura fez
com que dona Célia se roesse em remorsos e, então, ela procurou esforçar-se
para cuidar do maluco aqui. Quando estava cansado de escrever minhas baboseiras
líricas sobre liberdade eu deitava no sofá, arrancava uns comprimidos da
cartela e ficava tentando acertar Libertad, um pequeno camundongo que resolveu
fazer morada entre o amontoado de livros, reboco de parede, papéis rasgados e
roupas por lavar que eu zelosamente mantinha num dos cantos da sala. O alvoroço
desesperado de Libertad, ao ser incomodado pelo bombardeio de remédios, era
sempre angustiante, pois sugeria que ele precisava de alguém o acossando para
se manter vivo, como se estar sendo perseguido fosse a melhor, ou talvez única,
saída para a sua sobrevivência. Uma perfeita parábola sobre liberdade.
Na tal “vida livre” que eu levara até poucos anos atrás
nunca havia refletido com seriedade sobre a praça em frente ao meu edifício e
nem sobre os casais de namorados que esculpiam coraçõezinhos no corpo das
árvores rodeadas por cercas metálicas. Para eles, tatuagens como aquelas
deveriam significar o chamado "amor infinito"; coisa tão besta quanto
a liberdade que os solteiros se regozijam em acreditar que saboreiam. As grades
circundando os troncos, antes de serem incongruentes celas para caules
depredados, representavam um modelo de prisão empírica, não da planta como
estava óbvio, mas de seus reais detratores – nós. A clausura em maior
amplitude, aliás, podia ser contemplada com um mínimo de esforço: prédios
cercados por telas eletrificadas, o comércio repleto de cadeados e travas
eletrônicas, paredes e muros cobertos com arames farpados. A própria alameda se
encontrava asfixiada em meio às cinzentas construções, entrecortadas por
agressivos neons de publicidade.
O mendigo catando lixo para comer, um cachorro
acompanhando-o de perto; crianças correndo entre os tubos de ferro do brinquedo
enferrujado; o vendedor de algodão-doce com olhar triste; a babá sem expressão
empurrando o carrinho de bebê; o executivo engravatado apressado com sua maleta
marrom. Havia ali o espectro de uma sociedade desconfiada, aprisionada dentro
de si. Claro estava que aquele imaculado e entediante espaço arborizado
necessitava – em caráter de urgência – de uma tragédia que o livrasse da
angustiante e demoníaca candura a que fora submetido. Algo que reconduzisse
todos aqueles passantes de comportamento mecânico, e as complacentes copas das
árvores artesanalmente podadas, a um estado natural; que interrompesse todo
aquele burocrático ciclo no qual pessoas lutavam, minuto a minuto, por coisas
supostamente indispensáveis, cumprindo destinos como se lobotomizadas
estivessem. Mas o conceito de liberdade funciona desta forma, com esse ardil –
uma filosofia difícil de ser enxergada e que não admite nenhum tipo de
contestação.
De minha janela eu passava muitas horas observando aquele
aflitivo vai-e-vem de personagens do meu livro não-escrito, principalmente dona
Célia, cuja vida era olhar vitrines de lojas. Naquela noite pensei muito em
minha sogra enquanto mirava, com um remédio entre o polegar e o indicador, uma
camisa roída no chão, local por onde o ratinho aparecia. A gola suja de sangue
lembrou-me do incidente: Libertad já não vivia entre nós. Ele havia sido
destruído por Guardião numa de suas visitas, e eu me esquecera disso. Eu não
costumava sentir o coração apertado por qualquer coisa, mas naquela tarde
senti. Pela saudade do camundongo e, depois, por dona Célia. Minha cabeça
estava presa nela por isso: a freqüência de seu gato em meu cárcere diminuíra
bastante desde que ele destroçara o pequeno roedor. Teria ela descoberto o
assassinato e proibido o bicho de vir-me fazer companhia? Era uma idéia
absurda, mas deveria ser respeitada.
Notei que o entregador da farmácia também passou a entregar
o Rivotril em datas incertas, com espaços maiores. Achei que dona Célia estava,
finalmente, esquecendo seu genro escritor. Ela era uma leitora assídua de
minhas “liberdades para dondocas” e gostava de mim com uma sinceridade
maternal. Estaria certa ela em querer esquecer um cara pessimista,
possivelmente doente, intimamente derrotado e ir atrás da pseudo felicidade da
filha e seu bonito amor homossexual? Um amor condenado pela sociedade não poderia
ser também repudiado por nós. Sabíamos da leviandade dos sentimentos e
engrossar essa lista seria seguir o script mundial da hipocrisia. Naquele
instante me senti profundamente infeliz; uma tristeza torpe, totalmente
incompatível com o que eu vinha descobrindo desde a minha separação.
Tentava escrever mais alguma bobagem para preencher o último
capítulo de mais uma obra, mas o cursor não saía do lugar e deixava estática na
tela a única frase daquela página: “E aquela doença parecia livrá-la da prisão
conjugal”. Eu não sei se teria coragem de concluir esse livro. Eu não agüentava
mais trapaças, desonestidade e incompreensão comigo mesmo. O fim de um escritor
miserável estava perto. Despejado de meu cárcere, iria viver como uma das
personagens que criei, catando restos para sobreviver.
Meus dedos se afastaram do teclado e apertaram meus ouvidos.
Aturdido dentro de mim, por pouco não escutei a campainha. Eram três horas da
manhã. Quem iria importunar um escritor em pleno horário de trabalho? Todos
sabiam que eu não recebia quem eu não esperava – normalmente os entregadores de
comida ou de remédio. Porém o barulho da campainha insistiu e uma curiosidade
mórbida levou-me até à porta. Não acreditei quando, pelo olho mágico, vi Laura
chorando do outro lado. Chorava como se ela própria também houvesse acabado de
descobrir que a liberdade realmente não existe.
– Minha mãe! Minha mãe... ela está com Alzheimer... meu
Deus... ela não lembra da Silvia, nem quando está ao meu lado... e só lembra de
meu nome quando falo dos seus livros. Meu Deus! Ela se tornou uma prisioneira
em si...
Laura me abraçou apertado. Seu choro era tão estridente e
convulsivo que mal conseguia respirar. Tentei acalmá-la levando-a para o sofá e
oferecendo um comprimido que ainda não havia sido arremessado sobre o
camundongo. Fomos até o apartamento da dona Célia e lá eu tomei uma de suas
mãos com carinho. Guardião, cujo penetrante olhar felino era detentor de uma
acusatória expressão, acompanhava o pesaroso arrastar de corpos pela sala de
sua dona. Silenciosamente e sem lhaneza, éramos apontados pelo taciturno animal
como os verdadeiros culpados por toda aquela incômoda situação. Quem sabe
culpados até por toda a mesquinhez humana.
Minha sogra desenterrou um sorriso como se estivesse diante
de alguém que, inadvertidamente, fugira de sua prisão. Naquele quarto de
paredes escurecidas pelo tempo eu percebi, com uma alguma felicidade, que
novamente Laura errara: dona Célia não estava virando refém de sua doença, não
estava se tornando uma prisioneira dentro de si. Ao contrário, estava ela
própria se libertando de toda a uma doutrina nefasta, impiedosamente
sistematizada, que nos humilha desde que nascemos.
– Trouxe o seu último livro?
A pergunta da minha sogra fez com que eu iniciasse meu
segundo livro não-escrito. A doença de Célia a estava fazendo entrar em contato
com algo que não podemos conquistar por nossa vontade. Na verdade, ela estava
me provando que a liberdade, sim, a liberdade existe. O desligamento lento e
progressivo da mente daquela mulher me apresentava uma nova percepção do que
seria a cristalina possibilidade de se estar livre. Quando questionara – em
minha mente – o seu esquecimento sobre os remédios e sobre a soltura do gato,
estava, mais uma vez, a serviço desse Império que procura arruinar a verdadeira
liberdade, liberdade esta que agora estava sendo provada. A dor de todos a sua
volta não iria encontrar alicerce em sua felicidade interior. Dona Célia
estava, ela própria, construindo o prefácio de minha nova obra fantasmagórica,
enfim, livre de dogmas, culturas, verdades e certezas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário