Era, de novo, o verão. O menino estava na alegria. Modesta,
se comparada à que o esperava lá adiante. A mãe o chamou, e o irmão, e anunciou
de uma vez, como se natural: iriam à praia de novo, igualzinho ao ano anterior,
a mesma cidade, mas um apartamento maior, que o pai já alugara. Era uma notícia
inesperada. E ao ouvi-la ele se viu, no ato, num instante azul-azul, os pés na
areia fervente, o rumor da arrebentação ao longe, aquela água toda nos olhos, o
menino no mar, outra vez, reencontrando-se, como quem pega uma concha na
memória.
É verdade, mesmo?, queria saber. A mãe confirmou. O irmão a
abraçou e riram alto, misturando os vivas. Ele flutuava no silêncio, de tão
feliz. Nem lembrava mais que podia sonhar com o sal nos lábios, o cheiro da
natureza grande, molhada, a quentura do sol nos ombros, o menino ao vento, a
realidade a favor, e ele na sua proa...
O dia mudou de mão, um vaivém se espalhou pela casa. A mãe
ia de um quarto ao outro, organizava as malas, Vamos, vamos, dava ordens, pedia
ajuda, nem parecia responsável pela alegria que causara. O menino a obedecia:
carregava caixas, pegava roupas, deixava suas coisas para depois. Temia que
algo pudesse alterar os planos de viagem, e ele já se via lá, cercado de água,
em seu corpo-ilha; um navio passava ao fundo, o céu lindo, quase vítreo, de se
quebrar. Não, não podia perder aquele futuro que chegava, de mansinho, aos seus
pés. O menino aceitava a fatalidade da alegria, como a tristeza quando o
obrigava a se encolher — caracol em sua valva. Não iria abrir mão dela. Viver
essa hora, na fabricação de outra mais feliz, ocupava-o; e ele, ancorado às
antigas tradições, fazia o possível para preservá-la. A noite descia, e mais
grossa se tornava a casca de sua felicidade.
Quando se deu conta, cochilava no sofá, exausto pelo esforço
de preparar o dia seguinte. Esforçara-se para que, antes de dormir, a manhã
fosse aquela certeza, e ela seria mesmo sem a sua pobre contribuição. Ignorava
que a vida tinha a sua própria maré. O mar existia dentro de seu sonho, mais do
que fora. E, de repente, sentia-se leve, a caminhar sobre as águas — o pai o
levava para a cama, com seus braços de espuma.
Abriu os olhos: o sol estava ali, sólido, o carro de portas
abertas à frente da casa, o irmão em sua bermuda colorida, a voz do pai e da
mãe em alternância, a realidade a se espalhar, o mundo bom, o cheiro do dia
recém-nascido. O menino se levantou, vestiu seu destino, foi fazer o que lhe
cabia antes da partida, tomar o café da manhã, levar as malas até o carro onde
o pai as ajeitava com ciência, a mãe chaveava a porta dos fundos, Pegou sua
prancha?, ele, Sim, como se num dia comum, fingindo que a satisfação envelhecia
nele, que se habituara a ela, enquanto lá no fundo brilhava o verão maior, da
expectativa.
Partiram. O carro às tampas, o peso extra do sonho que cada
um construía — seus castelos de ar. A viagem longa, o menino nem a sentiu, o
tempo em ondas, ele só percebia que o tempo era o que era quando já passara,
misturando-se a outras águas. Recordava-se de estar ao lado do irmão no banco
de trás, depois junto ao vidro, numa calmaria tão eufórica que, para
suportá-la, dormiu.
Ao despertar, saltou as horas menores — o lanche no posto de
gasolina, as curvas na descida da serra, a garagem escura do edifício, o
apartamento com móveis velhos e embolorados — e, de súbito, se viu de sunga segurando
a prancha, a mãe a passar o protetor em seu rosto, Sossega! Vê se fica parado!,
ele à beira de um instante inesquecível.
Ao lado do edifício, a família pegou o ônibus, um trechinho
de nada, mas demorava tanto para chegar... E pronto: pisavam na areia,
carregados de bolsas, cadeiras, toalhas, esteiras, cada um tentando guardar na
sua estreiteza aquele aumento de felicidade. O menino, último da fila,
respirava fundo a paisagem, o aroma da maresia, os olhos alagados de mar,
aquela água toda. Avaro, ele se represava. Queria aquela vivência, aos poucos.
O pai demarcou o território, fincando o guarda-sol na areia.
O irmão espalhou seus brinquedos à sombra. A mãe observava o menino, sabia que
ele cumpria uma paixão. Não era nada de mais. Só o mar. E a sua existência
inevitável. Sentado na areia, a prancha aos seus pés, ele mirava os banhistas
que sumiam e reapareciam a cada onda. Então, subitamente, ergueu-se, Vou
entrar!, e a mãe, Não vai lá no fundo!, mas ele nem ouviu, já corria, livre
para expandir seu sentimento secreto, aquela água toda pedia uma entrega maior.
E ele queria se dar, inteiramente, como um homem.
Foi entrando, até que o mar, à altura dos joelhos, começou a
frear o seu avanço. A água fria arrepiava. Mas era um arrepio prazeroso, o sol
se derramava sobre suas costas. Deitou de peito na prancha e remou com as mãos,
remou, remou, e aí a primeira onda o atingiu, forte. Sentiu os cabelos duros, o
gosto de sal, os olhos ardendo. O desconforto de uma alegria superior, sem
remissão, a alegria que ele podia segurar, como um líquido, na concha das mãos.
Pegou outra onda. Mergulhou. Engoliu água. Riu de sua sorte.
Levou um caldo. Outro. Voltou ao raso. Arrastou-se de novo pela água, em
direção ao fundo, sentindo a força oposta o empurrando para trás. Estava leve,
num contentamento próprio do mar, que se escorria nele, o mar, também egoísta
na sua vastidão. Um se molhava na substância do outro, era o reconhecimento de
dois seres que se delimitam, sem saber seu tamanho.
O menino retornou à praia, gotejando orgulho. O sal secava
em sua pele, seu corpo luzia — ele, numa tranquila agitação. E nela se manteve
sob o guarda-sol com o irmão. Até que decidiu voltar à água, numa nova entrega.
Cortou ondas, e riu, e boiou, e submergiu. Era ele e o mar
num reencontro que até doía pelo medo de acabar. Não se explicavam, um ao
outro; apenas se davam a conhecer, o menino e o mar. E, naquela mesma tarde,
misturaram-se outras vezes. A mãe suspeitava daquela saciedade: ele nem pedira
sorvete, milho-verde, refrigerante. O menino comia a sua vivência com gosto,
distraído de desejos, só com a sua vontade de mar.
Quando percebeu, o sol era suave, a praia se despovoara, as
ondas se encolhiam. Hora de ir, disse o pai e começou a apanhar as coisas. A
família seguiu para a avenida, o menino lá atrás, a pele salgada e quente, os
olhos resistiam em ir embora. No ônibus, sentou-se à janela, ainda queria ver a
praia, atento à sua paixão. Mas, à frente, surgiam prédios, depois casas,
prédios novamente, ele ia se diminuindo de mar. O embalo do ônibus, tão
macio... Começou a sentir um torpor agradável, os braços doíam, as pernas
pesavam, ele foi se aquietando, a cabeça encostada no vidro...
Então aconteceu, finalmente, o que ele tinha ido viver ali
de maior. Despertou assustado, o cobrador o sacudia abruptamente, Ei, garoto,
acorda! Acorda, garoto!, um zum-zum-zum de vozes, olhares, e ele sozinho no
banco do ônibus, entre os caiçaras, procurando num misto de incredulidade e
medo a mãe, o pai, o irmão — e nada. Eram só faces estranhas.
Levantou-se, rápido no seu desespero, Seus pais já desceram,
o cobrador disse e tentou acalmá-lo, Desce no próximo ponto e volta! Mas o
menino pegou a realidade às pressas e, afobado, se meteu nela de qualquer
jeito. Náufrago, ele se via arrastado pelo instante, intuindo seu
desdobramento: se não saltasse ali, se perderia na cidade aberta. Só precisava
voltar ao raso, tão fundo, de sua vidinha...
Esgueirou-se entre os passageiros, empurrando-os com a
prancha. O ônibus parou, aos trancos. O cobrador gritou, Desce, desce aí! O
menino nem pisou nos degraus, pulou lá de cima, caiu sobre um canteiro na beira
da praia. Um búzio solitário, quebradiço. Saiu correndo pelo calçadão, os
cabelos de sal ao vento, o coração no escuro. Notou com alívio, lá adiante, o
pai que acenava e vinha, em passo acelerado, em sua direção. Depois... depois
não viu mais nada: aquela água toda em seus olhos.
Este conto foi retirado do livro Aquela água toda
João Anzanello Carrascoza
Fonte : Contém um conto/companhiadasletras
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