terça-feira, 22 de outubro de 2019

Houve épocas



em que a morte andava comigo, companheira fiel e afável.
Toda manhã eu via seu rosto no meu quarto
e era a ela que eu dirigia minhas preces à noite.
Ao sair pelas ruas
era ainda sua voz que me perseguia
em cada esquina, seus olhos que me fitavam
em cada vitrine. Aprendi a ser simples
com ela. Foi ela que me mostrou
o vazio dos planos e o descabimento dos sonhos.
Sim, durante muito tempo, fui seu discípulo fiel
e é dela que adquiri estes olhos distantes.
Depois, envolto na vida, fui me esquecendo pouco a pouco de sua figura.
De que adianta lembrar-me de seu doce sorriso
se eu tenho um dia inteiro pela frente?
Foi então que as coisas
se tornaram menos difíceis para mim. Obtive algum sucesso
e os homens chegaram a me ver como um igual.
Até sorriam para mim e me davam tapinhas nas costas.
No entanto, a névoa que toldava as paisagens
sumira, e meu dia ficou mais cheio de arestas
e pedras vazias. Já não tinha mais olhos para o poente
nem amor pelas folhas que voam no outono.
Até que uma noite, numa festa, cercado de imbecis,
me refugiei no banheiro. E foi então que a vi de novo.
Custei a reconhecê-la -- pois ela me mirava com meus olhos no espelho.
E meus olhos estavam cansados.
Ela me disse: Volte. Eu ainda não me esqueci de você.
Eu voltei. Sim, eu voltei para ela. E me tornei novamente poeta.

Otto Leopoldo Winck


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