Foi no mês de agosto. Mês do meu nascimento.
Vou retornando e meus passos ressoam pelas escadas da
estação do trem com destino a Santo Amaro.
Irmã Luísa (irmã dela) e a usurpadora me esperavam
As duas com suas fisionomias estranhas e vestimentas que iam
até o chão conversavam alguma coisa
Eu no outro banco, ora olhava para elas, tentando a todo
custo manter um ar amigável, ora olhava pela janela para o céu azul cheio de
nuvens brancas, como agora de manhã
Ora abaixava a cabeça e dizia: “Meu Deus me livra desse
horror”
Ia para o hospital Vida, visitar um homem que morria
Por que tinha que ser eu?
Porque somente eu poderia fazer desse momento uma dádiva
Não podia falar sequer pensar o que achava dessa aventureira
Dois anos já se passaram em que eu estive em seu quarto
deitada ao seu lado
Pela última vez, sentindo sua respiração enfraquecendo passo
a passo, seu corpo apodrecendo
Não sei se dormi, não sei se chorei
Lembro que nos meus olhos havia uma enorme claridade e eu
sentia falta da escuridão
Quando começou o dia a ambulância chegou e quatro homens um
de cada lado carregaram meu pai estirado em um lençol branco
Foi nesse dia que uma lâmina fina e penetrante entrou em
minhas costas
Amanhecia quando eles passaram com seu corpo próximo ao meu
naquela sala cheia de espelhos
O reflexo de todos eles apontava para os braços e as costas
daquele enfermo enormes feridas
Segurei a fala, segurei o grito
E me voltei para olhar por um instante nas dezenas de
espelhos pregados por toda sala enquanto perguntava: “Quem sou?”
Foi no pronto socorro a última vez que o vi com vida
E ele olhou para minha direção, foi um olhar tão meigo, o
único que ele me deu em toda minha vida
E eu não aguente e chorei
Não devia
Estou sempre fazendo coisas erradas na hora errada
Ele não podia saber que estava partindo e que eu estava
sofrendo
Eu tinha que ter dito: “Você vai ficar bem. Eu vou te levar
pra casa. Para minha casa”
Não é assim que se diz?
Mas eu não disse nada. Só silêncio e lágrimas
E fui obrigada a acompanhar aquelas duas malucas para não
perder o meu pai
Na UTI o médico perguntou quem estava cuidando daquele
enfermo cheio de escaras e com os dois pulmões completamente destruídos
A usurpadora não soube responder e como sempre entrou em
transe
O que fazer? O que poderia fazer?
Naquele dia andei a esmo pelas travessas da Avenida Nossa
senhora do Sabará
Como seria o amanhã? O daqui a pouco?
Estava sozinha quando o médico disse: “Seu pai está mal em
virtude de assepsias que afetou a área cardíaca, respiratória, renal e
metabólica. Com enormes secreções calcataneas e escaras no cotovelo, nos braços
e nas costas. Havia dado entrada no hospital já com essa infecção generalizada.
Está totalmente dependente de aparelhos. A pressão está muito baixa, mesmo a
custa de drogas. Tudo se espalhou completamente. Ocorrerá o óbito”
Foi isso que ele disse.
Não mediu as palavras indesejadas, muito menos eu disse:
Pare!
Fitava-o nos olhos, estava tão passada, mas ainda deu pra
sentir nas costas uma lâmina fina e pontiaguda penetrando fundo...
Caminhei em direção ao morto pela última vez
Despedi-me com um último olhar
E desci uma escada escura, tateando o meu caminho...
Atrás de mim, porém de quando em quando escuto
A voz do meu pai me acordando
Relembrando coisas da minha infância
Marcia Lailin
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