"Passamos a conversar regularmente no recreio. Depois,
ao final das aulas, nos demorávamos um pouco mais no portão da escola. Semanas
depois já voltávamos juntos por um caminho intermediário entre as nossas casas,
que, numa cidade pequena como aquela, não eram muito longe uma da outra.
– Almoça lá em casa amanhã e eu te mostro meus livros.
Assim, no dia seguinte, tendo prevenido minha mãe, nos
dirigimos juntos para a casa dele. Depois de vinte minutos, num bairro novo,
com ruas ainda de chão batido, entramos numa casinha de material com um lindo
jardim de hibiscos e roseiras na frente. Marx – um vira-lata que devia ter um
beagle em sua árvore genealógica – nos recebeu com efusivas manifestações de
apreço. Entramos. Depois de um diminuto vestíbulo, com um espelho oblongo e um
cabideiro, passamos pela sala onde sua mãe veio nos receber.
– Ah, então você que é o Ruy! Meu filho fala muito de você.
Não repare, a casa é simples. Em quinze minutos o almoço está pronto.
Por sob os trajes de dona de casa moderna – calças de
helanca em vez das saias de tergal da minha mãe –, deu para perceber que era
uma mulher muito bonita, de quem o filho, agora eu via, herdara a discreta
elegância: cabelos castanhos escuros presos num meio rabo de cavalo, olhos
cinzentos mergulhados nas órbitas. Fomos para o quarto do Adrian, onde jogamos
nossas mochilas: uma cama turca com grandes gavetões, coberta com uma colcha de
crochê lilás, um armário de duas portas com uma escrivaninha ao meio e duas
prateleiras abarrotadas de livros. Olhei as lombadas: Angústia, Jubiabá, A rosa
do povo entre os brasileiros; Malraux, Dostoiévski e o famigerado Sartre entre
os estrangeiros. Na parede, uma coleção de flâmulas. Flâmulas de efemérides:
Éder Jofre, campeão mundial de peso galo; Juscelino Kubitschek e a inauguração
de Brasília; Ray Charles e sua visita ao Brasil. Flâmulas de futebol: o
bicampeonato da seleção brasileira no Chile; times do Rio e São Paulo; times
locais como o Londrina e o Iraty. Sobre a escrivaninha, uma pilha de discos,
long-plays embaixo e compactos em cima. Mexi nas capas: dois ou três de bossa
nova, o primeiro do Vandré e o último dos Beatles: Help, de que eu só conhecia
a canção título e “Yesterday”, das rádios. Foi este que ele colocou na pequena
vitrola, me chamando a atenção para a terceira faixa.
– Veja se não parece Bob Dylan.
Eu nunca tinha ouvido falar em Bob Dylan."
Do "Que fim levaram todas as flores", a ser
lançado em breve.
Olw
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