quinta-feira, 27 de dezembro de 2018


"Pensei que seria mais fácil sair de debaixo das saias da mãe e do totalitarismo paterno. Ledo engano. Não por conta dos laços de sangue, que no meu caso, pelo menos na época, não significavam tanto. Mas pelo rude contraste entre uma casa familiar, ainda que modesta, e uma pensão “familiar”, localizada no núcleo do basfond curitibano. Alojei-me – ou melhor, homiziei-me – debaixo da escada, num quartinho infecto e sem janela: com um enxergão de palha num catre de solteiro, um guarda-roupa desconjuntado de duas portas, onde dependurei meu par de calças e meia dúzia de camisas, e um criado mudo, sobre o qual empilhei meus vinte e poucos livros. Ao me levantar, corria o risco de dar com a cabeça no forro da escada – o que me ocorreu mais de uma vez. A vantagem é que, de tão estreito, eu não precisava dividi-lo com ninguém. O difícil era atravessar o longo e sombrio corredor para ir ao banheiro coletivo. As tábuas rangiam e, ainda antes de alcançar o sanitário, éramos atingidos pela fedentina de urina e fezes. Nos outros cômodos, ao lado de cafetões, caixeiros, engraxates, prostitutas de olheiras antiquíssimas e homens de rosto duro e profissão incerta, chegavam a viver famílias inteiras, com velhos tuberculosos, crianças amarelentas, cachorros, gatos e periquitos. Manchas de catarro no chão, baganas de cigarro com marcas de batom, centopeias, carrapatos e ratazanas monstruosas ajudavam a compor a atmosfera dostoievskiana que não se reduzia à pensão mas se estendia às redondezas, a Praça Carlos Gomes e seu entorno, com seus armazéns, biroscas, cabarés, barbearias, bazares, açougues, panificadoras e hotéis de alta rotatividade... Nos balcões de bares pé-sujo como Paris, Carequinha e Espeto de Ouro acotovelava-se toda uma amostra do lumpemproletariado local: vagabundos, gicolôs, vigaristas, traficantes e receptadores de mercadorias roubadas, à qual vinham se somar os jornalistas das redações ali perto – a Gazeta do Povo na própria praça, o Diário do Paraná na José Loureiro, a Tribuna e O Estado do Paraná na Barão do Rio Branco – e os cantores e locutores das rádios também próximas, como a Clube Paranaense, a Tingui e a Guairacá. Uma pensão como aquela era um vigoroso estímulo não só para produzir literatura naturalista como também para permanecer a maior parte do tempo possível longe dela."

Otto Leopoldo Winck

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