quinta-feira, 27 de dezembro de 2018


Um dos objetivos dos acordos entre o Ministério da Educação e Cultura do Brasil (MEC) e a United States Agency for International Development (USAID) para a reforma da educação brasileira era a implantação do ensino pago nas universidades federais – para muitos, o primeiro passo no caminho da privatização. O paranaense Flávio Suplicy de Lacerda, o ministro da pasta durante os acordos, voltara ao estado como reitor – mais uma vez – da Universidade do Paraná. E, decidido a torná-la um exemplo nesse processo, conseguira aprovar no ano anterior a cobrança de anuidades dos novos calouros. Nesse ínterim, as entidades estudantis se mobilizaram, organizando uma série de campanhas de esclarecimento ainda nos colégios. Servindo-se de uma brecha no regulamento da matrícula, orientaram os vestibulandos a requererem isenção da anuidade, alegando insuficiência de recursos. Como a Universidade não deu conta de analisar a avalanche de pedidos, a cobrança acabou inviabilizada. No entanto, em abril é anunciada a criação de um curso noturno de engenharia pago – e os estudantes repetem a mesma estratégia, só que dessa vez sem êxito. Por meio de piquetes e protestos, conseguem barrar a execução do vestibular. Uma nova prova, porém, é marcada, agora para o Centro Politécnico, no Cajuru, bem longe da Rua Quinze de Novembro, onde costumam ocorrer as manifestações. Prevendo o choque com a polícia, os estudantes se armam de setras, bolinhas de búrica e rojões de São João, além de fura-pneus: sarrafos cravejados de pregos capazes de deter até blindados. Para rebater os efeitos do gás lacrimogêneo, muitos ainda levam lenços, amoníaco e pastilhas efervescentes de vitamina C. No dia anterior aos exames, o Politécnico é ocupado pelas forças policiais. Domingo, justamente Dia das Mães, lá estamos nós, madrugadinha, agasalhados porque o friozinho de outono já se faz sentir. Mãos no bolso da jaqueta, confiro as bolinhas de gude.
– Puta que o pariu! Me espetei – resmunga Elisa, ferindo-se com os furas-pneus na bolsa.
Júlio ajeita a sacola com os foguetes e certifica-se das caixas de fósforos. Tudo certo. Estamos na Rodovia Régis Bittencourt, a antiga BR-2. Cerca de quinhentos estudantes de um lado. Do outro, centenas de cavalarianos da Polícia Militar, com seus sabres e seus capacetes reluzentes. Tensão no ar. É o nosso primeiro enfrentamento direto com as forças da repressão. Acabou a moleza. Aqui não tem mais delegado amigo da família.
– Olha, aconteça o que acontecer, vamos ficar juntos – eu digo.
– Se alguém vir o outro em apuros, corre pra ajudá-lo – afirma Júlio.
– E cuidado para não serem cercados – adverte Elisa, sapecando um beijo no namorado.
Por pudor, disfarço, viro o rosto. Contemplo a paisagem: a estrada, os soldados, os estudantes, os blocos do campus que se elevam em meio à cerração; de um lado, os montes que se sucedem, baixos, até os picos azulados da Serra do Mar; do outro lado a cidade, ainda adormecida.
De repente, os estudantes avançam. Avançamos juntos.
– Daqui vocês não passam. Se tentarem, o pau quebra! – avisa o comandante.
Fechamos a rodovia. O comandante dá cinco minutos para dispersarmos. Não dispersamos. A cavalaria irrompe. Tropel de patas, sabres desembainhados, gritos. Confusão, pânico, poeira. Saco as bolas de búrica, jogo-as no chão para fazer os cavalos derraparem. Mas são poucas, não fazem nem cócegas naqueles animais de quase meia tonelada. Companheiros têm os rostos feridos por golpes de sabres, moças são pisoteadas. Julio recua, mão na sacola. Apanha um rojão, pega a caixa de fósforos. Risca uma vez. A chama apaga. Risca outra. Não pega. Tenta uma terceira vez. Um estampido seco, o foguete explode. Um soldado cai da montaria (no dia seguinte saberíamos que quebrou a perna.)
– Atiraram num soldado nosso – grita o comandante. – Ele está ferido. A coisa vai engrossar agora!
Nova carga de cavalaria. Estouram bombas de gás lacrimogêneo. Mais foguetes de nossa parte. Bolinhas de búrica cortam o ar lançadas das setras. Os olhos queimam, lacrimejam, é difícil respirar. Um rapaz tem o nariz quebrado; o sangue verte, aos borbotões. Chegam reforços policiais – o Comando de Operações Especiais foi convocado. A superioridade bélica, naturalmente, é deles. Nos protegemos atrás dos carros, buscamos refúgio nas casas das redondezas. Cadê Elisa? Não sei. Cadê Júlio? Também não sei. Por duas horas os arredores do Centro Politécnico se convertem numa autêntica praça de guerra. Resultado: 59 estudantes presos, entre eles Elisa. Dezenas de feridos, entre eles eu, com um vergão na coxa.
Encontro Júlio. Suado, o cabelo emplastado de poeira. Mas está bem, apenas muito agitado, preocupado com Elisa, xingando a polícia, o regime, o mundo.
– Se esses filhos-da-puta tocarem um dedo nela...
– Não se preocupe, não vai acontecer nada.
– Como não vai acontecer nada? Estamos numa ditadura!
– Mas eles precisam manter um mínimo de aparências.
– Olha, bicho, já caiu a máscara e eles não estão nem aí com isso.
No meio de tantos rostos conhecidos e desconhecidos eu topo com um bastante familiar, objeto de minhas secretas admirações: Vera. De calça Lee e blusa Cacharel de gola rolê, mais parecia ter vindo para um piquenique do Clube Concórdia.
– Oi, você por aqui?
– Mais divertido do que ir na missa, não é?
– E mais perigoso também.
– Vejo que você não saiu ileso.
– Nem você, pelo seu cabelo.
– Eu gosto do meu cabelo assim. Não está bom?
– Como sempre. Ah, esse aqui é Júlio, amigo de muitos carnavais – apresento, ao constatar que ela não tira o olho dele. – Cuidado: é comunista da linha dura.
Ela ri.
– É desses que eu gosto.
– Essa é Vera, colega do cursinho.
– Olá – diz Júlio. – Pensei que só tinha alienado nos cursinhos.
– Infelizmente a maioria. Mas esse seu amigo está me resgatando.
– Ainda bem que não está sendo difícil – eu brinco.
– E essa aqui é Cláudia, minha prima – e Vera aponta para uma espécie de versão morena sua: franja basta, olhos escuros, calças Canvas, uma blusa rosa-shocking.
Mas o tempo urge. Despedimo-nos. Voltamos a pé, recordando as principais cenas do confronto. Depois de uma hora, chegamos ao Quartel da Polícia Militar, na esquina entre as avenidas Marechal Floriano e Getúlio Vargas, para onde os estudantes presos foram levados. Tomamos uma Coca-Cola com misto-quente numa panificadora próxima. Apesar de domingo, a notícia da batalha do politécnico, como já está sendo chamada, se alastrou. Todos na panificadora já estão a par e nos pedem detalhes. Ficam indignados com a truculência policial. Em frente ao quartel, já há grupos se aglomerando, um ou outro exibindo a marcas da violência recente: uma calça rasgada, hematomas, arranhões (em breve chegarão os que foram aos pronto-socorros, com braços na tipoia, ataduras e esparadrapos). A tarde cai e a cada instante vai ajuntando mais gente: estudantes, amigos, pais, familiares, jornalistas, advogados. A informação de que seis mil acadêmicos anunciaram greve nos anima. Palavras de ordem começam a ser entoadas aqui e ali, faixas e cartazes são levantados.
– Solta, solta, solta! – brada a multidão, os punhos erguidos.
Já é de noitinha quando os estudantes começam a deixar o quartel, ao som do hino nacional cantado em coro. Elisa nos vê de longe e corre em nossa direção. Pula em Júlio. Cabelos soltos, sujos de pó, está linda. Volta-se para mim e também me abraça. Depois, de cabeça baixa, se dirige à tia, que também chegou e está furiosa.
– Você está bem? – indago minutos após, enquanto procuramos um táxi para as duas.
– Estou ótima. Exausta mas ótima.
As pontas de seus dedos estão pretas.
– Que foi isso?
– Fui fichada. – E depois, baixando a voz: – Olha, gente, acho que a revolução está por um triz.
– Como na França? – pergunto.
– Como na França.
– Só que aqui o banzé vai ser ainda mais bonito – acrescenta Júlio.

Otto Leopoldo  Winck

QUE FIM LEVARAM TODAS AS FLORES - fragmento

(Tirando os personagens, fictícios, este evento de fato aconteceu em Curitiba, em maio de 1968, reproduzido aqui de maneira bastante fidedigna, até nas frases do comandante.)

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