domingo, 23 de dezembro de 2018


Trecho de meu novo romance. Detalhe: estamos em 1965 e meu narrador está com 15 anos:

"Comunistas. Até então eu nunca me importara com comunistas. Aliás, nem sabia direito quem eram. Associava-os vagamente a assassinatos, violência, fome, Cuba, China... Pelo que o meu pai falava, eles deviam estar a ponto de dominar o país. Aí então iriam fechar as igrejas, dividir nossas casas com vagabundos, implantar uma feroz disciplina. Não me agradava sobretudo este último aspecto. Dividir a casa com vagabundos? O único vagabundo que eu conhecia – e o único da cidade inteira – era seu Melquides, o homem do saco da minha infância, que dormia de favor nos sítios das redondezas, nos fundos da olaria, na porta da igreja, debaixo da marquise do cartório, que carpia terrenos ou varria calçadas em troca de um prato de comida, que dispunha de um arsenal incrível de causos absurdos com os quais fazia gargalhar a piazada na praça da cidade, agora que eu, crescido, via que ele não era nenhum bicho-papão. Se ele tomasse um bom banho e tirasse aquela craca do corpo, eu até que não me importaria em dividir a casa com ele. E quanto a fechar igrejas, eu até achava bom. Aborrecia-me na missa aos domingos e não adiantara nada, por conta do Concílio Vaticano II, a liturgia ter passado a ser em vernáculo. Enfim, os comunistas não eram uma grande ameaça para mim. Mas o mesmo não se podia falar de meu pai, que vira as reformas de base propostas pelo presidente João Goulart como a porta de entrada do bolchevismo. Na cidade, graças a Deus, não houve nenhuma Marcha da Família com Deus pela Liberdade, mas se realizaram algumas fastidiosas vigílias na igreja matriz às quais o meu pai me levara arrastado. De ouvido grudado no velho rádio valvulado, ele acompanhava os sermões do padre Peyton e os programas do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Assim, foi um alívio para ele quando, no dia 31 de março, ouviu que as tropas do general Olympio Mourão Filho marchavam de Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro. Chegou a se emocionar com as marchas e os dobrados militares que infestaram as rádios nesses dias. Para mim até que não foi mal: três dias de recesso escolar. Tirando um ou outro professor desligado da escola, nem minha rotina nem a da cidade sofreu alteração relevante. Agora, conversando com Júlio, meus olhos se abriam: descobria que o mundo, para além dos estreitos limites daquela cidadezinha, estava dividido entre progressistas e reacionários, oprimidos e opressores, aqueles que lutavam pelo avanço da humanidade e aqueles que se serviam de todos os meios para detê-lo – e os milicos não estavam entre os primeiros."

OLW

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