De Mario Quintana (para um poeta)
Meu caro poeta,
Por um lado foi bom que me tivesses pedido resposta urgente,
senão eu jamais escreveria sobre o assunto desta, pois não possuo o dom
discursivo e expositivo, vindo daí a dificuldade que sempre tive de escrever em
prosa. A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar. O
poema, não; descreve uma parábola tracada pelo próprio impulso (ritmo); é que
nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de
instintivo, carregado de emoção. Com isso não quero dizer que o poema seja uma
descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga
emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá. Por
isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje e há versos de hoje que
os pósteros lerão com aquela cara com que lemos os de Filinto Elísio. Aliás, a
posteridade é muito comprida: me dá sono. Escrever com o olho na posteridade é
tão absurdo como escreveres para os súditos de Ramsés II, ou para o próprio
Ramsés, se fores palaciano. Quanto a escrever para os contemporâneos, está
muito bem, mas como é que vais saber quem são os teus contemporâneos? A única
contemporaneidade que existe é a da contingência política e social, porque
estamos mergulhados nela, mas isto compete melhor aos discursivos e expositivos,
aos oradores e catedráticos. Que sobra então para a poesia? – perguntarás. E eu
te respondo que sobras tu. Achas pouco? Não me refiro à tua pessoa, refiro-me
ao teu eu, que transcende os teus limites pessoais, mergulhando no humano. O
Profeta diz a todos: “eu vos trago a verdade”, enquanto o poeta, mais
humildemente, se limita a dizer a cada um: “eu te trago a minha verdade.” E o
poeta, quanto mais individual, mais universal, pois cada homem, qualquer que
seja o condicionamento do meio e e da época, só vem a compreender e amar o que
é essencialmente humano. Embora, eu que o diga, seja tão difícil ser assim
autêntico. Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam
apócrifos!
Meu poeta, se estas linhas estão te aborrecendo é porque és
poeta mesmo. Modéstia à parte, as disgressões sobre poesia sempre me causaram
tédio e perplexidade. A culpa é tua, que me pediste conselho e me colocas na
insustentável situação em que me vejo quando essas meninas dos colégios vêm
(por inocência ou maldade dos professores) fazer pesquisas com perguntas assim:
“O que é poesia? Por que se tornou poeta? Como escrevem os seus poemas?” A
poesia é dessas coisas que a gente faz mas não diz.
A poesia é um fato consumado, não se discute; perguntas-me,
no entanto, que orientação de trabalho seguir e que poetas deves ler. Eu tinha
vontade de ser um grande poeta para te dizer como é que eles fazem. Só te posso
dizer o que eu faço. Não sei como vem um poema. Às vezes uma palavra, uma frase
ouvida, uma repentina imagem que me ocorre em qualquer parte, nas ocasiões mais
insólitas. A esta imagem respondem outras. Por vezes uma rima até ajuda, com o
inesperado da sua associação. (Em vez de associações de idéias, associações de
imagem; creio ter sido esta a verdadeira conquista da poesia moderna.) Não lhes
oponho trancas nem barreiras. Vai tudo para o papel. Guardo o papel, até que um
dia o releio, já esquecido de tudo (a falta de memória é uma bênção nestes
casos). Vem logo o trabalho de corte, pois noto logo o que estava demais ou o
que era falso. Coisas que pareciam tão bonitinhas, mas que eram puro enfeite,
coisas que eram puro desenvolvimento lógico (um poema não é um teorema) tudo
isso eu deito abaixo, até ficar o essencial, isto é, o poema. Um poema tanto
mais belo é quanto mais parecido for com o cavalo. Por não ter nada de mais nem
nada de menos é que o cavalo é o mais belo ser da Criação.
Como vês, para isso é preciso uma luta constante. A minha
está durando a vida inteira. O desfecho é sempre incerto. Sinto-me capaz de
fazer um poema tão bom ou tão ruinzinho como aos 17 anos. Há na Bíblia uma
passagem que não sei que sentido lhe darão os teólogos; é quando Jacob entra em
luta com um anjo e lhe diz: “Eu não te largarei até que me abençoes”. Pois bem,
haverá coisa melhor para indicar a luta do poeta com o poema? Não me perguntes,
porém, a técnica dessa luta sagrada ou sacrílega. Cada poeta tem de descobrir,
lutando, os seus próprios recursos. Só te digo que deves desconfiar dos truques
da moda, que, quando muito, podem enganar o público e trazer-te uma efêmera
popularidade.
Em todo caso, bem sabes que existe a métrica. Eu tive a
vantagem de nascer numa época em que só se podia poetar dentro dos moldes
clássicos. Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer àquelas
rimas. Uma bela ginástica, meu poeta, que muitos de hoje acham ingenuamente
desnecessária. Mas, da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos
de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria, espelho
grafológico da sua individualidade, eu na verdade te digo que só tem capacidade
e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto
clássico. Verás com o tempo que cada poema, aliás, impõe sua forma; uns, as
canções, já vêm dançando, com as rimas de mãos dadas, outros, os dionisíacos
(ou histriônicos, como queiras) até parecem aqualoucos. E um conselho, afinal:
não cortes demais (um poema não é um esquema); eu próprio que tanto te
recomendei a contenção, às vezes me distendo, me largo num poema que vai lá seguindo
com os detritos, como um rio de enchente, e que me faz bem, porque o
espreguiçamento é também uma ginástica. Desculpa se tudo isso é uma coisa
óbvia; mas para muitos, que tu conheces, ainda não é; mostra-lhes, pois, estas
linhas.
Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de que
gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os
únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já
escrevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência. Já
li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome nacional, e que no
entanto me deixaram indiferente. De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da
minha família.
Enfim, meu poeta, trabalhe, trabalhe em seus versos e em
você mesmo e apareça-me daqui a vinte anos. Combinado?
-=-
(Mario Quintana, em "80 anos de poesia", ed.
Globo, 2008)
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