(Fabrício Carpinejar)
Ser inteiro custa caro.
Endividei-me por não me dividir.
Atrás da aparência há uma reserva de indigência,
a volúpia dos restos.
Parto em expedição para provar que já morri.
E escavo boletins, cartas e álbuns
— o retrocesso da minha letra ao garrancho.
O passado tem sentido se permanecer desorganizado.
A verdade ordenada é uma mentira.
O musgo envaidece as relíquias. Os dedos retiram as teias,
assisto à revoada de insetos das ciladas.
Fujo da claridade, refulge a poeira.
O par de joelhos na imobilidade de um rochedo.
Reviso o testamento alisando a textura,
como um gramático da seda.
Desvendo o que presta pelo som do corte.
O que ansiava achar não acho
e esbarro em objetos despossuídos de lógica
que me encontram antes de qualquer pretensão.
O que fiz cabe numa caixa de sapatos.
Colecionava talhos de madeira, bonecos
adornados com a ponta miúda do canivete.
Lá estava um dos sobreviventes, desfocado,
vizinho das medalhas escolares
e dos parafusos condoídos de ferrugem.
Um autorretrato não seria tão fidedigno.
Eu era aquela frincha de chão florido, casca e húmus.
Quantas foram as miudezas que não combinavam
com o conjunto e, na falta de harmonia,
abandonei no depósito da infância?
E se faltou confiança para restaurá-las ao convívio,
faltou coragem para excluí-las em definitivo.
Somos o desperdício do que estocamos.
Não aprendemos a desaprender.
Não doamos nada, nem a palavra passamos adiante.
O porão tem vida própria e respira
o que jogamos fora.
O que refugamos na ceia volta a nos mastigar.
Tudo pode fermentar: o forro, os passos, o odor do braço.
Tudo pode nascer sem o mérito do grito,
no murmúrio ou estalar do abraço.
Tudo pode nascer, ainda que abafado.
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